Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China
Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China
Por Sergio Viula
A história LGBTQ+ na China é antiga, rica e cheia de simbolismos poéticos. Muito antes das opressões modernas e das políticas de censura, relações homoafetivas eram celebradas em textos literários, pinturas e nas cortes imperiais. Termos como “o pêssego mordido” ou “a manga cortada” atravessaram séculos como metáforas de amor e desejo entre pessoas do mesmo sexo.
Mas, se por um lado o passado nos mostra momentos de tolerância e até prestígio para essas relações, a China contemporânea revela um contraste: descriminalização tardia, censura à comunidade LGBTQ+, repressão a espaços de acolhimento e direitos civis ainda negados.
Neste post, fazemos uma viagem no tempo para recuperar essa história e refletir sobre as vozes que, apesar de silenciadas, continuam a desafiar os limites impostos.
Antigamente: metáforas de amor e desejo
Mizi Xia e o Duque Ling de Wei – o “pêssego mordido”
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Imperador Ai e Dong Xian – a “manga cortada”

Na dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), o imperador Ai Di viveu uma história de amor com o oficial Dong Xian. Conta a lenda que, para não acordar o amado adormecido sobre seu braço, o imperador cortou a própria manga. Daí nasceu a expressão “a paixão da manga cortada” — outra metáfora para relações entre homens.
Estudos históricos apontam que vários imperadores chineses foram abertamente bissexuais. Relações homoafetivas eram comuns entre as elites e, em muitas épocas, vistas como sinal de sofisticação cultural. Poetas, artistas e músicos celebravam o amor homoerótico sem a sombra da culpa ou da criminalização.
Literatura e registros históricos

Amor Entre Mulheres: Vozes e Silêncios
Se os registros sobre amores masculinos já são fragmentados, os relatos sobre relações entre mulheres são ainda mais raros — mas eles existem e mostram que a resistência lésbica tem raízes profundas.

Duì Shí: “Comer em Dueto”
No final da Dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), surgiu o termo duì shí (对食), que significa “comer em dueto”. Ele descrevia uniões íntimas entre mulheres — muitas vezes criadas e damas do palácio — que viviam juntas e eram chamadas informalmente de “marido e mulher”.
A Irmandade Golden Orchid
Na Dinastia Qing, a Golden Orchid Society (金兰会) foi um movimento de mulheres que rejeitavam casamentos arranjados e formavam irmandades intensas. Algumas uniões eram tão sérias que realizavam rituais formais de compromisso, e havia casos de suicídios coletivos para manter sua autonomia e seus laços afetivos.
Mojing Dang: O “Clube dos Espelhos”
Na província de Guangdong, o Mojing Dang (摩镜党) reunia mulheres que formavam pares e viviam como casais, desafiando a estrutura patriarcal. Seus pactos eram conhecidos como uma forma de resistência e, possivelmente, de amor romântico e sexual.
Wu Zao: A Poetisa Queer
Na Dinastia Qing, a poetisa Wu Zao (1799–1862) dedicou versos intensos a outras mulheres, em tons de amor e desejo. Sua obra demonstra que a homoafetividade feminina não apenas existiu, mas também encontrou expressão literária, ainda que de forma velada.
China contemporânea: avanços e desafios
Descriminalização e retirada da lista de doenças

A homossexualidade foi descriminalizada apenas em 1997 e, em 2001, deixou de ser considerada oficialmente uma doença mental na China. No entanto, o casamento igualitário e direitos de adoção ainda são negados à comunidade LGBTQ+.
Política dos “três não”
O governo chinês adota uma postura ambígua conhecida como “os três não”: não apoiar, não condenar, mas também não promover os direitos LGBTQ+. Essa neutralidade aparente, na prática, limita avanços e mantém a comunidade em estado de invisibilidade legal.
Casos emblemáticos de repressão e resistência
A estudante Qiu Bai processou o Ministério da Educação por livros didáticos que descreviam a homossexualidade como distúrbio — e conseguiu levar o caso à justiça, abrindo um precedente simbólico.
Uma mulher trans, conhecida como Ling’er, venceu um processo após ser submetida a “terapias de conversão” com eletrochoques, recebendo indenização inédita no país.
A famosa apresentadora trans Jin Xing, apelidada de “Oprah da China”, teve seus programas suspensos, refletindo a crescente censura à representação LGBTQ+.
Espaços históricos como o bar lésbico Roxie, em Xangai, fecharam sob pressão política, enquanto autores de fanfics gays foram presos em operações de repressão cultural.
Aceitação silenciosa

Apesar da censura, relatos de jovens LGBTQ+ mostram que grandes centros urbanos, como Chengdu e Pequim, têm espaços de convivência e redes de apoio mais abertos, embora sem reconhecimento oficial. Essa resistência cotidiana mantém viva a esperança de um futuro mais inclusivo.
Resgatando a memória, afirmando o futuro
Do “pêssego mordido” às histórias de amor imperial, passando pela poesia das dinastias e chegando à luta contemporânea contra a censura, a história LGBTQ+ da China mostra que o amor e o desejo não conhecem barreiras de tempo, cultura ou política.
Resgatar essa memória é mais que um ato histórico: é uma forma de empoderamento. É dizer para as gerações de hoje — na China e no mundo — que nossos afetos sempre existiram, resistiram e continuarão a florescer, por mais que tentem apagar nossas cores da história.
Porque, não importa onde ou quando, nós sempre estivemos aqui.










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