Havaí Queer: Māhū, o Gênero Ancestral

 Havaí Queer: Māhū, o Gênero Ancestral


Dança típica havaiana - cultura que resiste


Por Sergio Viula


A história do Havaí vai muito além de praias paradisíacas e paisagens tropicais. Antes da colonização ocidental, os povos nativos já viviam uma cultura rica, espiritual e profundamente conectada à natureza, com formas de entender gênero e sexualidade muito mais fluidas do que as sociedades ocidentais modernas. Entre essas tradições, os māhū — pessoas que se situavam entre o masculino e o feminino — ocupavam posições de respeito e importância, atuando como guardiões da sabedoria ancestral e da espiritualidade comunitária. Conheça a história dos māhū, o impacto da colonização, a resistência cultural e o trabalho de líderes e organizações que hoje resgatam essa identidade ancestral.

Muito antes da colonização, o povo havaiano já reconhecia mais de dois gêneros. Eram os māhū — pessoas entre o masculino e o feminino, espiritualmente respeitadas e valorizadas pela comunidade. Em tempos antigos, os māhū eram vistos como guardiões do equilíbrio entre as energias de kāne (masculino) e wahine (feminino). Essa harmonia interior lhes conferia uma sabedoria especial, tornando-os pontes entre o corpo e o espírito, o humano e o divino. Sua presença era considerada uma bênção — símbolo de conhecimento, compaixão e conexão espiritual.


Jovens havaianos no tempo da invasão imperialista

Os māhū eram curadores, professores, contadores de histórias e mestres do hula. Eram responsáveis por transmitir tradições, preservar a língua e os valores espirituais dos Kanaka Maoli, o povo originário do Havaí. Desempenhavam um papel essencial na estrutura cultural e religiosa da sociedade, atuando em cerimônias, rituais e na educação dos mais jovens.


Quem são os Kanaka Maoli

Os Kanaka Maoli — literalmente “povo verdadeiro” ou “povo genuíno” em havaiano — são os habitantes nativos do Havaí, descendentes dos navegadores polinésios que chegaram às ilhas por volta do ano 1000 d.C. Esses ancestrais dominavam a arte da navegação pelas estrelas, ventos e correntes oceânicas, estabelecendo uma civilização profundamente conectada à natureza e guiada por princípios de respeito, equilíbrio e cooperação.

Para os Kanaka Maoli, o mundo espiritual, a terra e o corpo humano eram expressões do mesmo mana — a força vital que permeia toda a existência. Essa visão tornava o gênero algo fluido, dinâmico e sagrado. Ser māhū significava manifestar o equilíbrio dessa energia entre o masculino e o feminino. Gênero não era prisão nem rótulo, mas uma expressão do espírito e da harmonia com o universo.


O impacto da colonização

Com a chegada dos missionários cristãos e colonizadores ocidentais no século XIX — principalmente estadunidenses, britânicos e outros europeus — a harmonia cultural e espiritual do Havaí foi violentamente rompida. Esses colonizadores trouxeram leis, costumes e valores centrados em uma visão binária de gênero e moralidade cristã. A prática de venerar os māhū, a celebração de rituais ancestrais e as danças sagradas do hula foram condenadas como pecaminosas ou imorais.

Grupo de hula māhū havaiano

Os colonizadores impuseram um sistema legal, político e religioso que desvalorizava a cultura Kanaka Maoli, restringia o acesso à terra e às tradições e criminalizava práticas espirituais e expressões de gênero não conformes. Muitos māhū foram marginalizados, silenciados e expulsos de espaços que antes lhes pertenciam, e grande parte do conhecimento ancestral foi perdido ou escondido por gerações.

Ainda assim, o espírito dos māhū resistiu. Mesmo diante da repressão, muitas pessoas continuaram a transmitir, em segredo, os ensinamentos, cânticos e danças tradicionais, mantendo viva a identidade māhū através do tempo.


Kumu Hina: a voz māhū do presente


Kumu Hina - junho de 2016

Hoje, ativistas māhū como Kumu Hina Wong-Kalu resgatam essa identidade com orgulho, devolvendo-lhe visibilidade e dignidade.

Kumu Hina é professora, líder comunitária, guardiã cultural (kumu hula) e defensora dos direitos LGBTQ+ no Havaí. É também protagonista do premiado documentário Kumu Hina (2014), que retrata sua vida como mulher trans e māhū, dedicada à preservação da língua havaiana, do hula e dos valores ancestrais dos Kanaka Maoli.

Em sua trajetória, Kumu Hina demonstra que ser māhū não é um desvio, mas uma herança espiritual. Sua mensagem ecoa uma sabedoria antiga: “Ser quem você é — entre o masculino e o feminino — é honrar a totalidade da vida.”

Por meio de sua arte, ensino e ativismo, ela mostra ao mundo que ser LGBTQ+ no Havaí é também honrar um legado ancestral de sabedoria, beleza e resistência.


Organizações LGBTQ+ no Havaí


Orgulho LGBT de Honolulu

Além de líderes individuais, diversas organizações havaianas LGBTQ+ trabalham para apoiar os Kanaka Maoli e valorizar a herança māhū. Entre elas destacam-se:

‘Ōiwi TV – promove a cultura indígena havaiana e dá voz a líderes LGBTQ+, incluindo os māhū, por meio de documentários, entrevistas e conteúdos educativos.

Hawai‘i LGBTQ+ Legacy Project – dedicado à preservação da história queer no Havaí, incluindo tradições māhū e narrativas indígenas.

Hawai‘i LGBTQ+ Center – oferece apoio social, psicológico e cultural para a comunidade LGBTQ+ local, com programas específicos voltados para jovens e idosos Kanaka Maoli.

Pa‘a Mau – organização cultural que conecta práticas ancestrais com a defesa dos direitos de gênero e diversidade sexual, resgatando rituais e ensinamentos tradicionais.

Essas iniciativas ajudam a reconectar a comunidade contemporânea com suas raízes culturais, garantindo que os māhū tenham representação, educação e espaço seguro dentro da sociedade havaiana atual.


O espírito dos māhū

No Havaí, o arco-íris nasce da terra, da cultura — e do espírito dos māhū.

Reconhecer e celebrar essa herança é um ato de respeito e reparação histórica. É lembrar que as identidades queer e trans não são “modernas”, mas antigas como o próprio mar.

O que o mundo chama hoje de diversidade, o Havaí ancestral já chamava de equilíbrio.

A história dos māhū nos lembra que as comunidades LGBTQ+ têm raízes profundas, conectadas à espiritualidade e à cultura de povos originários. No Havaí, essa identidade não apenas sobreviveu à colonização e à repressão, mas renasceu por meio de líderes, organizações e ativistas comprometidos com a preservação do legado Kanaka Maoli. Honrar os māhū é reconhecer que ser queer e trans é parte de uma tradição ancestral de sabedoria, equilíbrio e resistência — e que a diversidade sempre foi um valor central da vida havaiana.

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