COP30, Amazônia e Justiça Climática: Por que a Pauta LGBTQ+ Não Pode Ficar de Fora

COP30, Amazônia e Justiça Climática: Por que a Pauta LGBTQ+ Não Pode Ficar de Fora





Por Sergio Viula


A COP30 ocupa Belém de 10 a 21 de novembro de 2025 como um organismo vivo. Líderes mundiais negociam metas e responsabilidades enquanto a Amazônia respira em torno da conferência, lembrando que o tempo para decisões tímidas acabou. Mas, entre os povos originários, cientistas, ONGs e governos, uma outra presença se torna cada vez mais inegável: a comunidade LGBTQ+, que chega não como figurante, mas como agente de uma disputa urgente por reconhecimento e proteção.

Apesar de a pauta LGBTQ+ não integrar formalmente a agenda das negociações da ONU, ela marca presença crescente nas áreas abertas ao público, nos espaços da sociedade civil, na Zona Verde, na Casa das ONGs e nos debates que fervem paralelamente às mesas diplomáticas. É ali que emerge a consciência de que não existe justiça climática sem justiça social.

Quando a crise climática encontra velhas desigualdades

A ciência e a literatura recente mostram que as mudanças climáticas não criam desigualdades, apenas revelam e aprofundam as que já existem. Estudos internacionais reforçam que pessoas LGBTQ+ são atingidas de modo desproporcional por desastres e transformações ambientais.

Pesquisas como as de Kilpatrick et al. (2023) e King (2022) apontam para um cenário recorrente: pessoas LGBTQ+ enfrentam assistência emergencial inadequada, discriminação institucional e receio de buscar ajuda por medo de preconceito, como destacou Leonard (2018). E esse medo não é infundado. Um estudo qualitativo na Austrália revelou discriminação sistêmica contra mulheres lésbicas e bissexuais tanto como usuárias quanto como funcionárias de serviços de emergência (Parkinson et al., 2022).

Em alguns países, essa vulnerabilidade assume contornos dramáticos. No Paquistão, a população trans enfrenta uma dupla crise: os efeitos do clima extremo e a exclusão social que dificulta acesso a abrigo, renda e proteção, segundo levantamento da Eco-Business (2023). Relatórios como os de Edge Effect (2018) documentam a ausência de abrigos seguros, estigma religioso e violência que se agravam durante eventos climáticos extremos.

As desigualdades pré-existentes — como maior risco de desabrigo, pobreza, discriminação no emprego e falta de acesso a serviços de saúde — tornam a população LGBTQ+ ainda mais vulnerável quando um desastre atinge suas comunidades. Estudos recentes, incluindo análises da APWLD (2023) e de Dalton (2023), reforçam que a crise climática cria desafios específicos para pessoas LGBTQ+ e exige políticas climáticas inclusivas.

Além disso, as disparidades de saúde já enfrentadas pela comunidade — maiores taxas de doenças crônicas, problemas de saúde mental e barreiras ao acesso a cuidados — amplificam os riscos durante ondas de calor, enchentes, deslocamentos e eventos de longa duração (Simmonds, 2022).

E há a camada interseccional, onde identidades se cruzam e desigualdades se aprofundam. Pessoas LGBTQ+ negras, indígenas, periféricas ou empobrecidas enfrentam riscos ainda maiores. Orr (2022) documenta, por exemplo, que pessoas trans racializadas relatam maior violência e maus-tratos em abrigos emergenciais. Essa realidade ecoa no Brasil e em diversas partes do mundo.

E é aqui que surge outra dimensão, muitas vezes ignorada, mas impossível de separar da luta climática: a exposição desigual à poluição e aos riscos ambientais.

Bairros onde vivem pessoas LGBTQ+, frequentemente moldados por políticas de moradia discriminatórias e pelo chamado “NIMBYismo heteronormativo”, tendem a concentrar níveis mais altos de poluentes atmosféricos e riscos ambientais. Pesquisas mostram que áreas com maior proporção de casais do mesmo sexo apresentam mais poluentes tóxicos no ar, o que se traduz em taxas maiores de doenças respiratórias, cardiovasculares e certos tipos de câncer.

O termo "NYMBismo heteronormativo" vem da frase "not in my backyard", que se refere à rejeição motivada, explícita ou implicitamente, por preconceito contra pessoas LGBTQ+.
Ou seja, quando moradores de um bairro resistem à presença de espaços associados à comunidade LGBTQ+ — centros de acolhimento, casas de cultura, abrigos, bares ou organizações — sob a desculpa de “segurança”, “decoro”, “valorização imobiliária” ou outras justificativas nebulosas.

O efeito prático é claro: bairros que rejeitam ativamente a presença de pessoas LGBTQ+ empurram essa população para regiões com aluguel mais barato, infraestrutura mais precária e maior exposição a poluição, violência ou riscos ambientais. É um mecanismo sofisticado de exclusão social disfarçado de preocupação urbanística.

Dentro de casa, o quadro também é desfavorável. Habitações precárias — as mesmas que resultam de exclusões históricas — expõem moradores LGBTQI+ a tinta com chumbo, tubulações antigas, radônio, amianto e outros perigos silenciosos. As taxas mais altas de tabagismo na comunidade, somadas ao fumo passivo em espaços de convivência, ampliam o estresse respiratório, especialmente entre pessoas trans que utilizam faixas compressoras de tórax.

A vulnerabilidade se agrava no extremo climático. Ondas intensas de calor e frio e desastres como furacões e enchentes atingem com força particular quem já vive à margem. Entre 20 e 45 por cento dos jovens em situação de rua se identificam como LGBTQ, e pessoas trans frequentemente são rejeitadas por abrigos. A consequência é brutal: maior exposição à hipotermia, hipertermia, fumaça de queimadas, doenças infecciosas pós-enchentes e traumas físicos e psicológicos.

As respostas governamentais também nem sempre chegam de maneira igualitária. Após o Furacão Katrina, por exemplo, famílias LGBTQI+ enfrentaram distribuição desigual de recursos por não serem reconhecidas legalmente pela FEMA (Agência Federal de Gestão de Emergências). A agência, inclusive, admite histórico de discriminação em atendimentos a populações pobres e racializadas, o que afeta ainda mais comunidades LGBTQI+ interseccionais.

No campo da saúde, o impacto ambiental se encontra com um sistema que muitas vezes repele quem mais precisa. Discriminação por profissionais é rotina para 37 por cento de pessoas gays, lésbicas, bissexuais ou queer, e para 59 por cento das pessoas trans, segundo pesquisa do CAP (2020). Muitos evitam buscar atendimento por medo de assédio, o que leva a diagnósticos tardios e doenças agravadas pela poluição e pelo clima extremo. Pessoas vivendo com HIV também enfrentam riscos ampliados: poluentes atmosféricos elevam a probabilidade de doenças como pneumonia pneumocística.

Tudo isso aponta para um fato desconfortável, mas urgente: a crise climática aciona gatilhos de desigualdade que já estavam estruturados na sociedade. E a comunidade LGBTQ+ vive no epicentro desse entrelaçamento de riscos.

A Zona Verde como laboratório político e terreno de criação

É na Zona Verde, na Casa das ONGs e nos espaços culturais e comunitários de Belém que o debate LGBTQ+ encontra terreno fértil. Coletivos e organizações realizam seminários, painéis e discussões que vão desde visões interseccionais até propostas concretas de inclusão em políticas climáticas nacionais e internacionais.

A ideia de aplicar uma “lente queer” às políticas climáticas ganha força: reconhecer que identidades, corpos, territórios e desigualdades moldam a experiência da crise ambiental e devem modelar também as soluções. Isso inclui desde diretrizes para abrigos inclusivos até planos de adaptação que levem em conta barreiras socioeconômicas e riscos específicos da comunidade.

E mais: cresce a demanda por representatividade nos espaços de decisão, seja em conselhos de diversidade, comitês estaduais e municipais, ou nos grupos de trabalho de implementação de políticas climáticas.

A presidência brasileira e o quebra-cabeça diplomático

A COP30 tem uma particularidade importante: a presidência brasileira demonstra abertura para discutir diversidade e grupos vulneráveis. A diretora-executiva da conferência, Ana Toni, já sinalizou apoio à inclusão explícita da população LGBTQ+ nos textos oficiais, embora reconheça os desafios. O Brasil também implementou medidas práticas, como o uso garantido de nome social nas credenciais e o reforço do código de conduta da ONU para prevenir assédio.

Mas transformar essa abertura em acordo multilateral é outro capítulo. A UNFCCC (Convenção-Quadro das Nações Unidas sobre Mudança do Clima) exige consenso total entre 198 países, muitos dos quais têm legislações discriminatórias ou políticas abertamente anti-LGBTQ+. É improvável que uma menção direta passe sem resistência feroz.

Ainda assim, isso não encerra a luta. Muito do que importa na política climática se decide fora dos textos finais da COP: nas políticas nacionais, nos planos municipais, nos investimentos regionais, nos mecanismos de financiamento e nos espaços onde a sociedade civil pode atuar sem o peso do consenso diplomático.

A Amazônia como espelho e alerta

A COP30 deixa claro que a luta climática não é apenas sobre carbono. É sobre corpos em movimento, histórias atravessadas pela desigualdade, geografias que sangram com cada evento extremo. A Amazônia é um espelho dessa complexidade: quem vive na linha de frente da crise climática raramente é quem decide seu futuro.

E a presença LGBTQ+ na COP30 — visível, articulada e politizada — afirma um ponto crucial: não há futuro sustentável se esse futuro não incluir todas as pessoas. Não há transição justa se ela ignorar quem já vive na ponta afiada da exclusão. Não há política climática eficaz se ela não compreender que gênero, sexualidade, raça e classe moldam profundamente como a crise é sentida e vivida.

Belém se torna, assim, o cenário onde a pauta LGBTQ+ lança raízes novas na discussão climática global. É um manifesto vivo de que a luta pela Amazônia e a luta pela diversidade não são paralelas. São inseparáveis.

Justiça climática, para existir, precisa ser para todo mundo. E isso significa exatamente o que parece: ninguém fica para trás.

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