“Fronteiras Borradas”: feminismos essencialistas, política antigênero e os riscos de um novo apagamento

“Fronteiras Borradas”: feminismos essencialistas, política antigênero e os riscos de um novo apagamento



Por Sergio Viula

Com informações da ANTRA e do Sexuality Policy Watch


Está disponível o relatório “Fronteiras Borradas: Movimentos Feministas e de Mulheres e Política Antigênero no Brasil”, uma publicação fundamental para compreender os novos embates dentro do campo feminista e os riscos que as correntes transexcludentes representam para a democracia e para os direitos humanos no país.

O estudo é resultado de uma parceria entre o Observatório de Sexualidade e Política (SPW), o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG (NUH/UFMG) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), com apoio da Ação Educativa, do Cladem Brasil, de Criola, do Ipas Brasil e da campanha Nem Presa Nem Morta.

A pesquisa mapeia o ecossistema dos feminismos essencialistas e transexcludentes no Brasil, analisando quem são, de onde vêm e como atuam essas correntes que se articulam cada vez mais com o campo antigênero, o ultraconservadorismo e a extrema direita.

Cartografia de um fenômeno em expansão

Combinando revisão de literatura, análise de redes sociais e entrevistas com ativistas e pesquisadoras/es, o relatório traça uma cronologia da presença e da atuação das correntes feministas essencialistas no Brasil desde 2013 — momento em que o campo ultraconservador iniciou sua ofensiva de larga escala contra o debate de gênero na educação.

O documento mostra que, a partir de 2015, essas vertentes ganharam espaço ao liderar campanhas contra a Lei de Alienação Parental, explorando o discurso dos “direitos maternos” e estabelecendo pontes com atores políticos da ultradireita. Durante o governo Bolsonaro, algumas figuras e coletivos desse campo ganharam legitimidade institucional, aproximando-se de órgãos públicos e conquistando visibilidade.

Mas foi após a derrota de Bolsonaro em 2022 que essas articulações se intensificaram e ganharam contornos mais sólidos — o que torna urgente a reflexão proposta pelo relatório: como o “borramento” das fronteiras entre feminismos progressistas e discursos de ódio pode afetar as lutas por igualdade de gênero e diversidade sexual.

Um emaranhado que atravessa o espectro político

A análise de redes sociais realizada pelo estudo revela um campo complexo e ambíguo, que vai da esquerda à extrema direita, mostrando como figuras e coletivos operam como “pivôs” entre polos ideológicos distintos. Essa imersão e interação das correntes essencialistas no universo feminista mais amplo produz um borramento perigoso de fronteiras, onde discursos biologicistas e antitrans acabam disfarçados de defesa das mulheres.

O relatório identifica ainda um deslocamento crescente dessas correntes para a direita do espectro político, além de conexões diretas com clusters da extrema direita nacional e internacional. O resultado é um campo híbrido, mas cada vez mais marcado por práticas e discursos transfóbicos, que ecoam as agendas antigênero e ameaçam conquistas históricas do movimento feminista e LGBTQIA+.

Efeitos e impactos: do “confusionismo” à transfobia aberta

As entrevistas com ativistas e pesquisadoras/es apontam para os efeitos deletérios dessa presença ampliada: o crescimento de um “confusionismo” dentro do próprio feminismo e a ativação de camadas profundas de transfobia, inclusive em setores progressistas e nos circuitos acadêmicos.

Os estudos de caso apresentados no relatório ilustram esse impacto com clareza.

O primeiro examina os ataques sistemáticos ao Ministério das Mulheres desde sua recriação em janeiro de 2023 — ataques conduzidos, em grande parte, por grupos feministas essencialistas.

O segundo reconstrói a polêmica em torno da missão da Relatora Especial da ONU para a Violência contra as Mulheres e Meninas, destacando como os vínculos da relatora com setores transexcludentes levaram ao adiamento da visita, e ao debate sobre o lugar das pessoas trans nas agendas internacionais de direitos humanos.

Democracia, gênero e o desafio de reagir

Ao reunir análises de redes sociais, entrevistas e estudos de caso, Fronteiras Borradas constrói uma primeira cartografia abrangente do fenômeno no Brasil. A pesquisa mostra que, embora os discursos contra os direitos trans não sejam novidade, sua escala e influência cresceram de forma alarmante no contexto pós-Bolsonaro.

Esse avanço tem efeitos concretos — tanto na política institucional quanto no cotidiano das pessoas trans e LGBTQIA+.

Por isso, o relatório defende respostas firmes dos feminismos inclusivos e do campo progressista mais amplo, envolvendo o ativismo, a academia, os direitos humanos, a mídia e as instituições públicas.

Mais do que um diagnóstico, Fronteiras Borradas é um alerta: compreender as novas fronteiras — e o borramento entre elas — é essencial para proteger o sentido democrático e plural das lutas por gênero, sexualidade e igualdade.

🔗 Acesse o relatório completo: https://drive.google.com/file/d/1BsurilU0_VId9LPg5dDfMf2lrxL07rb2/view?usp=sharing


__________________________

Comentário deste blogueiro


O feminismo que exclui pessoas trans não é feminismo — é biologicismo disfarçado de libertação. Ao negar o direito à existência plena das pessoas trans, essas correntes reproduzem exatamente as opressões que dizem combater.

Como lembra o relatório, não há emancipação possível quando se recorre à exclusão como método.

A igualdade de gênero só é verdadeira quando inclui todas as identidades e corpos.

Leia mais sobre feminismo e mulheres trans aqui: https://www.xn--foradoarmrio-kbb.com/2025/06/a-mulher-solidaria-com-outras-mulheres.html

Comentários

Postagens mais visitadas