A vida LGBT na Mongólia: ancestralidade, repressão socialista e renascimento contemporâneo

A vida LGBT na Mongólia: ancestralidade, repressão socialista e renascimento contemporâneo


Residências tradicionais da Mongólia


Por Sergio Viula


A história LGBTQ+ da Mongólia é uma trajetória complexa — de reconhecimento espiritual e fluidez ancestral à repressão e apagamento durante o socialismo, seguida de uma retomada da visibilidade e dos direitos humanos nas últimas décadas.

Este panorama busca resgatar as raízes culturais e espirituais da diversidade sexual e de gênero na Mongólia, além de mostrar como o domínio socialista afetou profundamente a vida das pessoas LGBTQ+.


Contexto da ancestralidade mongol

Os povos mongóis descendem de antigas tribos nômades das estepes da Ásia Central — uma região que hoje abrange partes da Mongólia, da China (especialmente a Mongólia Interior), da Rússia (Sibéria) e do Cazaquistão. Antes da unificação sob Gêngis Khan, no século XIII, essas tribos viviam em clãs e alianças baseadas em valores como honra, hospitalidade, bravura e forte vínculo espiritual com a natureza.

A espiritualidade predominante era o xamanismo tengrista (Tengrismo), centrado em Tengri, o “Céu Azul Eterno”, e na harmonia entre as forças naturais. Essa visão de mundo valorizava o equilíbrio entre o masculino e o feminino, o humano e o espiritual — permitindo uma fluidez simbólica nas concepções de gênero e papel social muito maior do que aquela que viria com as religiões e regimes posteriores.


Diversidade sexual e de gênero na tradição xamânica


Xamãs da Mongólia


Nas práticas xamânicas mongóis — e também nas tradições turco-mongóis e siberianas — existiam xamãs com identidades de gênero cruzado ou duais. Essas pessoas muitas vezes exibiam características associadas a ambos os gêneros ou desempenhavam papéis ritualísticos ligados ao gênero oposto.

Longe de serem vistas como “desviantes”, elas eram consideradas dotadas de dons espirituais, pois se acreditava que estavam em contato direto com forças sobrenaturais.

Em várias tradições, o espírito-guia de um xamã podia ser masculino ou feminino, independentemente do sexo biológico da pessoa, levando-a a adotar comportamentos, roupas e linguagens do gênero correspondente ao espírito.

Esses xamãs tinham papel de respeito e poder social, atuando como mediadores entre mundos. A variação de gênero, portanto, tinha valor sagrado.


O período do Império Mongol (séculos XIII–XIV)


Genghis Khan

Durante o império fundado por Gêngis Khan, a estrutura política e militar era fortemente patriarcal, mas havia também pragmatismo e tolerância religiosa. O imperador permitia práticas locais e cultos regionais — o que manteve vivas tradições espirituais com traços de fluidez de gênero.

Com o avanço do budismo tibetano e, mais tarde, do islamismo em algumas regiões do império, as normas de gênero e sexualidade passaram a se alinhar a visões mais binárias e heteronormativas, marginalizando gradualmente práticas espirituais mais fluidas.


Termos e expressões culturais

Não há registros linguísticos diretos equivalentes a “LGBTQ+” no mongol antigo, mas fontes chinesas e persas mencionam indivíduos com aparência ou comportamento fora das normas de gênero — vistos como curiosidades culturais, sem conotação moral negativa.

Na Mongólia moderna, alguns termos expressam essa diversidade:

  • хүйсийн олон янз байдал (khüisiin olon yanz baidal) — “diversidade de gênero”
  • ижил хүйстэн (ijil khüisten) — literalmente “do mesmo gênero”, usado para “gay”


O início do socialismo mongol (1921–1940)

Após a Revolução de 1921, a Mongólia — sob forte influência soviética — tornou-se o segundo Estado socialista do mundo, depois da União Soviética. O novo regime eliminou o poder da aristocracia e do clero budista, estabelecendo uma república dependente de Moscou.

Nos primeiros anos, havia silêncio sobre questões de gênero e sexualidade. O foco do Estado era a modernização e a consolidação do poder. A sexualidade, especialmente fora da heteronormatividade, era vista como um assunto privado e irrelevante para o projeto revolucionário.


Influência soviética: moral e repressão

A partir dos anos 1930, a Mongólia seguiu de perto a linha ideológica de Stálin. Isso significou:

  1. Repressão das religiões e do xamanismo, que antes acolhiam maior diversidade espiritual e de gênero.
  2. Imposição de ideais rígidos de masculinidade e feminilidade “revolucionárias”.
  3. Criminalização e tabu em torno da homossexualidade, vista como “degeneração burguesa”.

Embora os registros oficiais mongóis sobre o tema sejam escassos, sabe-se que as leis e práticas soviéticas foram amplamente copiadas. Na União Soviética, a homossexualidade foi criminalizada em 1934 — e a Mongólia seguiu caminho semelhante, ainda que muitas vezes de forma informal e velada.


Invisibilidade e vigilância (1940–1980)

Durante décadas, a vida LGBTQ+ foi marcada pelo medo e pela invisibilidade. Qualquer comportamento fora da norma poderia resultar em exclusão social, demissão, vigilância ou mesmo prisão.

Pessoas com desejos ou identidades não normativas viviam sob constante disfarce, casando-se heterossexualmente para evitar perseguição.

O Estado socialista buscava controlar não apenas a economia, mas também o corpo e o desejo.


Brechas no fim do regime (1980–1990)

Nos anos 1980, as reformas de perestroika e glasnost promovidas por Gorbachev na União Soviética começaram a inspirar pequenas aberturas na Mongólia.

Ainda assim, até a queda do regime comunista em 1990, a sexualidade continuava sendo um tabu total. As primeiras conversas públicas sobre liberdade sexual e direitos civis só começaram após a democratização.


Pós-socialismo e renascimento LGBTQ+


Equipe, voluntários e aliados do LGBT Centre durante 
a Marcha 1 Billion Rising em 8 de março de 2018


Com a transição democrática em 1990 e a Constituição de 1992, a Mongólia deu início a uma nova era. Surgiram, pouco a pouco, movimentos e ativistas que começaram a reconstruir o espaço da diversidade sexual e de gênero no país.

Hoje, o país conta com organizações LGBTQ+ que desempenham papel essencial na visibilidade e defesa dos direitos humanos. Entre elas:

LGBT Centre Mongolia https://lgbtcentre.mn/  Fundado em 2007, é a principal organização de defesa dos direitos LGBTQ+ no país. Atua em advocacy, apoio jurídico e visibilidade internacional.

Youth for Health (YFH)  https://www.youtube.com/@youth4healthmongolia278  ONG voltada à saúde e aos direitos de jovens, incluindo pessoas LGBTQ+. Trabalha com prevenção do HIV, educação sexual e acolhimento comunitário.

Equality NGO https://www.facebook.com/equalitymongolia/  Organização focada em combater discriminação e promover políticas de igualdade no país.

Essas entidades atuam num contexto ainda difícil: a homossexualidade foi descriminalizada apenas em 1993, e o estigma social continua forte, especialmente fora da capital, Ulan Bator.


O legado do socialismo e os desafios atuais

O socialismo deixou um legado ambíguo: ao mesmo tempo em que promoveu alfabetização e igualdade de gênero no trabalho, reforçou o controle moral e o silêncio sobre a sexualidade.

Hoje, as novas gerações lutam para reconstruir a memória e revalorizar as antigas tradições xamânicas, que antes reconheciam identidades e papéis de gênero mais fluidos.


Direitos LGBTQ+ contemporâneos na Mongólia


"Não quero viver de aparência."
Essas foto consta nesse artigo: Como é ser um estudante trans na Mongólia:

Apesar dos desafios históricos, a Mongólia hoje garante alguns direitos básicos às pessoas LGBTQ+:

  • Descriminalização da homossexualidade: legal desde 1993.

  • Proteção contra discriminação: leis limitadas proíbem discriminação em trabalho, educação e serviços públicos, mas aplicação prática é fraca.

  • Expressão e visibilidade: permitida, mas limitada pelo estigma social e pela resistência cultural.

  • Relacionamentos e família: casamento ou união civil entre pessoas do mesmo sexo não é reconhecido; adoção também não é permitida.

  • Direitos de pessoas trans: mudança de nome ou gênero possível em casos específicos, mas sem legislação clara; burocracia complexa.




Estabelecimentos de cultura e entretenimento LGBTQ+


Bar gay na capital Mongol

Show com drag queens

Legenda: "Brilhante e doce, mas difícil de engolir.”
Isso é o que deve acontecer na Mongólia: O bar não apenas existe, mas resiste.


Hanzo Gay Bar: Apesar de poucos espaços LGBTQ+ na Mongólia, o Hanzo Gay Bar é um ponto de referência em Ulaanbaatar.

Oferece shows drag, karaokê e festas, criando um ambiente seguro para socialização.

Também conhecido como d.d/h.z ou Melody Karaoke Bar, mantém o foco em acolher a comunidade e promover visibilidade.

Além do entretenimento, funciona como espaço de troca de experiências e fortalecimento comunitário.

Mesmo nesses espaços, a discriminação e o estigma social persistem, reforçando a importância de centros de apoio e organizações.


Ulan Bator: Capital da Mongólia


Linha do tempo resumida

Período Situação para pessoas LGBTQ+

  • 1921–1930 Indiferença inicial; foco na revolução.
  • 1930–1950 Repressão e moral socialista rígida.
  • 1950–1980 Invisibilidade total e controle estatal.
  • 1980–1990 Pequenas brechas de discussão.
  • Após 1990 Democratização e início do ativismo.


A história LGBTQ+ da Mongólia é uma jornada da espiritualidade à resistência. Antes do socialismo, as tradições xamânicas e espirituais já reconheciam a fluidez de gênero e o poder das identidades múltiplas.

O período comunista silenciou essas expressões, mas o novo século trouxe uma redescoberta da diversidade mongol — agora guiada por ativistas, artistas e intelectuais que lutam para que a liberdade seja, enfim, para todos.

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