Turquia Queer: diversidade no passado e no presente
Turquia Queer: diversidade no passado e no presente

Por Sergio Viula
Na Turquia, o amor entre pessoas do mesmo sexo é tão antigo quanto suas ruínas.
Na Antiguidade, gregos e romanos celebravam a beleza masculina em Éfeso, Tróia e por toda a Anatólia. Antes mesmo da formação do Império Romano, a região era um mosaico de cidades gregas — como Mileto, Halicarnasso e Pérgamo — onde o afeto entre homens mais velhos e jovens era parte da cultura aristocrática e da educação.
Poetas como Safo, da ilha de Lesbos, e Anacreonte, que cantava o prazer e o vinho, inspiraram uma tradição homoerótica que floresceu também na costa anatoliana. Quando os romanos dominaram a região, herdaram esse mesmo ideal de beleza. Mosaicos encontrados em Antioquia (Antakya) mostram cenas de amor masculino com naturalidade — lembrando que, naquele tempo, o desejo não era uma fronteira moral, mas uma parte da vida.
O Império Otomano e os versos do desejo
Durante o Império Otomano, o homoerotismo encontrou abrigo na literatura e nas artes.
Poetas como Nedim (1681–1730) e Enderunlu Fazıl Bey (1757–1810) escreveram sobre o amor e a beleza masculina com lirismo e audácia.
Nedim, o grande poeta do Período das Tulipas, deixou versos que misturam sensualidade e espiritualidade:
“Aquele belo rapaz passou — e o coração me incendiou,
seus olhos são flechas, seu rosto é a chama da rosa.
Ó amado, teus lábios são vinho, e teu beijo, embriaguez.”
Já Enderunlu Fazıl Bey escreveu o Hubanname — O Livro dos Belos —, uma celebração da beleza masculina nas diversas regiões do Império:
“Os jovens de Damasco — que encanto possuem!
Seus olhos são flechas que ferem o coração.
Os rapazes de Istambul, com seus cachos e perfumes,
fazem até os anjos esquecerem o céu.”
Esses versos revelam um mundo onde o desejo masculino não era invisível, apenas velado por metáforas.

Nos palácios, os köçek — jovens que dançavam vestidos de mulher — encantavam plateias com coreografias sensuais, misturando arte, música e erotismo. Sua presença, tanto nos banquetes quanto nas festas populares, simbolizava a fluidez entre o masculino e o feminino em uma sociedade que ainda não conhecia as rígidas categorias de gênero modernas.
A República moderna: liberdade sem proteção
Com a fundação da República da Turquia em 1923, sob Mustafa Kemal Atatürk, o país se modernizou, adotou o laicismo e rompeu com a estrutura imperial.
A homossexualidade nunca foi crime — o antigo Código Penal Otomano de 1858 já havia descriminalizado atos entre pessoas do mesmo sexo, e essa decisão foi mantida na república.
Mas, embora livre de punição legal, a homossexualidade nunca foi protegida.
O Estado laico turco preferiu o silêncio: não criminalizava, mas também não reconhecia.
Durante o século XX, a moral conservadora, a pressão religiosa e a censura cultural empurraram as pessoas LGBTQ+ para os subterrâneos da sociedade.
Do silêncio à repressão

Nos anos 1990, o silêncio começou a ser quebrado. Surgiram os primeiros grupos organizados:
Lambdaistanbul (1993) e Kaos GL (1994).
A partir deles nasceram publicações, encontros e, em 2003, a primeira Parada do Orgulho de Istambul — um marco histórico em um país de maioria muçulmana.
Durante os primeiros anos do governo de Recep Tayyip Erdoğan, a Turquia parecia caminhar em direção a uma convivência mais aberta, especialmente enquanto buscava integrar-se à União Europeia.
Mas, a partir da década de 2010, o clima mudou radicalmente.
Sob o governo do Partido da Justiça e Desenvolvimento (AKP), a repressão se intensificou:
As Paradas do Orgulho passaram a ser proibidas e violentamente dispersadas pela polícia desde 2015.
Em 2017, o governo de Ancara proibiu todas as atividades públicas LGBTQ+, alegando “moralidade e segurança pública”.
Universidades, exposições e filmes foram censurados.
Artistas e ativistas foram presos simplesmente por exibirem a bandeira do arco-íris.

Erdoğan e seus aliados descrevem a visibilidade LGBTQ+ como uma “ameaça ocidental” aos valores islâmicos e à família turca — um discurso que ecoa o de governos autoritários como o da Hungria e da Rússia.
Assim, a Turquia moderna vive uma contradição profunda: ser LGBTQ+ nunca foi crime, mas ser visível tornou-se perigoso.
Resistir é existir
Mesmo assim, a comunidade LGBTQ+ resiste.
Em Istambul, Ancara e nas redes, vozes queer seguem vivas — ligando passado e presente com coragem.

A resistência se expressa em:
- Coletivos como Hevi LGBTI+, SPoD, Kaos GL e Lambdaistanbul;
- Arte queer emergente em Istambul e Ancara;
- Presença crescente nas redes sociais e na cultura alternativa.
- Lambdaistanbul, o coletivo mais antigo, mantém uma biblioteca queer e campanhas públicas, apesar das ameaças e tentativas de fechamento.
- Kaos GL, nascido como revista underground, hoje é uma referência internacional: produz relatórios, abriga o festival KuirFest e apoia judicialmente ativistas perseguidos.
- SPoD oferece acolhimento psicológico e campanhas digitais, mantendo o espírito do Pride vivo mesmo sob proibição.
- E Hevi LGBTI+, criado por pessoas curdas e refugiadas, amplia o movimento com diversidade étnica e solidariedade internacional.
Arte queer: a revolução estética
A arte é a nova trincheira da liberdade.
Cantores, performers e cineastas transformam resistência em beleza.
Mabel Matiz, ícone pop, desafiou o conservadorismo com o clipe Karakol (2022), que mostra um beijo entre dois homens — um gesto histórico no país.
Drags e performers não-bináries, como Daphne Drag, Kahraman Deniz e Hazan Bingöl, ocupam palcos underground com espetáculos que fundem performance, teatro e protesto.
Festivais como o KuirFest e o Pride Week Arts Festival exibem filmes e performances queer, mesmo sob vigilância policial.
Artistas visuais e fotógrafos, como Zehra Doğan e Burcu Yıldız, exploram corpo, gênero e resistência em suas obras — desafiando os limites do que o Estado tenta apagar.
Ativismo digital e redes de esperança
Com as ruas vigiadas, a luta migrou para o espaço digital.
Hashtags como #Lubunya (termo turco para “queer”), #OnurYürüyüşü (Marcha do Orgulho) e #TurQUEER unem ativistas em campanhas virtuais.
Canais independentes produzem podcasts, fanzines e lives sobre sexualidade, política e saúde mental.
A internet se tornou o espaço onde a liberdade ainda floresce — onde ser queer é existir sem permissão.
Por uma Turquia mais TurQUEER
Istambul e Ancara estão testemunhando uma verdadeira ascensão da arte e da consciência queer.
Entre ruínas antigas e muros modernos, entre versos otomanos e hashtags digitais, o amor entre pessoas do mesmo sexo continua sendo uma força criadora — e política.
A Turquia queer resiste, cria, canta e dança.
Porque, como diz um artista local:
“Ser queer em Istambul é viver entre o medo e a beleza — mas é também criar uma nova Turquia, uma TurQUEER.”
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Mais uma prova de que nenhum direito é sólido, precisamos ficar sempre atentos e não apenas lutar por mais direitos, mas também defender os direitos conquistados. Lamentável.
ResponderExcluirVerdade. Direitos LGBT são direitos humanos.
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