O MARQUÊS DE SADE: RELIGIÃO (A Filosofia na Alcova - 1795)

A RELIGIÃO
Segundo o Marquês de Sade em A Filosofia na Alcova (1795)


Marquês de Sade: Mais do que um homem que amava a sensualidade, um pensador corajoso que enfrentou a superstição cristã em sua sociedade e defendeu a República.

Eu venho vos oferecer grandes ideias; elas serão ouvidas e sobre elas se refletirá. Ainda que todas não agradem, algumas, ao menos, ficarão e eu terei contribuído para o progresso humano e estarei contente. Não o escondo; é com tristeza que vejo a lentidão com que caminhamos, e com inquietude percebo que estamos na véspera de fracassar mais uma vez. Pensam que este fim será atingido quando nos tiverem dado leis ideais? Não o acrediteis. Que faríamos nós das leis sem a religião? Precisamos de um culto, e de um culto feito para o caráter de um republicano; porém bem diferente daquele que houve em Roma. Num século em que estamos tão convencidos de que a religião deve se apoiar sobre a moral e não a moral sobre a religião, precisamos de uma religião que se eleve sobre os costumes, que seja um desenvolvimento seu, uma consequência necessária e que possa, elevando a alma, sustentá-la perpetuamente à altura desta liberdade preciosa que é hoje seu único ídolo. Ora, eu vos pergunto se é possível supor que a religião de um escravo de Tito ou de um vil histrião da Judéia possa convir a uma nação livre e guerreira que acaba de se regenerar? Não, meus compatriotas, não, vós não o acreditais. Se desgraçadamente, o francês mergulhasse ainda uma vez nas trevas do cristianismo, o orgulho, a tirania, o despotismo dos padres, de um lado, - vícios aliás sempre renovados nesta horda impura - e a baixeza, as insignificâncias, as chatices dos dogmas e dos mistérios desta indigna e enganosa religião, de outro, embotando a energia de sua alma republicana levá-lo-iam, imediatamente, a submeter-se de novo ao jugo que sua energia acaba de quebrar.

Dominando consciências e manipulando mentes

Não nos esqueçamos de que essa pueril religião era uma das melhores armas nas mãos de nossos tiranos: um de seus primeiros dogmas era: "Dar a César o que é de César"; mas nós destronamos César e não queremos mais dar-lhe coisa alguma. Franceses, seria vã presunção acreditar que espírito de um clero juramentado fosse diverso do de um clero refratário. Há vícios de constituição que não se corrigem. Em menos de dez anos, através da religião cristã, de sua superstição, de seus preconceitos, vossos padres, a despeito dos juramentos, a despeito da pobreza, retomariam sobre as almas o antigo domínio; eles vos escravizariam de novo aos reis, pois que o poder dos reis e o da religião são uma e mesma coisa e, então, vosso edifício republicano se desmoronaria por falta de bases.

O mito de deus e do diabo: dualismo que embaça a realidade

Ó vós que empunhais a foice, desferi o golpe de misericórdia na árvore da superstição; não vos contenteis com podar os ramos, desenraizai de uma vez uma planta cujos efeitos são tão contagiosos. Convencei-vos perfeitamente de que vosso sistema de liberdade e de igualdade contraria demasiado os ministros dos altares de Cristo, para que possa existir um só deles que o adote de boa fé ou não procure abalá-lo se consegue readquirir qualquer domínio sobre as consciências. Qual o padre que, comparando o estado atual com o que gozava antigamente, não fará tudo o que de si depender para recobrar a confiança e autoridade perdidas? E quantos seres Fracos e pusilânimes não se tornarão novamente escravos desse coroinha ambicioso? Por que não imaginar que tais inconvenientes não podem renascer? Na infância da igreja cristã os padres não estavam exatamente na situação em que hoje estão? Vós vistes até onde chegaram. Quem, entretanto, os conduziu até lá? Não teriam sido os meios que a sua própria religião lhes fornece? Cara, se vós não proibis absolutamente esta religião, os que a pregam, dispondo sempre dos mesmos meios, atingirão sem dificuldade os mesmos resultados.

Controle mental e comportamental: odiosos objetivos e resultados da crença religiosa

Aniquilai pois para sempre tudo o que pode destruir um dia vossa obra. Lembrei-vos que o fruto de vossos trabalhos, estando reservados para vossos netos, é de vosso, dever, depende de vossa probidade, não deixar subsistir esses germes perigosos que poderia fazê-los mergulhar de novo no caos do qual com tanto esforço saímos. Já começam a se dissipar nossos preconceitos, o povo começa a abjurar os abusos católicos; ele próprio suprimiu os templos e ídolos. Convencionou-se que o casamento não é mais do que um ato civil, os confessionários quebrados alimentam as ladeiras públicas; os pretensos fiéis, desertando do banquete apostólico, deixam para os ratos os deuses de farinha. Não pareis, franceses. Toda a Europa, já com uma das mãos na venda que lhe cerra os olhos, espera de vós que a ajudeis a arrancá-la. Apressai-vos: não deixais que a "Santa Roma", que se agita em todos os sentidos para reprimir vossa energia, tenha tempo sequer para conservar alguns prosélitos. Golpeai decididamente sua cabeça orgulhosa e vivaz e que, em menos de dois meses, a árvore da liberdade, sombreando os destroços do trono de São Pedro, cubra com seus ramos vitoriosos todos esses desprezíveis ídolos do cristianismo, elevados, vergonhosamente, sobre as cinzas dos Catões e dos Brutos.

Era pão e vinho. Hoje poderia ser coca-cola e sanduíche. Tolice levada a sério.

Eu vos repito, franceses: a Europa espera que vós a liberteis uma só vez, do cetro e do turíbulo. Lembrai-vos de que lhes é impossível livrá-la da tirania real sem que a façais quebrar, ao mesmo tempo, os freios da superstição religiosa; os liames que as unem são tão íntimos que, se deixardes subsistir uma delas, vós recaireis imediatamente sobre o domínio da que negligenciardes de destruir. Não é diante de um ser imaginário ou de um vil impostor que um republicano deve se inclinar; seus únicos deuses devem ser agora a "coragem" e a "liberdade". Roma desapareceu desde que lá se pregou o cristianismo e a França estará perdida se aqui o reverenciam ainda.

Transubstanciação: quimera entre religião egipcia 
e judaísmo para formar um dos pilares do catolicismo

Examinemos com atenção os dogmas absurdos, os mistérios assustadores, as cerimônias monstruosas, a moral impossível dessa desagradável religião e ver-se-á se ela pode convir a uma República. Podeis acreditar, de boa fé, que eu me deixasse dominar pela opinião de um homem que eu acabasse de ver aos pés de um imbecil sacerdote de Jesus? Não, absolutamente; esse homem, irremediavelmente vil, estará sempre ligado às atrocidades do antigo regime e, desde que se submete às cretinices de uma religião tão vulgar como a que tínhamos a loucura de aceitar, não poderá mais, nem me ditar leis nem me esclarecer. Não o vejo senão como um escravo dos preconceitos e da superstição.

Inquisição:  estratégia para se livrar dos que aspiravam 
à liberdade e enriquecer a igreja com o confisco de seus bens.

Para nos convencermos desta verdade lancemos os olhos sobre o pequeno número de indivíduos que permanecem fiéis ao culto insensato de nossos pais, e veremos então se são todos eles inimigos irreconciliáveis do atual sistema; veremos se não é em seu seio que se enumera toda esta casta, justamente desprezada, dos realistas e aristocratas. Que o escravo de um bandido coroado se dobre, se deseja, aos pés de um ídolo de barro; um tal objeto é feito para sua alma de lama: quem pode servir aos reis pode adorar aos deuses. Mas nós, Franceses, nós, meus compatriotas, humilharmo-nos rasteiramente sob freios tão desprezíveis! Não! Antes morrer mil vezes do que nos escravizar de novo. Se acharmos que é necessário um culto, imitemos o dos romanos: as ações, as paixões, os heróis, eis os seus respeitáveis objetos. Tais ídolos elevaram a alma, eletrizavam-na. Faziam mais, comunicavam-lhe as virtudes dos seres respeitados. O adorador de Minerva desejava ser prudente. A coragem residia no coração daquele que era visto ajoelhar-se aos pés de Marte. Nenhum dos deuses desses grandes homens era privado de energia; todos transmitiam o fogo que os abrasava a alma de quem os venerava. E como havia a esperança de ser um dia adorado como um Deus, cada um aspirava tomar-se, pelo menos, tão grande como aquele que tomava por modelo. Que vemos, pelo contrário, nos deuses vãos do cristianismo? Que vos oferece, pergunto-vos, esta religião imbecil¹? O vulgar impostor de Nazaré faz nascer, porventura, grandes ideais? Sua vil e enfadonha mãe, a impudica Maria, vos inspira alguma virtude? Encontrais entre os santos, que guarnecem seu Eliseu, algum modelo de grandeza, de heroísmo ou de virtude? É tão verdadeiro que esta estúpida religião não se harmoniza com as grandes ideias que nenhum artista pode empregar seus atributos nos momentos que eleva. Na própria Roma a maioria dos enfeites e ornamentos do Palácio dos papas inspira-se no paganismo, e, enquanto o mundo subsistir, só ele ilumina a mente dos grandes homens.


(1) Se alguém examinar com atenção esta religião, verificará que suas características originam se, em parte, da ferocidade e da inocência doe judeus e, em parte, da indiferença e da confusão dos gentios. Em lugar de se apropriar do que os povos da antiguidade podem oferece de tom, os aparecem haver formado sua religião da mistura dos vícios que em toda parte encontraram

Isis e Maria: Plágio descarado

Seria, por outro lado, no teísmo puro, que nós viríamos a encontrar mais motivos de grandeza e elevação? Será que a adoção de uma quimera, dando à nossa alma esse grau de energia essencial às virtudes republicanas, levará o homem a desejá-las e a praticá-las? Não o acreditemos; abandonemos este fantasma e, presentemente, o ateísmo é o único sistema daqueles que sabem raciocinar. À medida que o homem se foi esclarecendo, começou a perceber que o movimento, sendo inerente à matéria, o agente necessário deste movimento não passaria de um ser ilusório e que, se tudo que existia devesse, por essência, estar em movimento, o motor inicial seria inútil. Sentiu, também, o homem, que este Deus quimérico, prudentemente inventado pelos primeiros legisladores, não passava entre suas mãos de mais um meio para aprisioná-lo e que, reservando-se o direito de fazer falar este fantasma saberiam sempre fazê-lo dizer unicamente aquilo que lhes conviesse, em apoio das leis ridículas que nos escravizavam. Licurgo, Numa, Moisés, Jesus Cristo, Maomé, todos estes grandes patifes, todos estes déspotas de nossas ideias, souberam associar as divindades que fabricavam à própria e desmesurada ambição e, certos de dominar os povos com a sanção destes deuses tiveram, como sabemos, a constante preocupação de só interrogá-los na ocasião própria e de fazê-los responder exclusivamente o que julgassem poder servi-los.

Ignore as tolices religiosas

Confundamos, pois, hoje, no mesmo desprezo, não só o Deus vão que certos impostores pregam, como todas as sutilezas religiosas que decorrem de sua ridícula adoção. Os homens livres não se deixam mais embair com brinquedos como este. Que a extinção total dos cultos conste pois dos princípios que propagamos por toda a Europa. Não nos contentemos em quebrar os cetros; pulverizemos para sempre os ídolos. Entre a superstição e a realeza só houve, sempre, um passo¹. Isto tem sido assim, pois uma das principais cláusulas da sagração dos reis foi, sempre, a manutenção da religião dominante como uma das bases políticas para a sustentação do trono. Mas já que abatemos este trono, já que o destruímos, felizmente, para sempre, não receemos extirpar também tudo aquilo que constituía seu apoio.


1. Acompanhai a história de todos os povos: vós vereis que nunca nenhum deles trocou o primitivo governo por um governo monárquico senão em consequência do próprio embrutecimento ou superstição vereis sempre os reis apoiarem a religião e a religião a sagrar os reis. E conhecida a história do intendente e do cozinheiro: Passai-me a pimenta, que eu lhe passarei a manteiga. Desgraçado gênero humano, estareis sempre destinado a ocupar o lugar do patrão destes velhacos.

Sagração de Filipe Augusto II - França

Sim, cidadãos, a religião é incoerente com o sistema da liberdade, vós já o percebeste. Nunca um homem livre se curvará diante dos deuses do cristianismo, nunca os seus dogmas, seus ritos, seus mistérios ou sua moral convirão a um republicano. Ainda um esforço! Se é que trabalhais para destruir todos os preconceitos, não deixes que subsista nenhum, pois que basta um só para fazer retomar todos. E como poderíamos ter dúvidas sobre seu retomo se aquele que deixais viver é, positivamente, o berço, a origem, de todos os outros! Deixemos de acreditar que a religião possa ser útil ao homem. Tenhamos boas leis e poderemos dispensar, perfeitamente, a religião. Mas, e se for necessária uma para o povo; se ela o distrai e o contém? Ora bem; deem-nos neste caso a única que convêm a homens livres, deem-nos os deuses do paganismo. Adoraremos de boa vontade Júpiter, Hércules ou Palas, mas não queremos mais saber do fabuloso autor dum universo que se move a si mesmo, não queremos mais saber de um Deus sem extensão e que, entretanto, enche tudo com sua imensidade, dum Deus todo poderoso e que nunca executa os seus desejos, dum ser soberanamente bom que só cria a descontentes, dum ser amigo da ordem e em cujo domínio tudo é desordem. Não, não mais queremos um Deus que desorganiza e que é o pai da confusão, e que conduz o homem mesmo quando este pratica horrores. Um Deus como este faz-nos tremer de indignação e nós deixamos para. Sempre no esquecimento donde o infame Robespierre quis tirá-lo²

De deus, o que persiste é apenas a ideia de um fantasma

(2) Todas as religiões coincidem no exaltar a sabedoria e o poder da divindade, mas desde o momento que elas nos expõem sua conduta nós só encontramos nela a imprudência a fraqueza e loucura. Deus, diz-se, criou o mundo por si mesmo e, entretanto até agora não conseguiu fazer-se adorar convenientemente por suas criaturas Deus nos faz adorá-lo e nós passamos os dias a nos rir dele. Afinal que pobre coitado que é este Deus...


Franceses, substituamos este indigno fantasma pelas imponentes figuras que fizeram de Roma a dominadora do universo; tratemos todos os ídolos cristãos como fizemos com os dos reis. Nós recolocamos os emblemas da liberdade sobre as bases que sustinham antigamente os tiranos; reergamos igualmente a efígie dos grandes homens sobre os pedestais destes vadios que o cristianismo adora.³ Cessemos de temer os efeitos do ateísmo em nossas mulheres. Os próprios camponeses não sentiram a necessidade de aniquilar o culto católico, tão contraditório com os verdadeiros princípios da liberdade? Não assistiram eles, sem nenhum medo ou dor, a destruição de seus altares e presbitérios? Podeis acreditar que eles renunciarão igualmente a este Deus ridículo. As estátuas de Marte, de Minerva e da Liberdade serão colocadas nos lugares de destaque de suas habitações. Celebrar-se-á todos os anos uma festa e, nela, será entregue uma coroa cívica ao cidadão que mais tiver merecido o reconhecimento da pátria. A entrada de um bosque solitário, Vênus, Hímen e o Amor, erguidos sob um templo agreste, receberão a homenagem dos amantes; ali a beleza coroará a constância pela mão das graças. Não será suficiente apenas amar para merecer esta coroa, será preciso ter sabido ser digno de ser amado. Heroísmo, talento, humanidade, grandeza de alma, um civismo a toda prova, eis os títulos que o amante será obrigado a colocar aos pés de sua adorada. Eles valerão pelos títulos do nascimento e da riqueza que um orgulho imbecil exigia antigamente. Pelo menos algumas virtudes brotarão deste culto enquanto que apenas crimes surgem daquele que tivemos a fraqueza de praticar. Ele se aliará com a liberdade que servimos, ele a animará, sustentá-la-á, abrasá-la-á, ao passo que o teísmo é, pela sua essência e natureza, o mais mortal dos inimigos da liberdade


(3) tratam-se aqui, daqueles homens cuja reputação é reconhecida desde muito tempo.

Deuses romanos: força, grandeza, beleza,
libido - o que há de melhor nos seres humanos

Correu por acaso, uma só gota de sangue quando os ídolos pagãos foram destruídos no Baixo-Império? A revolução preparada pela estupidez dum povo tomado novamente escravo operou-se sem o menor obstáculo. Como poderemos temer que a obra da filosofia seja mais difícil que a do despotismo? São apenas os padres que mantêm ainda aos pés de seu quimérico Deus este povo que vós tendes tanto medo de esclarecer. Afastai-o deles e o véu tombará naturalmente. Acreditai que este povo, muito mais sábio do que pensais, libertado dos ferros da tirania, sê-lo-á imediatamente dos da superstição. Vós o temeis sem este freio? Que extravagância! Ah, acreditai-me, cidadãos; aquele que o gládio material das leis não retêm, não cera retido pelo medo moral dos suplícios do infamo, de que se mofa desde a infância. Vosso teísmo, em uma palavra, fez cometer muitos crimes mas não impediu nenhum, jamais. Se é verdade que as paixões cegam, que elas fazem erguer-se um véu sobre nossos olhos, que nos escondem os perigos de que se cercam, como poderemos supor que aquilo que está longe de nós, como as punições anunciadas pelo vosso Deus, possa dissipar esta nuvem que o próprio gládio da lei, sempre suspenso sobre as paixões, não consegue desfazer? Se fica pois provado que este freio suplementar, imposto pela ideia de um Deus, resulta inútil, se está demonstrado que ele é mesmo perigoso pelos seus outros efeitos, eu pergunto: para que poderá ele servir e que razões poderiam valer para prolongar-lhe a existência? Dir-me-ão que o tempo não está ainda maduro para que consolidemos nossa revolução com tal brilho. Ah, meus concidadãos; o caminho que percorremos desde 89 foi muito mais difícil do que o que nos resta completar e nós precisaremos trabalhar muito menos a opinião, neste sentido, do que fizemos naquele período, desde a tomada da Bastilha. Acreditemos que um povo, bastante sábio, bastante corajoso para conduzir um monarca imprudente do cume de suas grandezas aos pés do cadafalso, que em tão poucos anos soube vencer tantos preconceitos, quebrar tantos freios ridículos, sê-lo-á bastante para imolar à prosperidade da república um fantasma muito mais ilusório ainda do que poderia ser o de um rei. Frangi, vós desferireis os primeiro golpes: vossa educação nacional fará o resto. Mas trabalhai prontamente, esta é uma de vossas tarefas mais importantes. Que ela tenha sobretudo por base esta moral essencial, tão negligenciada na educação religiosa. Substitui as imbecilidades teístas, com que fatigais os jovens órgãos de vossas crianças, por excelentes princípios sociais. Que, em lugar de aprender a recitar preces fúteis, que se orgulharão de ter esquecido, aos dezesseis anos, elas estejam instruídas em seus deveres para com a sociedade. Ensinai-lhes a admirar aquelas virtudes de que lhes faláveis antigamente e que, dispensando vossas fábulas religiosas, bastam-lhe para sua felicidade pessoal. Fazei que eles percebam que esta felicidade consiste em fazer os outros tão felizes quanto nós mesmos desejamos ser. Se assentais estas verdades sobre essa quimera cristã, como antigamente tínheis a loucura, de fazer, vossos alunos se apercebendo da futilidade das bases, botarão abaixo o edifício todo e se tonarão verdadeiros celerados somente por acreditar que a religião os proibia de sê-lo. Fazendo-os sentir, ao contrário, a necessidade da virtude, unicamente porque a sua própria felicidade depende dela, eles serão honestos por egoísmo e, como este domina todos os homens, ela estará assentada em bases solidíssimas. Que se evite, pois, com o maior cuidado, misturar qualquer fábula religiosa a esta educação nacional. Não esqueçamos nunca que são homens livres que desejamos formar e não vis admiradores de um Deus qualquer. Que um filósofo simples instrua estes novos alunos sobre a sublime incognoscibilidade da natureza; que ele lhes prove que o conhecimento de um Deus, muitas vezes perigoso aos homens, nunca serviu à sua felicidade e que eles não serão mais felizes, admitindo como causa do que não compreendem, algo que eles compreendem ainda menos; que é muito menos importante compreende. A natureza do que respeitar-lhes as leis e saber utilizá-las a seu favor; que estas leis são tão sábias quanto simples; que estão inscritas no coração de todos os homens e que basta interrogar este coração para perceber-lhes o sentido. Se eles desejarem, de qualquer maneira, que vós faleis de um criador, respondei-lhes que, tendo sido as coisas sempre aquilo que são, não tendo nunca tido começo e não devendo jamais ter fim, é tão inútil quando impossível ao homem remontar a uma origem imaginária, que nada explicaria e nada acrescentaria. Dizei-lhes que é impossível aos homens terem ideias verdadeiras sobre um ser que não age sobre nenhum de nossos sentidos.

Nenhum sinal de deus em parte alguma

Todas nossas ideias são representações de objeto que nos impressionam. Como poderemos representar a ideia de Deus, que, evidentemente, é uma ideia sem objeto? Uma tal ideia, ajuntai, não será tão impossível como um efeito sem causa? Uma ideia sem protótipo pode ser outra coisa que uma simples quimera? Alguns doutores, continuareis, asseguram que a ideia de Deus é inata e que os homens já a possuem no ventre materno. Mas isto é falso, ajuntareis. Todo princípio é um juízo, todo juízo é o efeito de uma experiência e a experiência só se adquire exercitando os sentidos; donde se segue que os princípios religiosos não se fumam sobre nada e, portanto, não são inatos. Como se pode, continuareis, persuadir a seres razoáveis que a coisa mais difícil a compreender era a mais essencial para eles? É que os aterrorizaram, é que, quando se tem medo cessa-se de raciocinar; é que, quando chega a ser recomendado que se desconfie da razão e quando o cérebro é perturbado, crê-se em tudo e não se examine nada. A ignorância e o medo, dir-lhes-ei ainda, eis as duas bases de todas as religiões. A incerteza que domina o homem relativamente a Deus, eis precisamente o motivo que o prende ã sua religião. Nas trevas o homem tem medo, tanto física quando moralmente; torna-se habitual e transforma-se, mesmo, em necessidade: ele acreditará faltar alguma coisa se não tiver mais nada a esperar ou a temer; retomai, em seguida, à utilidade da moral: fornecei-lhes sobre este importante assunto mais exemplos que lições, mais provas que livros, e deles fareis bons cidadãos, bons guerreiros, bons pais e bons esposos; fareis deles homens tanto mais ligados à liberdade do próprio país quanto a ideia de servidão não poderá mais apresentar-se ao seu espírito, quando o terror religioso não perturbará seu gênio. Então, o verdadeiro patriotismo brilhará em todas as almas; reinará aí com toda sua força e com toda sua pureza, porque será o único sentimento dominante e nenhuma ideia estranha diminuir-lhe-á a energia. Então vossa Segunda geração estará garantida e vossa obra, consolidada por ela, tornar-se-á a lei do universo. Mas, se por medo ou pusilanimidade estes conselhos não forem ouvidos e se deixar subsistir as bases do edifício que se acredita ter destruído, que acontecerá? Reconstruir-se-á sobre estas bases e, sobre elas, se erguerão os mesmos colossos com a cruel diferença que, desta vez, eles serão cimentados tão fortemente que nem a vossa geração, nem as que a seguirem, conseguirão jamais destruí-los.

A conversão de Constantino 
(imperador romano e primeiro chefe universal da Igreja)


Que não se tenham dúvidas sobre serem as religiões a base do despotismo. O primeiro déspota foi um padre; o primeiro rei e o primeiro imperador de Roma, Numa e Augusto, associaram-se ambos ao sacerdócio; Constantino e Clóvis foram mais bispos que soberanos; Heliogábalo foi um sacerdote devasso. Em todos os tempos, em todos os séculos houve, entre o despotismo e a religião, uma tal conexão que fica mais que demonstrado que, ao destruir-se um, solapa-se o outro, pela simples razão de que o primeiro servirá sempre de lei ao segundo. Não proponho, entretanto, nem massacres, nem deportações; estes horrores estão bem longe de minha alma para que os ouse conceber sequer um minuto. Não, não assassinarei, não deportarei. Estas atrocidades, são próprias dos reis e dos celerados que os incitaram. Não será imitando-os que vós fareis que eles sejam execrados; não empregueis a força senão com os ídolos; usai o ridículo com que os servem. Os sarcasmos de Juliano fizeram mais mal à religião cristã que todos os suplícios de Nero. Sim, destruamos, destruamos para sempre toda ideia de Deus e transformemos seus sacerdotes em soldados; já alguns o são, e que permaneçam nesta ocupação tão nobre para um republicano. Mas que eles não nos falem mais nem desse ser quimérico nem de sua religião fabulosa, único objeto de nosso desprezo. Condenemos a ser vaiado, ridicularizado, coberto de lama em todas as esquinas das maiores cidades da França, o primeiro abençoado charlatão que nos vier falar ainda de Deus ou de religião: prisão perpétua será a pena para aquele que cair duas vezes no mesmo erro. Que as mais insultuosas blasfêmias, os livros mais ateus, sejam plenamente autorizados, a fim de extirpar do coração e da memória dos homens estes temíveis brinquedos de nossa infância. Que se organize um concurso para a obra mais capaz de esclarecer os europeus sobre uma matéria tão importante e que um prêmio considerável, conferido pela nação, seja a recompensa daquele que, tendo dito tudo, tudo demonstrado sobre esta matéria, não deixe mais nada para seus compatriotas que uma foice para aniquilar estes fantasmas e um coração pronto a odiá-los. Em seis meses tudo estará acabado; vosso infame Deus estará no nada e isto sem que deixemos de ser justos, ciumentos da estima alheia; sem que deixemos de temer o gládio das leis e de sermos honestos. Porque nos teremos apercebido de que o verdadeiro amigo da pátria não deve, como escravo dos reis, deixar-se conduzir por quimeras. Pois que não é, afinal, nem a frívola esperança de um mundo melhor, nem o receio de maiores males do que aqueles que nos envia a natureza, que devem conduzir um republicano, cujo único guia é a virtude, cujo único freio é o remorso.

Liberdade para ser feliz!



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UM LIVRO CONTESTADOR E INSPIRADOR:

Em Busca de Mim Mesmo

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O CHIP DA BESTA

03/05/2015

Por Sergio Viula


O CHIP DA BESTA


Por Sergio Viula



Antes de tudo, preciso contar uma pequena história.

Estava eu usando o Facebook, quando, de repente, uma mensagem chega ao meu Whatsapp. Não sabia quem era. Não reconheci a foto de imediato e não havia nome. A mensagem foi a seguinte (pouparei o nome):

Amiga: Olá. Você está sabendo do tal chip que irão colocar na gente? Estou com medo.

Eu: Você está brincando, é claro.

Amiga: Por que estaria brincando? Estou, não. Por que é que eles querem colocar logo na mão e na testa?

Eu: Isso é boato. Já foi desmentido. É disso que vivem esses pastores caça-níqueis. Eles brincam com os medos das pessoas; medos que eles mesmos implantam.

Amiga: (emoticon chorando) Apocalipse fala disso, não é?

Eu: O medo é mais eficiente no controle das pessoas do que um chip.

Amiga: Estou falando com você, porque é teólogo.

Eu: O Apocalipse fala em chip? Só por aí, você vê a força que eles fazem.

Amiga: Estou com muito medo.

Eu: Posso te garantir que o apocalipse é uma alegoria escrita para consolar os que estavam para morrer no primeiro século, e decepcionados, porque Cristo não voltou naquela geração, como prometera.

Amiga: Onde foi desmentido?

Eu: [O Apocalipse] nada tem a ver com o nosso cotidiano. Faz o contrário, procura a fonte que disse isso e vê se é alguma organização com vínculo com igreja. Outra, por que a TV não falou sobre isso? É mais um boato da Internet.

Amiga: Estou sem computador, mas sabia que você iria me acalmar. Ai, Sergio, sou muito medrosa.

(FIM DA CONVERSA)

Fiquei mesmo besta com tanta besteira sobre o tal “chip da Besta”. Inicialmente, decidi nem falar sobre o assunto nos meus canais, mas a minha amiga continuou perdendo o sono. Para completar, minha irmã me pediu que falasse. Então, rendi-me. Espero que o conteúdo da coluna esse domingo seja útil a crentes e não crentes.

Primeiramente, gostaria destacar uma coisa: nossa mente trabalha através de representações e associações. Isso quer dizer que quando ouvimos um termo, costumamos liga-lo a outros. Isso acontece sem que possamos evitar. As associações podem ser as mais variadas, dependendo do indivíduo e do meio onde vive e de onde recebe input continuamente. A título de exemplificação, o que acontece é mais ou menos isso:




Não há nada de trivial nisso tudo. Pelo contrário, existe engodo e autoengano envolvido nesse processo, ou seja, que uma ficção se conecta a outras ficções, gerando desdobramentos sérios para a racionalidade e para as emoções do indivíduo, afetando diretamente seu juízo sobre o real, a partir de um esquema que não tem qualquer ancoramento na realidade. Além disso, precisamos manter em mente que há pessoas que matam e/ou morrem por ideias como essas.

Mas, o tal chip da Besta não é novidade de modo algum; já houve outros mecanismos de identificação via computador que foram demonizados por esses incendiários apocalípticos. Um deles foi o código de barras. Tenho certeza que alguns leitores lembrarão. Quanto a mim, eu ainda estava na igreja, bem no começo da minha experiência com os crentes, e muitos pastores diziam que esse código já era o “espírito do anticristo” atuando no mundo. Os crentes ficavam apavorados, acreditando que Cristo devia voltar a qualquer momento. Lembro-me de um dia em que estourou um transformador na rua da igreja, e o povo todo clamou como se fosse a volta de Cristo, tão manipulados estavam em meio a uma pregação desse tipo. Teve gente quase infartando… vai ver o que andava fazendo. (risos)

Mas, veja o que aconteceu quando o código de barras vingou: os pastores, depois de fazerem o povo de besta, adotaram o propalado “sistema do anticristo” para venderem bíblias, bem como livros de sua própria autoria, tanto em território nacional como no exterior.

Bíblias e livros evangélicos com a “marca da Besta”?

Não. Na verdade, apenas mais uma inovação tecnológica, na qual eles pegaram carona, assim que viram que o lucro seria maior abafando o que haviam dito antes do que continuar demonizando aquela ferramenta de venda$$$ tão eficaz.

Mas, cá entre nós: o que esperar de gente que vê demônios em todos os lugares, inclusive em desenhos da Disney? Essa gente que acredita que a TV é do capeta, exceto por aqueles canais ou programas que pertencem aos endinheirados empresários da fé – os pastores televisivos que vociferam contra a ciência e a cultura popular, os tais bispos curandeiros e exorcistas, e os emplumados padres cantores.

Pior ainda é que a cegueira que esse tipo de crença impõe sobre o indivíduo que a ela se submete é capaz de mobiliza-lo contra demandas legítimas em nome de interesses escusos da parte das lideranças que se promovem através dessas tolices.

Esses líderes se escondem atrás da velha cortina de fumaça que a frase “vigia, irmão, que isso é do Diabo” consegue estender ao redor de algumas das coisas mais belas e úteis que a vida nos proporciona.

O outro lado dessa encardida moeda é a frase “Deus me revelou.” Essa frase torna até as coisas mais absurdas palatáveis e portadoras de um status de “verdade” inquestionável, mesmo quando se trata da maior estupidez do mundo!

É assim que gente da laia dos deputados fundamentalistas da bancada evangélica, bem como pastores televisivos abertamente anti-gays, fazem “escola” até entre aqueles que não frequentam igrejas, mas continuam acreditando que haja algo da moralidade mórbida, apregoada por esses vendilhões do templo, que deva ser apreciado, poupado, replicado – e aqui entram até mesmo alguns ateus. What the fuck??? Sim, novamente o fenômeno das associações mentais arraigadas na imaginação e na memória, preservando ideias que não necessariamente as apocalípticas, mas, nem por isso, menos judaico-cristãs, ou não menos nocivas.

Basta observar como a mesma papagaiada fundamentalista costuma acompanhar qualquer publicação nas redes sociais que defendam direitos femininos, direitos LGBT, direitos das minorias étnicas, a liberdade de culto, especialmente para religiões de matriz africana, a laicidade do Estado e de suas instituições, o respeito às minorias ateístas, agnósticas e céticas, a honesta consideração das críticas desses grupos à isenção de impostos para organizações religiosas, bem como benefícios concedidos a esses grupos, tais como as concessões de TV, rádio e outros meios de comunicação – todos controlados pelo Estado – e por aí vai. Infelizmente, os comentários de muitos religiosos e alguns ateus se assemelham demais, às vezes, dependendo de quem está na mira deles.

O que muitas pessoas não percebem é que enquanto esses exploradores da fé do povo apontam para um suposto inimigo de Deus ou da igreja (geralmente pessoas gays, lésbicas, bissexuais, transgêneras, ou seguidores de outras religiões, além dos ateus, agnósticos e céticos, ou apenas livres pensadores que questionam os objetivos e métodos desses pastores), eles vão enchendo o cofre de seus gabinetes com o dinheiro dos fiéis. Para isso,juram que todas essas pessoas são obra do Diabo e que qualquer inclusão é mera preparação para o reino Anticristo, porque sabem que para exercerem controle, inclusive sobre as finanças do rebanho, nada melhor do que espalhar o pânico sobre coisas e pessoas que não oferecem o menor risco para terceiros. Assim, matam dois coelhos com uma pedrada só, porque enriquecem e arruínam (e silenciam) muitas pessoas que ousam discordar de suas pregações venenosas.

E sabe por que eles sempre usam o Apocalipse? Simplesmente, porque este é o livro mais incompreendido de toda a Bíblia por parte de seus leitores, inclusive os mais assíduos. Seu obscuro conteúdo, que é típico de religiões de mistério, muito comuns na Grécia e na Roma daqueles dias, facilita essa manipulação. Então, para fazer jus aos fatos, quero esclarecer alguns pontos:

1. Estudiosos situam a escrita do Apocalipse entre 90 e 100 d. C. Isso quer dizer que a cidade de Jerusalém já havia sido devastada, o templo destruído, e os judeus dispersos. O livro, portanto, é uma tentativa de consolar os infelizes cristãos daquele tempo;Como Cristo não voltou antes que aquela geração morresse. João, segundo a tradição, o último apóstolo a morrer, estaria tentando transferir a atenção dos cristãos desiludidos para um reino pós-mundano, futurista. Em outras palavras, já que as profecias falharam, precisamos reinterpreta-las e apresentar essa versão como um revelação. Não é à toa que outro nome para o Apocalipse é Revelação. 

2. O primeiro nome pegou, porque é justamente a palavra grega que escatologistas e o cinema mais gostam de explorar. O medo sempre rende lucro$. Reinterpretação de profecias que não se cumpriram é uma tática usada ainda hoje.

3. A mensagem central do Apocalipse é que Cristo venceu a morte. E para mostrar Cristo como vencedor sobre o Deus grego que cuidava do mundo subterrâneo (supostamente o mundo dos mortos), o Apocalipse diz que Hades e o inferno (mundo dos mortos que não tinha fogo no mito grego) foram lançados no lago de fogo e enxofre, que a segunda morte. Ou seja, Cristo estabelece uma morte para os que já estavam mortos, numa clara tentativa de suplantar a mitologia grega com a mitologia do Deus cristão: apenas mais uma guerrinha de deuses – ambos frutos da imaginação fértil de homens habituados a atribuir todos os fenômenos naturais a algo para além deles.

4. Outra coisa é a promessa da coroa da vida a quem fosse fiel até a morte. Isso é claramente um estímulo a que se encarasse o martírio e a morte sem negar a fé. Apenas outra metáfora: a do atleta coroado. O atleta era a expressão máxima da excelência entre os gregos. Agora era mesclada com o cristão para dar a ideia de que o cristão é a excelência da “criação”. O outro lado dessa moeda, caso a recompensa não convencesse a todos, era o castigo eterno para os desertores.

5. Nero, Domiciano, e Tito Flávio, que destruiu o Templo e veio a ser imperador eram vistos como anticristos no início do cristianismo. O Apocalipse faz uso dessa figura que Paulo já tinha usado em outras passagens, tanto para se referir ao “espírito” desse mundo como aos pregadores do que ele considerava heresia, inclusive aqueles que diziam que Cristo não havia ressuscitado. Paulo coloca o Anticristo, às vezes, no singular, às vezes, no plural, como uma personagem que se levanta contra tudo o que é de Deus, e blá, blá, blá. Mas, o Anticristo não passa da figura do imperador romano, isso na visão de João e de outros cristãos: a encarnação do mal. E quando ele é chamado de besta, isso quer dizer apenas que age como um animal feroz. Cristo também é representado por animais: o cordeiro e o leão, por exemplo. Mas seria Cristo um bicho domesticado em alguns momentos e uma besta-fera em outros momentos? Claro que essas são apenas metáforas do sacrifício (cordeiro) e do reino (leão), assim como a metáfora do animal selvagem e violento, é aplicada ao imperador romano quando João o chama de “a Besta” ou anticristo.

6. O Apocalipse é uma afirmação do triunfo final de Jerusalém sobre Roma, e de Cristo sobre os imperadores romanos. Não passa de ressentimento judaico por terem visto destruída a Jerusalém “terrestre”. Por isso, inventaram uma Jerusalém que “desce do céu”. O tal nome da Besta, que é codificado como 666, é apenas uma representação dos imperadores romanos. O imperador era chamado de rei dos reis. Vejam que João usurpa o termo usado pelos romanos e o aplica a Jesus, mas é justamente isso que significa ser imperador: é ser rei de outros reis. O imperador dominava reinos e se tornava senhor deles. Não há nada de contemporâneo ou futurista nisso. É tudo cortina de fumaça para enrolar os cristãos que se sentiam pressionados por diversos inimigos e se frustravam por não verem a promessa do reino de Deus na terra cumprida.

Então, estejam avisados, senhoras e senhores: o mito do “chip da Besta”, além de pura imaginação (como é da natureza dos mitos), é um atestado de sua pobreza intelectual, passado pelo próprio pastor a quem você tanto considera. E esse mito cristão nem sequer tem o conteúdo riquíssimo dos mais conhecidos mitos gregos, diga-se de passagem.

Não que um chip não possa ser implantado com informações como aquelas que constam em documentos pessoais, assim como outras de interesse comercial, mas isso nada tem a ver com um suposto representante do Diabo – um suposto Anticristo. Na verdade, nem precisamos de chip implantado para sermos monitorados; já somos! Agora mesmo, governos e empresas têm todos os nossos dados armazenados, graças ao uso que fazemos de smartphones e computadores ligados à rede mundial de computadores – a Internet. A discussão que cabe aqui não é se isso é do Diabo ou de Deus, mas se nossa privacidade e o domínio de nossas informações pessoais deveriam ser violados assim. A questão é da ordem do direito, não da religião. Veja essa matéria. Coincidência ou não, foi produzida e veiculada pela emissora do dono da Igreja Universal: https://youtu.be/IXPb6ze58GE

O site E-farsas também já desmentiu essa ideia sensacionalista de que todo mundo seria chipado nos EUA e na Europa, mas, agora, sobrou para o Brasil. Até a Dilma foi alvo dos boatos desses fundamentalistas viciados em teorias de conspiração. Veja o que diz o site: http://www.e-farsas.com/dilma-aprova-a-implantacao-de-chip-nos-brasileiros-em-2015.html

O site Mega Curioso também falou sobre o tal do Mondex. Esta foi outra ficção que andou rondando as redes sociais há algum tempo. Esse Mondex, na opinião de alguns crentes, seria o chip da Besta. Mais uma previsão furada: http://www.megacurioso.com.br/mito-ou-verdade/45565-chip-mondex-e-a-marca-da-besta-realidade-ou-ficcao-das-mais-fantasiosas.htm

Quanto à possibilidade do mundo acabar (o que é bem provável), isso nada tem a ver com deuses ou diabos. O mundo, como o conhecemos hoje, é relativamente recente e provavelmente deixará de ter essa configuração daqui a alguns anos – podem ser séculos, milênios, milhões de anos. Parece certo que o mundo deixará de ser como o conhecemos, mas nenhum de nós estará mais vivo para testemunhar isso.

Todas as formas podem passar, mas a matéria é eterna. E do mesmo jeito que o universo, como o vemos hoje, surgiu sem o concurso de qualquer vontade divina, nosso planeta, quiçá nossa galáxia inteira, deixará de ser como é, mas não para se tornar um paraíso espiritual; simplesmente para se transformar em outra coisa cuja potência se encontra na própria matéria e nas relações de força que ora a configuram de um modo, ora de outro, conforme essas forças se opõe, subjugam e submetem, nunca sem resistência, e sempre com a possibilidade de reconfigurações.

Toda essa balela de Anticristo, Besta do Apocalipse, etc. é apenas fruto da imaginação humana, dominada pelo medo; medo esse alimentado pelos pregadores do absurdo, sejam eles pentecostais, católicos, adventistas (esses, então, amam muito tudo isso), mas há outros.

E no que baseiam esses fanáticos todas essas imaginações absurdas? Nos seguintes versículos, principalmente:

“E faz que a todos, pequenos e grandes, ricos e pobres, livres e servos, lhes seja posto um sinal na mão direita ou na testa, para que ninguém possa comprar ou vender, senão aquele que tiver o sinal, ou o nome da besta, ou o número do seu nome… e o seu número é seiscentos e sessenta e seis.” (Apocalipse 13:16-18)

O problema é que o número 666 é apenas uma alegoria para se referir a um homem que quer ser como Deus, mas nunca será, segundo o cristianismo. Já, nós ateus, pensamos que homem algum será como Deus pelo simples fato de Deus não existir. Se existe algo, é apenas uma ideia na mente humana, sempre baseada em coisas que os seres humanos sabem de si e do seu entorno. Até mesmo na mente humana, nada surge do nada; há sempre muitas combinações, associações, configurações do que já vimos ou experimentamos. e é isso que é usado como base para todas as ideias, inclusive as religiosas. Não foi Deus que nos fez a sua imagem e semelhança; foi o contrário.

Pois é, voltando aos romanos, os imperadores, fizeram exatamente isso: afirmaram que eram divinos. Os judeus odiavam isso. Lebremo-nos que todos os apóstolos de Jesus eram judeus, incluindo ele mesmo, é claro.

Quanto ao impedimento de comprar e vender, caso não tivessem o sinal ou o nome da besta, isso é outra alegoria para o que faziam os imperadores com seus inimigos: impediam-nos de sair de suas cidades através de cercos ou decretavam a prisão e a morte daqueles que não jurassem lealdade máxima a eles.

Todo esse delírio profético (já pretérito, mas ainda usado por muitos cristãos contemporâneos como sendo futurista) não passa de uma tentativa de dar a Jesus o que ele nunca conseguiu sozinho: glória. E até mesmo essa ideia de glória é extraída da experiência desses povos com sua submissão a reis e imperadores. Tudo mesclagem. Muito plágio também. Tudo uma tentativa de salvaguardar o modus vivendi judaico, ameaçado de extinção, graças aos avanços do império romano. Essas crenças judaico-cristãs só sobreviveram para nos atormentar com tais fábulas, porque o cristianismo foi incorporado pelo império romano através de Constantino.

Em vez de continuar combatendo a seita dos nazarenos, como haviam feito seus antecessores, Constantino viu na assimilação uma estratégia de domínio e de pacificação de uma região sempre revoltosa – o Oriente Médio.

Essencialmente, o cristianismo não é melhor que qualquer outra mitologia, seja grega, asteca, maia, inca, egípcia, babilônica, chinesa, etc. Pelo contrário, é bem mais pobre que todas elas, individualmente, e precisou beber das crenças gregas e romanas para se constituir como o conhecemos hoje, seja qual for sua denominação: católico, ortodoxo, protestante, pentecostal, etc.

Então, em vez de ficar borrando as calças com fábulas infantis contadas como se fossem coisas seríssimas e urgentíssimas, viva tudo o que há para viver. Faça da sua vida o que bem entender. Estabeleça como limite último a não violação dos direitos alheios, sabendo que as outras pessoas também viverão como bem entenderem, desde que respeitem o mesmo limite. E se existe uma força coercitiva e destrutiva que tem promovido mais violações do que quaisquer outras, essa é a moral baseada nas crenças religiosas que acabei de comentar, bem como outras semelhantes. Nenhum chip será capaz de exercer mais controle sobre você do que tais fábulas, isso se você acreditar realmente nelas ou for influenciado por elas, mesmo negando qualquer fé.



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O equívoco de quem não sabe fazer distinção entre vingança e justiça.

11/05/2015


Por Sergio Viula


“MINHA É A VINGANÇA. EU RETRIBUIREI.”

Quem foi o doido que disse isso?

Jeová!


O equívoco de quem não sabe fazer distinção entre vingança e justiça.

Quando um deus confunde justiça com vingança, claro está que ele mesmo não passa de uma projeção da paupérrima mentalidade de homens vingativos e movidos pela temerária emoção da ira, em vez de se conduzirem pela racionalidade e pela benignidade.

Bem, isso é exatamente o que encontramos nas três escrituras sagradas dos três maiores monoteísmo do nosso tempo: judaísmo, cristianismo e islamismo.

As escrituras judaicas dizem em Ezequiel 25:17 o seguinte (grifo meu): “E executarei sobre eles grandes vinganças, com furiosos castigos, e saberão que eu sou o Senhor, quando eu tiver exercido a minha vingança sobre eles.”

As escrituras cristãs, em 2 Tessalonicenses 1:7,8, dizem o seguinte (grifo meu): “…quando se manifestar o Senhor Jesus desde o céu com os anjos do seu poder,
Com labareda de fogo, tomando vingança dos que não conhecem a Deus e dos que não obedecem ao evangelho de nosso Senhor Jesus Cristo…”

Nas escrituras muçulmanas, Sürah 22:57, versão inglesa editada pela Saheeh International, está escrito seguinte (traduzo logo a seguir): “And they who disbelieved and denied Our signs – for those there will be a humiliating punishment.” “E aqueles que descreram e negaram Nossos sinais – para esses haverá uma punição humilhante.”

Vejamos então o que há de errado no conceito de vingança para que o consideremos diametralmente oposto ao conceito de justiça.

De acordo com o Dicionário Aurélio, vingança é: “atitude de quem se sente ofendido ou lesado por outrem e efetua contra ele uma ação mais ou menos equivalente.”

Essa definição mostra claramente a incoerência de um deus que seja, ao mesmo tempo, perfeito e vingativo. Se um dos aspectos da perfeição de deus é a imutabilidade, ele não pode se abalar com o que acontece externamente. Em outras palavras, nada abaixo (muitíssimo abaixo dele, já que ele é o Altíssimo) deveria atingi-lo – nem mesmo minimamente. Isso quer dizer, entre outras coisas, que ele não deveria e nem poderia se sentir ofendido ou lesado por outrem. Afinal, quem poderia lesa-lo? Se alguém pudesse causar-lhe algum mal, esse alguém teria encontrado em deus uma fraqueza, uma imperfeição, e deus já não seria tão grande assim.

Se, além disso, esse deus sentisse vontade de efetuar contra o ofensor uma ação mais ou menos equivalente, ele seria tão mesquinho quanto qualquer bandidinho em boca-de-fumo nos milhares pontos de tráfico espalhados Brasil afora.

Pior ainda: não existe a menor equivalência entre a ofensa humana e a vingança perpetrada por esse deus. A razão é simples: quem escreveu isso não entendia a diferença entre justiça e vingança e nem conseguia pensar de modo coerente a tal perfeição divina e os sentimentos humanos atribuídos à divindade.

Observe a desproporção: a desforra é uma eternidade de sofrimento sem fim e sem medida, mas as ofensas podem ser tão tolas quanto não declarar que “Jeová é Deus” (judeus), que “Jesus é o salvador” (cristãos), ou que “Alá é Deus e Maomé é o seu profeta” (muçulmanos).

E não importa se isso aconteceu durante os meros 10 anos de vida de uma criança que morra precocemente ou durante os 120 anos de um ancião duro na queda – o castigo será insuportável e sem fim. Só que não. Isso é apenas imaginação de mentes ambiciosas que sabiam manipular homens medrosos e culpados como ninguém.

Mas, nem mesmo o mais fiel dos judeus, cristãos ou muçulmanos poderá ter certeza de que viveu como seu deus queria, porque a menor ofensa pode trazer grande vingança. Vide a mulher de Ló, transformada em estátua de sal por ter simplesmente dado uma olhadinha para trás (Velho Testamento). Ou, então, Ananias e Safira, mortos por deus diante dos apóstolos, porque venderam um terreno e entregaram o valor como se fosse 100% da venda, mas guardaram uma parte para si de um terreno que era dos próprios (Novo Testamento). Veja como muçulmanos que falham em cumprir certos rituais são assassinados como infiéis, apesar de uma vida de dedicação ao seu deus (em todas as teocracias muçulmanas atuais). E isso tudo baseado nos textos sagrados.

Parece que os deuses dos três monoteísmos abraâmicos não são melhores que quaisquer outros mitos antigos, afinal. Pelo contrário, há deuses muito mais interessantes em outras paragens.

O que é a justiça, então?


Novamente, o Dicionário Aurélio oferece várias pistas:

No campo do conceito, é a prática e exercício do que é de direito; a conformidade com o direito; o direito; a retidão.

No campo institucional, são os magistrados e outros indivíduos do foro; o poder judiciário; a lei penal; a punição jurídica.

No campo a ética, é fazer o justo; o merecido; obrar ou julgar segundo o que é justo.

Mas nossas mentes foram colonizadas para pensar de modo muito diferente daquele que seria justo de fato.

Fomos educados a pensar que a vingança de deus é boa. E muitas pessoas ficam felizes quando um desafeto sofre, porque atribui a deus a vingança que ela mesma não poderia ter executados sem se tornar condenável. E como é que deus pode continuar sendo bom fazendo a mesma coisa que me tornaria condenável?

A vingança nunca é boa. A vingança é filha da intemperança, da falta de domínio próprio. Ela nos tenta porque desejamos fazer o mal, mas quando não o fazemos é porque exercemos nosso domínio próprio para reprimir as ações motivadas por tais sentimentos. O problema é que um deus realmente benigno nem mesmo deveria (ou sequer poderia) desejar fazer o mal. E, sendo a vingança destituída de benignidade, é uma contradição aceitar que deus seja benigno e vingativo ao mesmo tempo. Ele não pode ser os dois. Ou ele se vinga e é maligno. Ou ele não se deixa afetar pelo seu derredor, e não se vinga de modo algum, e é benigno.

Por causa desse equivoco, muitas pessoas toleram a vingança feita pelos próprios seres humanos, uns contra os outros, chegando a dizer que o tal vingativo pode ter sido usado por deus para fazer justiça. Veja a confusão de termos e conceitos aparecendo aí novamente. NÃO HÁ JUSTIÇA NA VINGANÇA. Só há ira e intemperança. Só há orgulho e egoísmo trabalhando juntos.

Mas será que a justiça existe mesmo? Será que ela é um ente? A resposta é simples: NÃO! Nós somos os que produzimos a justiça.

Mais do que isso: o fato de algo estar em conformidade com as leis, não significa que seja justo. Pode ser legal, juridicamente falando, enforcar adolescentes gays no Irã, mas isso não é justo. Pode ser legal escravizar outras pessoas, como já o foi no Brasil, mas isso não é justo.

Como diz André Comte-Sponville, “quando a lei é injusta, é justo combatê-la – e pode ser justo, às vezes, violá-la.”

Mas vai além disso: nem mesmo distribuir as oportunidades ou bens em proporções iguais para todos, sem distinguir suas individualidades e necessidades pessoais, é necessariamente fazer justiça. Daí, as vagas especiais para motoristas cadeirantes em estacionamentos; a prioridade no atendimento a pessoas idosas e grávidas; a reserva de vagas para pessoas com necessidades especiais em concursos públicos; a exigência de que as empresas privadas incluam pessoas com necessidades especiais nos seus quadros de funcionários; e por aí vai.

Para que haja igualdade, será preciso que se trate de modo diferenciado aqueles que têm necessidades diferentes.

Para quem ainda não conhece a lei que regulamenta a contratação de pessoas com necessidades especiais, trata-se da lei número 8.213, de 24 de julho de 1991. Seu artigo 93, diz o seguinte:

A empresa com 100 ou mais funcionários está obrigada a preencher de dois a cinco por cento dos seus cargos com beneficiários reabilitados, ou pessoas portadoras de deficiência, na seguinte proporção:

– até 200 funcionários……………… 2%

– de 201 a 500 funcionários……….. 3%

– de 501 a 1000 funcionários……… 4%

– de 1001 em diante funcionários… 5%

Não adianta alinhar corredores sem quaisquer necessidades especiais com corredores que apresentem alguma deficiência física e/ou mental no ponto de partida e dizer que todos eles estão recebendo as mesmas oportunidades, ou chances, de ganhar. Se alguns deles são cegos, amputados ou portadores da Síndrome de Down, alguma concessão terá que ser feita para que eles tenham realmente as mesmas chances que os outros que não são portadores de deficiência alguma.

Não há mudança sem conscientização e mobilização. Quando as leis ferem os direitos básicos dos seres humanos ou quando nem mesmo há legislação para efetivar esses direitos, precisamos pressionar nosso legislativo e nosso judiciário para que considerem essas injustiças e aprimorem o Direito. Esse é o melhor caminho para garantirmos a todos possibilidades de vida mais justas, pelo menos o mais justo possível. Cito Comte-Sponville de novo:

“E para isso, é necessário um critério, ainda que aproximativo, e um principio ainda que incerto. O princípio deve estar do lado de certa igualdade, ou reciprocidade, ou equivalência, entre indivíduos, sem se reduzir a ela. É a origem da palavra equidade (de aequus, igual), que seria sinônimo de justiça.”

Os justos tendem a essa igualdade, mas os injustos querem combatê-la.

Não é fácil ser justo, mas é doce o fruto da justiça. E para produzir justiça, vale a pena seguir o conselho de Alain (pseudônimo de Émile Chartier):


“Em todo contrato e em toda troca ponha-se no lugar do outro, mas com tudo o que você sabe e, supondo-se tão livre das necessidades quanto um homem pode sê-lo, veja se, no lugar dele, você aprovaria essa troca ou esse contrato.”

O justo faz isso, mesmo que nem se dê conta de que o faz. O injusto, por sua vez, não quer que os sujeitos sejam iguais e livres, porque isso dificultaria ou inviabilizaria suas iníquas transações e o alcance de seus alvos mesquinhos. Ele gosta da opressão, desde que o oprimido seja o outro, especialmente se tira proveito do sistema iníquo que o cerca.

Daí, essa cortina de fumaça que os homens mais injustos e privilegiados do país (alguns pastores, padres, políticos, empresários, etc.) costumam deflagrar em torno de qualquer iniciativa de promover a igualdade de direitos na diversidade das individualidades e suas respectivas necessidades. Você vai reconhecer a palavra; ela se tornou um chavão na boca desses malfeitores e de outros que costumam repeti-los sem que se deem conta do embuste que estão reproduzindo: PRIVILÉGIOS.

Vejamos alguns casos recorrentes e muito facilmente observáveis:Isentar ateus da participação em cultos ou outras práticas religiosas na escola ou no local de trabalho. Isso já foi chamado de privilégio, apesar de testemunhas de jeová, por exemplo, conseguirem até isenção do serviço militar obrigatório, por causa de suas crenças religiosas;Garantir os mesmos direitos ao casamento civil, independente do sexo dos parceiros. Isso já foi chamado de privilégio. É mera igualdade e não subtrai nada dos que já gozavam desse direito;Considerar os crimes de homofobia como crimes de ódio, assim como os crimes motivados por racismo e misoginia. Isso já foi chamado de lei de privilégios, mas trata-se apenas de uma das muitas respostas que devem ser dadas, diante do aumento dos assassinatos motivados por homofobia e transfobia, amplamente divulgados na imprensa brasileira – uma realidade inegável;Combater a violência contra a criança, inclusive praticada pelos próprios pais com castigos corporais. Isso já foi alvo de amplo ataque por parte de fundamentalistas e conservadores da pior espécie;Reformar o sistema penitenciário (a palavra mesmo já vem de penitência, um conceito religioso de castigo, punição para expiação) para que seja, na verdade, um sistema de reintegração social, que, ao mesmo tempo em que prive o criminoso de sua liberdade, eduque-o para ser produtivo, ajudando-o a superar aquelas deficiências pessoais (internas e externas) que cooperaram para que ele praticasse o delito, indo parar ali. Isso já foi chamado de privilégio para bandidos, quando, na verdade, além de ser justo, evitaria novos ataques à sociedade.

E por aí vai…

Talvez, nós ateus, secularistas e humanistas devamos nos empenhar em sermos mais justos que a média. Não podemos esperar que a justiça se faça independentemente de nós mesmos. Sabemos que não há um deus que garanta a justiça. Pelo contrário, os deuses que os homens criaram não passam de seres (imaginários) vingativos e inúteis, que nunca promoverão o bem, efetivamente.


Mas o que é um justo, afinal?

Cito André Comte-Sponville novamente:

“É alguém que põe sua força a serviço do direito, e dos direitos, e que, decretando nele a igualdade de todo homem com todo outro, apesar das desigualdades de fato ou talentos, que são inúmeras, instaura uma ordem que não existe, mas sem a qual nenhuma ordem jamais poderia nos satisfazer. O mundo resiste, e o homem. Portanto, é preciso resistir a eles – e resistir antes de tudo à injustiça que cada um traz em si mesmo, e que é si mesmo. É por isso que o combate pela justiça não terá fim.”

O mundo, porém, será um lugar mais justo ou menos justo, mais feliz ou infeliz, dependendo de quantos indivíduos se disporão a ser justos no melhor de suas habilidades pessoais. Não se constrói um mundo justo sozinho, mas não se pode esperar pelos outros para começar. E isso pode começar em casa, na escola, no trabalho, nas redes sociais, e aonde mais sua influência chegar. Você está disposto a ser um desses construtores?

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P.S.: Escrevi o texto acima ontem e tive a grata surpresa de ver essa matéria do Jornal O Dia hoje (segunda, 11/05/15). Encaixa-se perfeitamente no conceito de igualdade que eu discuti acima. Confira: http://odia.ig.com.br/noticia/economia/2015-05-09/geracoes-de-graduados-formados-a-partir-da-politica-de-cotas-ja-fazem-diferenca.html   Feliz em ver isso. 


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O privilégio de ser

21/06/2015


Por Sergio Viula


O Privilégio de Ser


Não existe coisa mais interessante, mais intrigante, mais atraente, mais cativante do que a VIDA! Ela é paradoxalmente prazer e dor – ou dor e prazer? – a ordem não importa. Processos incrivelmente complexos deram origem à vida. Mas, o conceito de vida é muito amplo e se aplica a muitos seres além do homem. Que bom!

Estive, porém, pensando no tanto que a vida esforça-se, desdobra-se, faz-se e desfaz-se até que cheguemos a ser quem somos. E que privilégio é SER!!! Sim, porque se pensarmos cuidadosamente, ser é exceção. Existem muitos motivos para deixarmos de ser, e, contudo, somos. Desde a fecundação muita coisa concorreu contra nós.

Mas, desde que a gente chega do lado claro da vida (o útero é pura escuridão), já tem gente dizendo o que a gente vai ser quando crescer. As apostas vão de presidente da república até craque de futebol – no caso do garoto. No caso das garotas, as apostas são bem mais modestas. Felizmente, elas têm provado que seus “modestos” apostadores estavam errados: elas podem e fazem mais do que o “esperado”, mas não todas, é claro. Nada é um bloco uniforme no mundo da vida.

De qualquer modo, parece que todo mundo quer dar palpite. A gente nem percebe, mas já vai internalizando tudo isso. E que merda pra se livrar disso depois. As pessoas ditam qual vai ser nosso time, em que escola estudar, quem vai ser convidado para nossas festinhas infantis, quando vamos começar a namorar, com quem vamos nos casar, quantos filhos vamos ter, e o cacete a quatro.

Por fim, a gente passa a acreditar em tudo o que ouviu e no que continua ouvindo dos outros a nosso próprio respeito. A interpretação alheia vai subjetivando nossa individualidade sem que sequer nos demos conta disso. Pessoas que não têm a mínima ideia do que acontece dentro da gente teimam em dar palpites não solicitados, verdadeiros alienígenas que invadem o espaço alheio. Pior ainda é que esses “donos da verdade” e “vigilantes da vida alheia”, mesmo que seja a vida de seus filhos, sobrinhos ou netos, ficam putos se a gente criar alguma resistência; querem anuência, mas o melhor que podemos fazer é investigar que condições de verdade geraram tais verdades, tais interpretações, a naturalização de tais roteiros arbitrários para a vida alheia. Sai pra lá, jacaré!

Durante tempo demais, eu deixei o script criado por outros ao meu redor conduzir minha vida. Eu não era diretor do meu show. Era apenas um ator seguindo um roteiro sob a direção de muitos moralistas – o que é perigosíssimo, mesmo quando essas pessoas são bem-intencionadas. É sufocante viver enterrado sob tantas expectativas alheias e conceitos de normalidade arbitrariamente construídos por outros; regrinhas imbecis extraídas da superstição religiosa, etc. E essa é, infelizmente, a vida da maioria, talvez até de muitos que me leem aqui.

Fui com a correnteza. Cresci, namorei, casei, gerei dois filhos (lindos!!!!), estudei teologia, fui ordenado pastor, trabalhei como missionário, conselheiro, pastor de igreja, escritor evangélico, tradutor de livros cristãos, etc., etc., etc. Até que um dia aquele garotinho que tinha conseguido a façanha de nascer, crescer e desenvolver tantas habilidades pessoais – algumas nunca valorizadas pelos moralistas de plantão por desafiarem o status quo que eles arduamente procuram preservar, mas que, felizmente, vai mudando a cada dia – decidiu dar a volta por cima; decidiu usufruir intensamente o privilégio de ser.

Cheguei à conclusão que já era hora de arriscar viver fora da bolha de plástico das superstições religiosas e dos preconceitos sociais. Saí do armário. Assumi que era gay – uma parte tão bonita de mim que havia tanto tempo vinha sendo negligenciada, empurrada para baixo, maquiada, mascarada, batizada com outros nomes (alguns tétricos!!!), mas nunca extinta. Foi duro. Muita luta. Muito embate. Muita controvérsia. Mas é típico do SER o esforço para permanecer sendo. Então, forças vieram do subterrâneo, da mesma masmorra onde outrora meu SER mais íntimo havia sido mantido encarcerado. Mas valeu o esforço… Que gostoso poder ver o sol da liberdade em raios fúlgidos brilhar no céu da mente em toda sua racionalidade, sensibilidade e ousadia! Que delícia poder respirar o ar puro que só existe fora desse armário existencial, seja ele o da sexualidade, o do gênero, o da religiosidade, o do ambiente familiar/social, entre outros.

Muita gente ficou perplexa. De que adiantou todo aquele condicionamento psicológico? De que adiantou toda aquela doutrinação religiosa? De que adiantaram todas aquelas ameaças terrenas e extraterrenas? Ou mesmo aquelas promessas pós-mundanas? De que adiantou exaltar extraordinariamente uma orientação sexual (a heterossexual) em detrimento de todas as outras (especialmente, a homossexual)? De que adiantou repetir a perder a consciência que o “só o Senhor é Deus”, quando ele não é melhor que qualquer dos Deuses que morreram com o fim dos sistemas dos quais eles se utilizavam para se manterem?

Fico triste quando vejo outras pessoas que nunca passaram por toda essa perda de tempo que eu passei acreditando que poderiam ser felizes se fizessem um caminho semelhante ao que eu deixei para trás. Não consigo evitar pensar que elas ainda não compreenderam o privilégio de serem quem são. Ainda não notaram como são especiais. Pensam que alguém possa ser especialista em vida, de tal maneira que possa lhes dizer como devem pensar, o que devem dizer, o que devem fazer, como devem se sentir, de modo que possam ser mais felizes. A principal palavra-chave delas é o verbo dever no imperativo; a segunda é o verbo poder no imperativo, só que negaivo: “Deve” e “não pode”. E isso só pega tanta gente, porque a maioria das pessoas está sempre com os olhos postos mais sobre os outros do que sobre si mesmas, porque para olhar nos próprios olhos, o indivíduo precisa de espelho. Não é algo que se dê tão naturalmente. Sem espelho é impossível ver o próprio rosto, mas é possível, pela arte de pensar racionalmente e com boa fundamentação, dobrar-se sobre si mesmo, e pensar a si mesmo, e refazer-se, colocar-se de um modo diferente no mundo.

Não existe varinha de condão. Cada um terá que construir-se a si mesmo com o material que a própria natureza e a experiência lhe deram. Então, SEJA com toda a capacidade do seu SER, porque nenhum de nós será para sempre, não nesta mesma configuração. A qualquer momento, poderemos ser pó, e de pó virmos a ser outra coisa qualquer no esquema natural das coisas, mas, felizmente, por enquanto, desfrutamos o privilégio deste momento único em que somos e podemos ser de muitas maneiras. Muita gente já deixou de ser, inclusive algumas pessoas que nos pareciam indispensáveis. A vida seguiu em frente, não seguiu? Algum dia será a nossa vez. Mas enquanto estamos vivos e capazes de realizar nossos desejos, SEJAMOS tudo o que pudermos, superando obstáculos. Vontade de potência! Expansão! E por que não adotar como eixo de tudo isso a multiplicação da felicidade, tanto a nossa como a dos outros, no melhor das nossas possibilidades?

E se a resposta para a pergunta “Por que não posso ser assim?” for: “Porque Deus quer assim”, ou “Porque eu fui criado assim na minha família”, ou “Porque não é normal”, ou “Porque minha religião não deixa”, ou “Porque todo mundo pensa assim”, ou outras semelhantes – todas elas serão tão infundadas quanto dizer que o ferro afunda na água, porque deus quer. Tais resostas não passam de repetição, reprodução de tradições, que nada mais são do que consenso de um determinado grupo, meras arbitrariedades.

Invente-se, crie-se, faça-se na versão que melhor expresse a si mesmo, tendo como limite aquilo que não subtrai ao outros o que é direito legítimo deles, mas que também não deixa que eles lhe subtraíam aquilo que é seu direito legítimo, sendo o principal desses direitos a liberdade de ser você mesmo, com tudo o que você construir para o seu bem e de sua comunidade. Penso BEM aqui como aquilo que expande suas possibilidades de realização, sua felicidade, sua autonomia sem impedir que os outros façam o mesmo.

E para quem não gostar do nosso jeito resolvido de experimentar a vida, ofereçamos caridosamente a nossa mais completa indiferença, não sem uma certa dose de ironia, porque ninguém mais infeliz do que aquele que se incomoda com a felicidade alheia. Como diz Maria Betânia:

E eu desejo amar todos que eu cruzar pelo meu caminho
Como sou feliz, eu quero ver feliz
Quem andar comigo, vem


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Boa-fé, uma virtude indispensável à vida bem vivida

19/07/2015

Por Sergio Viula


Quando pensamos em boa-fé, logo nos vem à mente aquela pessoa tolinha, bobinha, que acredita em qualquer trambiqueiro. Essa é uma confusão que se faz por associarmos boa-fé à ingenuidade. Uma pessoa ingênua não vê mal em nada. Só que boa-fé, como a penso aqui, é outra coisa bem diferente.

A pessoa de boa-fé é aquela que é fiel ao que crê, àquilo que considera verdadeiro, seja em público ou em privado. Como diz André Comte-Sponville, em seu Pequeno Tratado das Grandes Virtudes, Ed. Martiins Fontes, SP, 2010:

“Ser de boa-fé não é sempre dizer a verdade, pois podemos nos enganar, mas é pelo menos dizer a verdade sobre o que cremos, e essa verdade, ainda que a crença seja falsa, nem por isso seria menos verdadeira. É também o que se chama de sinceridade (ou veracidade, ou franqueza), e o contrário da mentira, da hipocrisia, da duplicidade, em suma, de todas as formas, privadas ou públicas, da má fé.” (p. 213, 214).

Nunca sentimos tanta falta dessa virtude em tantas áreas e em tantas relações como hoje em dia. Essa sensação talvez se dê, porque, em alguma medida, somos produtos do nosso próprio tempo, e, provavelmente, a boa-fé tenha sido uma raridade em todos os tempos. Vai saber…

Mas, se boa-fé não é ingenuidade, ela também não se esgota na sinceridade para com o outro. Pelo contrário, ela é, antes de tudo, sinceridade para consigo mesmo. Ela é a recusa de nos enganarmos a nosso próprio respeito. A boa-fé se constitui no reconhecimento de quem somos, com nossas potencialidades e fraquezas, nossas virtudes e defeitos, nossas características naturais e culturais, nossas preferências e recusas. E por amar a verdade, a boa-fé nos levará a verificar, inclusive, se tudo o que pensamos como defeitos e virtudes a nosso próprio respeito são mesmo defeitos, e não virtudes, e vice-versa, porque muito do que pensamos já vem contaminado com interpretações terceirizadas que passam, muitas vezes, por verdades inquestionáveis, mas não são.

Uma vez que a boa-fé tem a ver com sinceridade, deve-se dizer tudo?

Comte-Sponville dá uma resposta muito interessante a essa pergunta:

“Claro que não, pois não é possível. Falta tempo, e a decência o impede, a doçura o impede. Sinceridade não é exibicionismo. Sinceridade não é selvageria. Temos o direito de nos calar, e até devemos fazê-lo com frequência. A boa-fé não proíbe o silêncio mas sim a mentira (ou o silêncio apenas quando mentiroso), e ainda assim nem sempre…” (p. 216)

Parece necessário fazer uma distinção aqui: Mentir para o outro ou ocultar-lhe aquilo que possa ser mais pesado do que ele seria capaz de carregar parece aceitável, até mesmo recomendável, às vezes. Por ouro lado, mentir ou ocultar ao outro aquilo que ele tem o direito de saber, e cuja omissão poderia prejudicá-lo, parece injustificável.

Nada pior, porém, do que mentir para si mesmo. A mentira que se conta a si próprio parecer ser intrinsecamente indigna, qualquer que seja a situação, especialmente quando dita por razões egoístas ou mesquinhas.

Mas pensando na mentira ou ocultação aceitável e até recomendável, pergunto: será que alguém ousaria dizer que Corrie Ten Boom, uma mulher protestante holandesa que abrigou judeus em um esconderijo em sua casa, durante a segunda guerra mundial, estaria errada quando mentiu aos nazistas para proteger as pessoas refugiadas em sua casa?

Ora, mas, não diz a Bíblia que o diabo é o pai da mentira (João 8:44) e que todo que ama e pratica a mentira vai arder no lago de fogo e enxofre, que é a segunda morte? (Apocalipse 22:15)

Sim, diz. Mas e daí? Parece que a ética dos supostos “servos de Deus” na época em que escreveram isso era bem limitada, tanto quanto seu conhecimento de mundo.

Outra coisa é um fundamentalista ou conservador desvairado começar a espalhar vídeos caluniosos e editados para parecerem dizer o que nunca foi dito, só para desacreditar seus oponentes, como acontece quando espalham vídeos falsificados ou memes sobre o Deputado Jean Wyllys, alvo preferido desses homofóbicos fascistas que adorariam ver uma dessas duas ditaduras implantadas no Brasil: a militar ou a religiosa. E elas podem andar muito bem juntas, como já vimos em vários casos na história mundial.O nome disso é má-fé, mas não esgota o conceito. Má-fé não é somente mentir para os outros.

Má-fé é mentir a si mesmo sobre si mesmo. Jean Paul Sartre desenvolve um pensamento muito instigante sobre isso, no qual expõe a má-fé como sendo uma defesa equivocada contra a angústia. A má-fé se efetiva no pensamento e nas ações do indivíduo quando este atribui suas escolhas a fatores externos, tais como o destino, os astros, Deus, um plano transcendental determinante, etc. De acordo com o existencialismo de Sartre, a tentativa de fugir da autodeterminação é má-fé.

De acordo com o existencialismo sartreano, ao tomar consciência de que sua vida e destino não estão nas mãos de terceiros, sejam eles deuses ou homens, o ser humano experimenta a angústia. Não seria exatamente o pavor dessa angústia o fator principal a manter tantas pessoas atadas às crenças religiosas, bem como às agremiações que funcionam em torno de tais doutrinas e dogmas, e de figuras que supostamente detém poder ou conhecimento sobrenatural? Muito provavelmente, sim. O desejo de atribuir a outros a responsabilidade por seu destino, seja para sucesso ou fracasso. Daí, Deus e o Diabo serem criaturas tão amadas. Eu disse criaturas? Ah, sim? Então falei certo. Claro, porque esses dois personagens criados pelos homens, e a quem os homens atribuem existência própria, às custas de muita ginástica mental, são seus bodes expiatórios por excelência. A Deus, atribuem todo o bem, sucesso, felicidade. E ao Diabo, todo o mal, fracasso e infelicidade. Má-fé elevada à milionésima potência.

Ser honesto para consigo mesmo, doa o quanto doer. Ser honesto para com os outros no melhor das nossas forças, sempre considerando compassivamente o quanto de força eles têm para encarar o que entendemos como verdadeiro, preferir sempre a sinceridade à mentira, o conhecimento à ilusão, sem deixar de rir, preferencialmente de si mesmo, eis aí uma boa maneira de viver a vida.

A má-fé alheia não suporta quem vive assim. E daí? Isso também é escolha – uma péssima escolha… pior para eles. 



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Meu jeito ateísta de ser

26/07/2015

Por Sergio Viula


Muita gente me pergunta como é viver como ateu, como enfrentar a vida sendo ateu, como se viver fosse sempre um fardo. Não é. A vida, na maior parte do tempo, é fascinante. Ela só parece insuportável quando a dor ganha o primeiro plano e o domina. Infelizmente, o sofrimento nos assalta aqui e ali, a uns mais e outros menos, mas a todos em alguma medida. Não posso deixar de pensar que muito do nosso sofrimento é fruto da nossa adoecida imaginação. Nesse sentido, o ateísmo pode fazer muito bem à saúde, especialmente mental.

Coisas que deixam as pessoas doentes:

1. Medo de Deus;

2. Medo do Diabo;

3. Culpa por coisas absolutamente saudáveis: desde o que se come ou o que se veste até como ou com quem se trepa;

4. A ideia de que existe uma alma/ espírito que sobrevive à morte do corpo;

5. A ideia de que o celeste é melhor que o terrestre, que o espírito é melhor que o corpo, que deus é melhor que os homens, etc;

6. A ideia de que se está sempre em falta perante um deus, espírito ou lei universal;

7. A ideia de que deus. deuses, espíritos ou alguma lei universal é que determina o bem e o mal que nos atinge ou que dependemos dele(s) para viver bem, apesar de nunca conseguirmos isso plenamente;

8. A ideia de que o corpo tem que ser reduzido, subjugado, desprezado, não satisfeito para que algum deus ou mentor espiritual fique feliz e não exerça seu poder punitivo;

9. Pensar que todos merecem respeito DESDE QUE façam aquilo que eu aprendi a acreditar que seja A VERDADE;

10. Acreditar que um ou mais livros ou tradições orais possa me dar as respostas certas para quaisquer perguntas que eu possa conceber. E por aí vai…

Porque sou ateu, além de viver livre disso tudo, sou livre para viver tudo o que me torna mais forte, mais feliz. E vivo livre de tudo isso mesmo, porque nem todos os que se dizem ateus conseguem se livrar desses fantasmas na prática, digo, no mais intimo de seu ser. A maioria nega tudo isso de boca, mas uma boa parte vive como se algumas dessas coisas ainda fossem verdade. Por isso, caem tão facilmente na lábia de conservadores moralistas, nem sempre abertamente religiosos.

Sou um ateu que, ao sair da religião, sacudiu até a poeira que dela se agarrava às sandálias, e por isso, não meço minhas ações a partir de parâmetros religiosos ou moralistas, como se o bem e o mal estivessem detalhadamente traduzidos em escritos de qualquer espécie.

Minha máxima é simples: tudo é lícito, desde que não viole os direitos básicos de ninguém, inclusive os meus. Isso quer dizer que não deixarei se viver como considero legítimo, porque desagrada a essa ou àquela pessoa. E não espera que ela faça isso também. Por outro lado, não farei o que o viole seus direitos básicos e não tolerarei que o façam comigo. O que passar disso pode ser discutido, desde que a argumentação seja racional, razoável e priorize a liberdade, a dignidade e a felicidade humanas, sempre considerando as consequências imediatas e de longo prazo que nossas ações possam desencadear, seja para nós mesmos como seres humanos, seja para outros seres vivos.

Isso significa que os direitos universais dos seres humanos, como os denominamos, desdobram-se em direitos para outros seres vivos e em zelo pelo ambiente que todos compartilhamos nesse lindo e assustador planeta que chamamos de lar.

Em suma, podemos ser e fazer o que quisermos, desde que não violemos os direitos alheios. Não se confunda direitos alheios com opiniões alheias. 

E por isso apoio todas as iniciativas que viabilizem e garantam todos os modos de ser e de viver, indiscriminadamente. Por isso, não suporto fascismos, fundamentalismos, racismo, xenofobia, misoginia, androfobia, LGBTfobia e outros sentimentos ou atitudes que reduzem o outro, a partir de visões viciadas (e nada realistas) da realidade que nos circunda.

Meu jeito ateísta de ser me emancipa da religião, da crença em deuses, da expectativa de castigos e recompensas pós-morte, da dependência de um provedor celestial ou o que o valha, mas também me emancipa de todos esses preconceitos gerados e paridos pelo mesmo ventre que gerou e pariu as estruturas carcomidas que as diversas religiões insistem em sustentar, cada uma a seu modo: a ignorância.

E toda essa ignorância se torna mais grave quando o ignorante ignora que ignora. E, infelizmente, alguns sentimentos religiosos estão tão profundamente arraigados nas mentes da maioria das pessoas que será preciso muita honestidade, boa vontade e destemor para que essas pessoas livrem a si mesmas desses fardos opressores.

Seria interessante vermos mais ateus como George Carlin, Richard Dawkins, José Saramago, Woody Allen, James Randi, Drauzio Varella. E me refiro ao Brasil. Ateus de meia tigela não fazem mais pela emancipação humana do que um fanático religioso. Pelo contrário, religiosos como Desdemond Tutu são infinitamente melhores do que muitos ateus, existencialmente falando, só para citar um.

Não consigo imaginar os ateus citados acima dando crédito a esses fascistas que alguns ateus costumam incensar nas redes sociais no Brasil.

Meu jeito ateísta de ser não tolera a intolerância. E me refiro especialmente àquela intolerância que se volta contra a liberdade, a dignidade e a felicidade humanas.

Mas que ninguém pense que eu perco o sono por causa de quem insiste em viver na ignorância. Pelo contrário, vivo tudo o que posso viver, enquanto ouço o choro e o ranger de dentes daqueles que se enfurecem diante da emancipação humana, porque a minha vida é só essa, e provavelmente já vai pela metade. Não tenho tempo a perder agradando os desagradáveis de plantão. Enquanto isso, a emancipação humana vai avançando, apesar do barulho dos descontentes.



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Ateu arranca 2 milhões de dólares de centro de recuperação religioso e do estado da Califórnia e provoca mudanças nas regras nas condicionais na Califórnia

06/09/2015


Por Sergio Viula


Barry A. Hazle Jr., ateu, vence uma disputa de 2 milhões de dólares contra um programa religioso de reabilitação


The Huffington Post | By Ed Mazza
http://www.huffingtonpost.com/2014/10/15/barry-a-hazle-jr-atheist-settlement_n_5987630.html
Tradução por Sergio Viula
Postado originalmente em 15/10/2014


Um ateu da Califórnia venceu uma disputa judicial de cerca de 2 milhões de dólares depois de ser enviado para a cadeia por uma violação de condicional: fazer objeções a participar de um programa religioso de reabilitação.

Barry A. Hazle Jr., 46, cumpriu pena sob a acusação de posse de metanfetamina em 2007. O requisito para que desfrutasse da condicional era que ele se inscrevesse em um programa de tratamento para as drogas onde se exigia que os participantes reconhecessem um “poder superior”, de acordo com o [jornal] The Sacramento Bee.

Hazle reclamou e pediu um programa de tratamento diferente, mas disseram-lhe que a única opção na area era o programa religioso dos 12 passos da [organização] Westacare de acordo com o [jornal] Record Searchlight.

Hazle foi enviado de volta à prisão por mais três meses por alegadamente ser “disruptivo, embora de um modo adequado, para o pessoal, assim como para outros estudantes” e ser um “tipo de passivo-agressivo“, dizia o documento.

“Estou emocionado de ver esse caso finalmente decidido,” disse Hazle ao The Searchlight. “Ele envia uma mensagem clara às pessoas em posição de autoridade, como meu agente da condicional, por exemplo: que eles não ordenem programas religiosos para seus supervisionados em condicional, ou para qualquer outro, com essas questões.”

Hazle abriu o processo em 2008 e venceu, mas o júri se recusou a conceder-lhe indenizações. O 9º Tribunal do Circuito de Apelações então decidiu o caso. Numa sentença unânime, os três juízes do painel disseram que Hazle tinha direito à uma indenização.

“O veredito do júri, que concedeu a Hazle uma indenização inteiramente por sua perda de liberdade, não pode ser suspenso,” escreveu o Juiz Stephen Reinhardt sobre a opinião da corte. “O júri simplesmente não tinha a prerrogativa de recusar quaisquer indenizações pela perda de de liberdade de Hazle como indisuputáveis – ou indisputadas — e aquele veredito em contrário tem que ser rejeitado.”

O estado da Califórnia pagará a Hazle 1 milhão de dólares, enquanto a centro Westcare pagará 925.000 dólares de acordo com os termos da decisão, informa a KRCR-TV.

Hazle disse ao The Sacramento Bee que ele planeja tornar-se um ativista dos esforços locais para a recuperação para dependentes químicos.

O Departamento de Correções da Califórnia desde então publicou novas regras declarando que oficiais da condicional não podem exigir que seus supervisionados frequentem, programas religiosos.

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COMENTÁRIO DE SERGIO VIULA


Pessoalmente, fiquei muito entusiasmado e otimista com a atitude de Hazle e o desfecho dessa disputa judicial. O Estado torna-se mais laico, respeitador dos direitos fundamentais do ser humano, e os oportunistas religiosos ansiosos por qualquer trocado (e é muito dinheiro) do Estado ficam impedidos – pelo menos nesses casos – de fazerem manobras aparentemente piedosas para ganho pessoal e proselitismo religioso.

Não é de hoje que venho denunciando no Brasil o perigo desses centros de recuperação evangélicos e de matizes religiosos com práticas semelhantes.

No blog Fora do Armário, reproduzi a notícia de um homem gay chinês que ganhou (na China!!!) um processo contra uma clínica que pretendia transforma-lo em heterossexual, mas o torturava terrivelmente. Além do que, isso não tem nada de científico e nem de justificável sob qualquer outro ponto de vista.

Em 2011, escrevi um texto sobre gente supostamente recuperada pedindo esmolas para centros de recuperação.

Uma das mais chocantes notícias a que tive acesso foi essa: uma jovem equatoriana lésbica foi sequestrada e internada à força por ordem dos pais. Ela conta como conseguiu escapar e o que passou nesses dias de horror.

Concluindo, não colabore com esse sistema opressor. É obrigação do governo e da sociedade civil criar oportunidades de reintegração e recuperação genuínas para quem quiser se livrar das drogas. Quanto à diversidade das identidades de gênero e de orientação sexual, terapia de conversão está fora de qualquer questão , porque não é da ordem do patológico. Patológicas são as fobias construídas através de discursos preconceituosos contra a diversidade sexual e identitária dos seres humanos.

Gostaria de ver iniciativas diametralmente opostas às desses centros de neurose evangélica contra ateus, LGBT e pessoas de religiões minoritárias que realmente funcionem para a promoção da autonomia, da dignidade pessoal, da profissionalização e inserção no mercado de trabalho, como é o caso do True Colors Center, criado por Cindy Lauper em Nova York – um conceito totalmente novo e que nada tem a ver com esses depósitos de gente mantidos por pastores e crentes autointitulados curandeiros ou terapeutas.



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O que aprendemos com o jovem egípcio preso por ser ateu e defender uma abordagem científica para com a vida?

13/09/2015

Por Sergio Viula


Foto (perfil no FB): Sherif Gaber, jovem universitário ateu 
preso por defender uma atitude científica para com os temas de uma aula de ciência.


Fonte: The Huff Atheist

Tradução Sergio Viula

Um universitário de 22 anos de idade foi sentenciado por uma corte egípcia a um ano de prisão por “desprezo à religião”, de acordo com o Daily News Egypt: 

Daily News Egypt: http://www.dailynewsegypt.com/2015/02/17/egyptian-student-given-prison-sentence-for-atheist-facebook-posts/

Sherif Gaber estava estudando comércio na Universidade do Canal do Suez em Ismailia quando a administração da instituição o denunciou para as autoridades em 2013 por supostamente criar uma página pró-ateísmo no Facebook. De acordo com a sentença da corte, Gaber poderia ser liberado sob uma fiança de aproximadamente 130 dólares até que sua apelação começasse, disseram fontes jurídicas a AFP.

“As condições de livre expressão nas universidades egípcias são muito ruins” – disse Fatma Serag, uma advogada da Associação para o Livre Pensamento e Expressão (Association for Freedom of Thought and Expression [AFTE]), ao Daily News Egypt. “Eu condeno fortemente a sentença publicada contra Sherif Gaber, e espero que sua inocência seja garantida através da apelação.”

Os apoiadores do estudante criaram uma petição chamada “Free Sherif Gaber” no site Change.org e uma página no Facebook para conscientizar as pessoas sobre o caso, que é uma de várias condenações contra apoiadores do ateísmo no Egito nos últimos anos.

Em janeiro, o jovem Karim Ashraf Mohammed al-Banna, 21 anos, foi sentenciado a três anos de prisão por insultar o Islã promovendo ateísmo no Facebook. Alber Saber, um blogueiro de 27 anos, foi acusado de blasfêmia e recebeu uma sentença de três anos em 2012 por criar uma página na internet chamada “Ateus Egípcios”.

O artigo 64 da Constituição egípcia declara que “a liberdade de religião é absoluta”, de acordo com a organização de direitos humanos Human Rights Watch. Mas o artigo 98 do Código Penal egípcio diz que uma pessoa pode ser sentenciada a uma pena que varia de seis meses a cinco anos de prisão por “explorar a religião, seja por palavras, texto ou quaisquer outros meios, ou ideias extremas, com o propósito de incitar desavença, ridicularizando ou insultando (as fés abraâmicas) ou alguma seita delas, ou prejudicando a unidade nacional.”

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COMENTÁRIO DE SERGIO VIULA

Depois de ter contato com essa notícia, saí em busca de mais informações sobre Sherif Gaber. Encontrei um Wiki sobre ele que explicava exatamente qual foi o embate que resultou em sua entrega às autoridades pela universidade. (Wiki: https://en.wikipedia.org/wiki/Sherif_Gaber)

Ele estava matriculado numa aula de ciência, sob a responsabilidade de um professor chamado Elsaid Farrag. Em uma das aulas, o Professor Farrag estava dando uma palestra sobre homossexualidade e declarou: “A homossexualidade é pecado. Gays e lésbicas devem ser crucificados no meio das ruas, apedrejados, e queimados até a morte! É um pecado nojento de se cometer e quem o apoia é contra o plano de Deus”.

Em resposta à declaração do professor, Gaber sugeriu que se olhasse para a homossexualidade de um ponto de vista científico, uma vez que aquela era uma aula de ciência. Ele perguntou: “Existe alguma teoria científica que sugira que a homossexualidade não seja natural ou que seja errada?”.

Farrag não respondeu sua pergunta e passou a questionar as crenças religiosas do jovem Gaber. Foi então que Gaber lhe disse que acreditava na ciência, uma vez que ela tinha mais suporte do que o Corão e listou um punhado de associações científicas que têm provado cientificamente que a homossexualidade não é uma escolha e nem antinatural.

“Então você é gay e ama homens, não é?”, perguntou o professor. Gaber lhe disse que se ele fosse gay, ele teria lhe dito e que não é algo do que alguém deva se envergonhar, porque não é errado”. Ele continuou: “O que você disse momentos atrás, sobre mata-los, isso seria um ato criminoso.”

Farrag então proibiu que ele participasse da aula de novo, ameaçando estender seu tempo na instituição para oito anos, e ameaçou lhe dar uma nota de reprovação em cada curso. O professor continuou a assediá-lo publicamente pelas restantes duas horas de aula.

Na semana seguinte, Farrag com outros professores, um deles chamado Ramy Mohammad Husien seguravam uma versão impressa de tudo o que ele tinha postado em sua página no Facebook e que consideravam contraditórias com o que Islã ensina ou que fossem a favor da livre expressão. Eles leram as publicações em voz alta para a turma. O professor Farrag concluiu dizendo a Gaber, e a toda a sua turma, que entregaria os papéis ao promotor público para prendê-lo. Gaber recebeu um F (nota de reprovação) naquela matéria em junho de 2013, mesmo tendo tirado um A+ (nota máxima) no final do primeiro semestre, em janeiro de 2013.

O que me chama atenção aqui, entre outras coisas, é como esse jovem compreendia que a cientificidade dessas falas preconceituosas contra a homossexualidade era tão nula quanto a boa fé do professor Farrag. Enquanto isso, vemos gente no Brasil, que apesar de ter muito mais oportunidades de contato com boas fontes de conhecimento, preferem permanecer na ignorância das fés abraâmicas no que diz respeito à sexualidade, repetindo mecanicamente esse maldito mantra homofóbico.

Em tempos de imigração em massa da Síria e seu entorno para a Europa e para as Américas, vale lembrar que muitos desses imigrantes, que nada mais têm a perder, senão a própria vida, são seguidores de religiões majoritárias nos países onde buscam refúgio (cadê a fraternidade dos que professam a mesma fé?), são ateus (lembrem-se disso, ateus, agnósticos, humanistas secularistas, etc), são LGBT (não esqueçam que só por isso já poderiam ser enforcados, apedrejados ou queimados vivos, amiguinhos sexodiversos e transgênero), são pais que não querem ter as filhas usufruídas à força por sequestradores/estupradores do Estado Islâmico e grupos semelhantes, e muçulmanos que só querem viver em paz. Devolver essa gente é como entregar judeus à SS durante o regime nazista na Alemanha, ou acusar alguém de comunismo aos militares no Brasil de 1964, entregar uma mulher ao inquisidor sob a acusação de bruxaria durante, principalmente nos reinos de Portugal e Espanha. Ora, quem lamenta essas crueldades no passado, mas não se sensibiliza diante da situação dos atuais refugiados deve sofrer de algum tipo de esquizofrenia cognitivo-afetiva. Afinal, parece que empatia não é para qualquer um. Perguntem aos macacos. Eles costumam demonstra-la sem moderação.

E para finalizar, outra coisa que me chama atenção é o pouco valor que damos às ferramentas que temos à nossa disposição para divulgação do ateísmo, do ceticismo, da ciência, do humanismo, do secularismo, do laicismo, etc. Felizmente, cresce a cada dia o número de ateus do quilate de Sherif Gaber – um garoto que virou um ícone para mim desde que soube de sua história. A neurose conservadora-fascista-fundamentalista perde e não é pouco, não.



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Mortos por não crerem e ousarem questionar

20/09/2015 


Traduzido e adaptado por Sergio Viula 

Fonte: http://www.csmonitor.com/World/Security-Watch/terrorism-security/2015/0227/Atheist-US-writer-killed-in-Bangladesh-familiar-attack-on-free-expression



Estudantes de Bangladesh e ativistas sociais contra o assassinato de Avijit Roy em Dhaka. Como um proeminente blogueiro americano-bengalês, o Sr. Roy era conhecido por falar contra o fundamentalismo religioso. – A.M. Ahad/AP

O autor, blogueiro e ativista descrito como um humanista secular por seu pai, Avijit Roy, foi perseguido até à morte por dois homens que brandiam facões no campus da Universidade de Dhaka, enquanto ele e sua esposa retornavam para casa depois de visitarem uma feira de livros. Ela sobreviveu ao ataque com sérios ferimentos e a perda de um dedo.

Pinaki Bhattacharya, um amigo blogueiro do escritor assassinado, disse que uma livraria online estava sendo ameaçada por vender os livros de Roy: “Em Bangladesh, o alvo mais fácil é o ateu. Um ateu pode ser atacado e morto”, escreveu ele no Facebook.

O grupo chamado Article 19 (Artigo 19), defensor da livre expressão, registrou 258 casos de ataques contra as liberdades de jornalistas e ativistas em Bangladesh em 2013, com quatro mortos.

Em algumas partes do mundo, ataques contra a liberdade de expressão fazem parte da vida cotidiana. Recentemente, a Arábia Saudita – uma aliada muito próxima dos Estados Unidos e de outros governos ocidentais – sentenciou um homem à decapitação pelo crime de rasgar uma cópia do Alcorão e renunciar ao Islã.

A liberdade de expressão e de dissenso de qualquer tipo é severamente reprimida na Arábia Saudita, o que reforça a ideia sunita de missão, na qual muitos extremistas baseiam justificativas intelectuais para grupos militantes como o Estado Islâmico. No ano passado, o país sentenciou o blogueiro Raif Badawi a 10 anos de prisão e a 1.000 chicotadas pelo crime de ter criado um site na internet chamado Liberais da Arábia Saudita (Saudi Arabian Liberals). – registra a Anistia Internacional.

Vocês fazem ideia do que é ser violentamente chicoteado mil vezes seguidas? E o que significa alguém ser obrigado a ficar 10 anos sob o domínio de gente que não poupará esforços para transformar sua vida num verdadeiro inferno, dia após dia – cada manhã, tarde e noite durante uma década inteira? Isso é inaceitável sob qualquer ponto de vista racional.

As acusações contra Raif estão relacionadas a artigos que ele escreveu criticando autoridades religiosas da Arábia Saudita e alguns textos de autoria de outros livres pensadores que Raif publicava no site Liberais da Arábia Saudita (Saudi Arabian Liberals). Por pouco, ele não foi morto, visto que a promotoria solicitou que ele fosse processado por “apostasia” ou abandono de sua religião. A pena para esse crime é a morte.

Raif é um dos muitos ativistas perseguidos na Arábia Saudita por expressarem abertamente suas opiniões online. O Facebook e o Twitter são incrivelmente populares num país onde as pessoas não podem revelar suas opiniões livremente em público. As autoridades têm respondido a esse crescimento do debate via internet com o rigoroso monitoramento das mídias sociais e sites. Já tentaram inclusive banir aplicativos como Skype e WhatsApp para sufocar qualquer tentativa de livre expressão.

Claro que não é só na Arábia Saudita que coisas assim têm acontecido. Como publiquei na postagem do domingo passado aqui mesmo na Coluna do Viula, o Egito, governado pelo aliado dos EUA Abdel Fatah al-Sisi, sentenciou o estudante universitário Sherif Gaber a um ano de prisão por promover ateísmo em sua página do Facebook.

Roy é o segundo blogueiro bengalês a ser assassinado em dois anos e o quarto escritor a ser atacado desde 2004, diz o Malaysian Insider.

A internet tem que continuar sendo livre, o mais livre possível – o que não significa que vale tudo, é claro. Se alguém tem seus direitos violados de alguma maneira, isso precisa ser apurado e se for o caso tratado judicialmente. Todavia, censurar o dissenso pelo simples fato de que isso colocaria em xeque dogmas, doutrinas e outras ideias é inaceitável.

Não é de causar estranhamento que a sanha religiosa de controlar mentes inclua a vontade de controlar os enunciados. Afinal, o dogmatismo não resiste ao debate racional. Daí, eles sempre tentarem recorrer ao silenciamento de toda e qualquer voz que ouse desafiar seus motivos, métodos e objetivos.

Ateus, agnósticos, céticos, humanistas seculares e outros livres pensadores incomodam muito aqueles que se sentem confortáveis sob o chicote de seus adestradores mentais, mas parece igualmente correto dizer que qualquer religioso inteligente provavelmente concordará com a ideia de que a liberdade de expressão é o melhor para todos.

Além disso, por que um deus todo-poderoso (ou vários deuses super poderosos) não saberia se defender de meros mortais críticos? E de que maneira atentados terroristas (como no caso do Charlie Hebdo), assassinatos, prisões e torturas para calar os que questionam as fés e as práticas das religiões institucionalizadas e de seus representantes ou membros, poderiam ser justificados por pessoas razoáveis? Tudo isso parece só confirmar a tese dos dissidentes que sugerem que o mundo poderia ser melhor se ficasse livre de dogmas, doutrinas e supostas revelações sobrenaturais.

A pior coisa que pode acontecer para qualquer ser humano é se submeter aos que cerceiam suas liberdades fundamentais ou consentir com isso, qualquer que seja o motivo, especialmente se for em nome de regimes políticos, econômicos e/ou religiosos.

Fundamentalistas e outros totalitaristas não suportam a liberdade e odiaram ver as pessoas descobrirem como podem ser felizes longe de seu domínio.

DIGA NÃO À INTERFERÊNCIA RELIGIOSA NA ESFERA PÚBLICA E PRIVADA.

Quem quiser viver sujeitado, que viva, mas que não se permita a sujeição compulsória de quem quer que seja.

Ateus, agnósticos, céticos e humanistas seculares, façamos circular os discursos que enfraquecem toda forma de controle mental, especialmente aquelas supostamente chanceladas por deuses e outros seres encantados. E quem tiver ouvidos para ouvir, ouça. 



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Afro-americanos não-crentes

27/09/2015

Por Sergio Viula


Os Descrentes

Esse é o título de um artigo escrito por Emily Brennannov em 27 de novembro de 2011 e publicado posteriormente pelo The New York Times. Emily abre o artigo falando sobre a experiência de Ronnelle Adams ao sair do armário duas vezes, primeiro a respeito de sua homossexualidade, depois a respeito de seu ateísmo. Segundo, Ronnelle, morador de Washington que publicou um livro ateísta para crianças (“Aching and Praying”), ele havia considerado tornar-se um pastor batista quando estava no ensino médio. Adam conta como uma conversa com sua mãe acabou virando a chave para abrir o armário:

“Ela começou a me falar sobre suas questões com a homossexualidade, que eram, é claro, bíblicas.”

– Eu simplesmente não ligo para o que a Bíblia diz sobre isso, disse-lhe eu. Eu não acredito mais nessa coisa toda.

Tudo ficou em silêncio. Ela estava em conflito mental. “Ela me disse que havia ficado mais chateada com isso do que com a revelação de que eu era gay”.

Isso, de acordo com a escritora, isso foi em 2000, e Ronnelle Adams não encontrou outro ateísta negro em Washington até 2009, quando ele conheceu um grupo no Facebook chamado Ateístas Negros.

“Eu me senti, tipo, ‘100 ateístas negros? Uau!'”– disse ele.

Durante os dois anos seguintes, o grupo “Ateístas Negros” cresceu para 879 membros. Depoimentos via YouTub”e atraíram milhares. Blogs como “Godless and Black” (Sem Deus e Negro) ganharam seguidores, e centenas mais se juntaram a grupos do Facebook como o “Black Atheist Alliance” (524 membros) [Aliança de Negros Ateístas] onde eles compartilhavam suas lutas para “saírem do armário” sobre seu ateísmo.


Crédito: Ellen Weinstein


Sentindo-se isolados de amigos religiosos e excluídos do que significa ser um afro-americano, as pessoas passaram a buscar nesses sites aconselhamento e compreensão, com alguns deles inclusive iniciando namoros. E beneficiando-se desse momento online, organizações como African Americans for Humanism (Afro-americanos pelo Humanismo) e Center for Inquiry-Harlem (Centro de Pesquisa-Harlem) promoveram encontros ao vivo, com boa frequência, e outros como o “Black Atheists of America” (Ateístas Negros da América) e o “Black Nonbelievers” (Não-crentes Negros) foram fundados.

Afro-americanos são notavelmente religiosos até mesmo para um país conhecido por usa religiosidade, como são os Estados Unidos. De acordo com o Pew Forum 2008 United States Religious Landscape Survey (Pew Forum de 2008 – Pesquisa da Paisagem Religiosa dos Estados Unidos), 88 por cento dos afro-americanos acreditam em Deus com absoluta certeza, comparados ao total de 71 por cento da população que crê assim, e mais da metade deles frequenta cultos religiosos pelo menos uma vez por semana.

Apesar do Islamismo e outras religiões estarem representadas na comunidade negra, presume-se que um negro americano seja geralmente cristão.

Em 2008, diz a autora do artigo, John Branch fez seu primeiro vídeo no YouTube: “Ateísmo Negro”. Com a câmera bem próxima do rosto, o Sr. Branch, com 27 anos à época do artigo, perguntava: “O que é um ateu? Um ateu é simplesmente alguém que não tem uma crença em Deus.” E ele graceja: “Não estamos bebendo sangue. Não somos estamos adorando Satã.” O vídeo foi acessado por mais de 40 mil pessoas.

“Eu acho que isso atraiu tanta atenção porque, na comunidade negra, não acreditar em Deus é visto como uma coisa de gente branca,” disse o Sr. Branch, um estrategista de marketing na Raleigh, N.C. “Eu odeio esse termo, ‘agir como branco’, mas ele é usado.”



Jamila Bey conversando com Ronnelle Adams. Crédito: Andrew Councill para o The New York Times

De acordo com o instituto Pew, a vasta maioria de ateístas e agnósticos é de brancos, incluindo Richard Dawkins, Sam Harris and Christopher Hitchens.

Buscando um intelectual público de seu, alguns ateus negros têm reclamado o astrofísico Neil deGrasse Tyson, interpretando seus argumentos contra o ensino do “design inteligente” na sala de aula como um endosso ao seu ateísmo. Mas o Dr. deGrasse Tyson reluta em ser associado com qualquer parte do movimento. Quando contatado semana passada por e-mail, ele destacou uma interação pelo Twitter na qual ele disse, em agosto, a um seguidor: “Sou eu um ateísta? – você pergunta. Etiquetas são maneiras mentalmente preguiçosas pelas quais as pessoas garantem que o conhecem sem conhecê-lo de fato.”

Jamila Bey, uma jornalista de 35 anos de idade, disse: “Ser negro e ateu, em muitos círculos, é não ser negro.” Ela disse que a estória que a nação conta dos afro-americanos em sua luta por direitos civis é cristã, então os afro-americanos que rejeitam a religião são vistos como dando as costas à sua própria história. Apesar de reconhecer o papel das igrejas no movimento, a Sra. Bey problematiza a narração desse trabalho como obra divina. “Essas pessoas estavam usando a igreja, partindo de seus recursos, para atacar um problema e literalmente mudar a história. Mas a estória que é contada é que ‘Jesus nos libertou’.” – disse a Sra. Bey. “Francamente, foram humanos que fizeram todo o trabalho.”

Agora que os grupos no Facebook conectaram ateístas negros, encontros têm sido iniciados em cidades como Atlanta, Houston e New York.

Jamila Bey socializando. Crédito: Andrew Councill for The New York Times


“Alguém em cima do muro diz: ‘Eu vou à igreja, e todos os meus amigos e minha família estão lá. Como eu poderia sair?’ É aí que nós, como humanistas afro-americanos, dizemos: ‘Ei, olhe, nós temos uma comunidade aqui.’” – disse o Sr. Hatcher no palco.

Sentada ao lado do Sr. Hatcher estava sua namorada, Ellice Whittington, uma engenheira química de 26 anos de idade. Eles se conheceram através de um grupo ateu no Facebook.

Sobre ser um não-religioso na comunidade negra, a Srta. Whittington disse: “Definitivamente, isso torna seu campo de candidatos muito menor.”

Ela acrescentou: “Alguns homens se assustavam quando eu dizia: Não acredito em Deus do modo como você acredita. Eu ouvia as pessoas dizerem: ‘Como você pode amar alguém se você não acredita em Deus?’”

Outro ativista ateu é Wrath James, que tem um blog sobre ateísmo. Ele diz que a pressão que ele sente para calar seu teísmo está no centro dessa provocante declaração em seu blog: “Na maioria das comunidades afro-americanas, é mais aceitável ser um criminoso que vai à igreja no domingo, enquanto vende drogas para crianças durante toda a semana, do que ser um ateu que contribui com a sociedade e apoia sua família.”.

A pergunta que eu faço é a seguinte:

Apesar das diferenças entre o movimento negro americano e o brasileiro, das igrejas americanas e brasileiras e das comunidades ateias americana e brasileira, não é verdade que ateus passam por dramas parecidos e desenvolvem estratégias semelhantes? Qual será a representação da comunidade negra dentro da comunidade ateia no Brasil? Essas são questões que devemos investigar.

Leia o artigo na íntegra aqui: http://www.nytimes.com/2011/11/27/fashion/african-american-atheists.html



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Bill Maher sobre ser abertamente secular

04/10/2015


Por Sergio Viula


Site e redes sociais da campanha que o Bill Maher comenta no vídeo acima:

Site: http://www.openlysecular.org

Facebook: http://www.facebook.com/OpenlySecular

Twitter: https://twitter.com/@openlysecular

https://www.youtube.com/watch?v=fPcEepYPNjc



Abertamente Secular


Em minha experiência pessoal, ser abertamente secular não é mais uma questão. Simplesmente, sou secular 24 horas por dia: em casa, no trabalho, na universidade, entre amigos nas horas de lazer, e por aí vai. Não leva muito tempo para que alguém perceba que eu sou um secularista, porque a fala já denuncia. O próprio modo de pensar e de expressar tais pensamentos revela que não há vestígio de argumentos que recorram a supostos mistérios só para os “inciados”; nenhum argumento religioso ou mítico transpassa minha fala, exceto no lugar de contradito, aquilo a que posso opor uma ideia melhor, mais livre, mais nítida, mais humanista.

Esse secularismo humanista que adoto no melhor das minhas forças em tudo o que faço e digo – e que me faz não temer voltar a eventuais equívocos e corrigir quaisquer discrepâncias – é libertador. Não tem preço poder encarar o ser humano sem misticismo de qualquer espécie; viver a vida sem falsas esperanças ou falsos temores relacionados a deuses, demônios, espíritos, mentores extraterrestres ou inteligências impessoais neste ou em supostos além-mundos; pensar na morte como a simples desintegração da aparente ordem estabelecida como resultado das forças que se opõem, sobrepõem e se submetem, a partir das interações entre os diversos elementos que compõe essa “unidade” orgânica a quem deram o nome de Sergio e o sobrenome de Viula; olhar para os seres humanos que me rodeiam e até mesmo os que vivem mais distantes de mim, não apenas geograficamente, mas também no modo como conduzem suas vidas, como iguais na humanidade que nos caraceriza a todos; investigar racionalmente o funcionamento dos elementos que compõe o vasto universo em que estamos inseridos; utilizar os recursos naturais criticamente, respeitando o máximo possível outras espécies, porque, no fim das contas, estamos todos irmanados por relações simbióticas nos mais variados níveis, alguns imediatos, outros mais remotos, mas todos encadeados de alguma maneira nessas coisas que decidimos chamar de ecossistemas.

Mas ser um secularista, politicamente falando, é não aceitar argumentos religiosos, míticos, lendários, não verificáveis, não defensáveis através da razão pública (para usar um termo caro a Jürgen Habermas). E sobre isso vale muito a pena assistir o vídeo do Maher de novo e prestar atenção a o que ele diz a respeito desse ponto.

Argumentos religiosos para a formulação de leis ou regulamentação de práticas do Estado e da sociedade civil, além de infatilóides, são perigosos. E não se precisa ser filósofo político, cientista político, sociólogo ou afins para se perceber isso. Basta lermos os jornais ou darmos uma olhada nas postagens a respeito de política e religião, principalmente naqueles países que adotam uma religião como oficial ou agem como se tivessem uma, mesmo que o neguem em suas Constituições.

Secularistas brasileiros precisam se mobilizar e dar um basta nessa onda de fundamentalismo religioso que vem assaltando nossa política, trazendo prejuízos gravíssimos do ponto de vista institucional, político, social e econômico. Prejuízos que incluem a corrupção praticada por muitos ditos “ungidos do Senhor”. Esses picaretas usando seus livros sagrados como cortina de fumaça se corrompem com mais voracidade do que muita gente que está condenada a anos de cadeia nos presídios brasileiros, muitas vezes, por coisas bem menos graves, quando não por engano, por falta de um bom advogado, porque não tinham dinheiro para garantir um que se dedicasse a seus processos. Outra injustiça que precisa ser reparada.

Minha leitora e meu leitor, sejam abertamente seculares. Desenvolvam seu pensamento secularista, preferencialmente humanista, acessando informações relevantes produzida por gente bem informada e responsável. Produzam textos e vídeos com conteúdos secularistas humanistas a respeito dos problemas que envolvem nossos governos e nossa sociedade. Escrevam tweets e outros posts curtos, mas que deem o que pensar, preferencialmente com algum site que os interessados possam acessar para obterem mais informações. Mas, certifique-se de estar reformulando seus pensamentos de fato e não apenas re-batizando velhos dogmas com novos nomes. Isso é mais comum do que pode parecer. A ignorância pode ser mais resistente que qualquer erva daninha e é possível que nós mesmos incorramos em ignorância ou equívoco sem sequer o percebermos. Precisamos ter uma atitude muito honesta, não apenas para denunciar as falácias alheias, mas principalmente identificar e corrigir aquelas que nós mesmos reproduzimos irrefletidamente.

Fecho esse post com uma uma equação muito simples:

Mais secularismo humanista e menos fanatismo = mais felicidade, mais igualdade, mais justiça, mais liberdade.



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Do animismo ao ateísmo: a trajetória de quem morreu sem jamais ter existido de fato

18/10/2015 


Por Sergio Viula



Nota: Quando Nietzsche disse a célebre frase “Deus morreu”, ele não se referia especialmente a deus algum, nem mesmo ao quimérico deus cristão. Ele se referia à metafísica como sistema que tentava entender o mundo físico a partir do suprassensível: todo aquele conjunto de crenças em pós-mundos, supra-mundos, realidades para além do natural. Obviamente, foram no pacote essas pobres criaturas nascidas de nossa imaginação atormentada, às quais chamamos deuses.

Vamos ao que interessa, então. 

O pensamento animístico tem povoado a mentalidade humana desde tempos imemoriais. E por animismo, quero dizer a ideia de que todos os seres têm alma, sejam pedras, árvores, animais ou seres humanos. Provavelmente, foi essa crença na “anima” (alma) que abriu espaço na imaginação humana para coisas como a manipulação dos elementos por meio de encantamentos. Surgem os feitiços, a magia.

Com o tempo, os humanos passaram a crer que essas almas ou espíritos teriam o poder de se deslocar pelo mundo sem a necessidade de um corpo. Novos personagens entram na economia da superstição humana: fantasmas, guardiões das florestas, espíritos de antepassados, seres sobrenaturais de diferentes espécies (duendes, gnomos, fadas, etc.). Tudo isso foi ganhando status de realidade na imaginação do amedrontado homo sapiens (eternamente órfão, querendo ou não), especialmente devido a sua falta de compreensão dos fenômenos naturais, principalmente aqueles mais imediatamente ligados a sua rotina: tempestades, secas, raios, doenças e coisas do gênero.

Daí ao surgimento dos deuses, bastou um pouco mais de imaginação. Foi só superdimensionar um ou mais desses supostos seres espirituais para que os deuses finalmente se estabelecessem no acervo imaginário humano. Diferentes grupos humanos atribuíram status de realidade a diferentes deuses. É bem provável que o estabelecimento desses deuses em conexão com famílias, clãs e tribos tenha contribuído para a formação das identidades nacionais.

Graças ao princípio de economia que subjaz a muitas das nossas operações cerebrais, não demorou até que as pessoas começassem a imaginar que talvez não existissem tantos deuses, mas apenas um que acumulasse todo o poder. Alguns daqueles deuses nem eram lembrados ou devidamente cultuados, tantos eram eles.

Portanto, transferiram os departamentos que estavam sob o comando de vários deuses individualmente para um deus só. Todos os deuses, menos o grande sortudo, foram demitidos sem aviso prévio. A fortuna, a saúde, os raios, as chuvas, os rios, os mares, as colheitas, o gado, as guerras, os partos e demais aspectos da experiência humana, bem como os fenômenos que a afetam, passaram a ficar a cargo dessa quimera que veio a ser considerada o deus todo-poderoso, todo-sapiente e presente em toda parte ao mesmo tempo.

Mas, ninguém se engane. Deuses são criaturas difíceis de matar. Assim, os resquícios daquela imaginação mais primitiva persistiram na atual dulia (veneração aos anjos e santos, como classifica a Igreja Católica) e na hiperdulia (culto especial à Virgem Maria, acima de santos e anjos e logo abaixo da Trindade), só para citar dois exemplos. Basta notar que os santos continuam encarregados das mesmas tarefas das quais os deuses demitidos se ocupavam: São Judas Tadeu é o padroeiro dos aflitos e desesperados; Santo Expedito é o padroeiro das causas impossíveis; Santa Edwiges é a padroeira dos endividados; Santa Luzia é a padroeira dos olhos; Santa Cecília é a padroeira dos músicos ou da música sacra; e por aí vai.

Mas, não nos esqueçamos do culto à Virgem Maria, também encarregada de vários departamentos. Tem a N. Sra. das Cabeças, a N. Sra. da Conceição (concepção), a N. Sra. do Bom Parto, a N. Sra. da Boa Morte, a N. Sra. Desatadora dos Nós, enfim, são ilustres senhoras para todos os gostos e necessidades.

O que significam esses santos e esses diversos títulos de Maria, afinal? Significam que a mentalidade dos primitivos politeístas continua presente, a despeito do alegado monoteísmo judaico, cristão e muçulmano. Cada um a seu próprio modo manteve ou adaptou, sem medo de inchar a máquina administrativa celestial, os semi-deuses que serviam aos deuses antigos sob a forma de santos, anjos, arcanjos, querubins, serafins, diabo, demônios e outras criaturas afins. O catolicismo condensou todas as deusas-mães, tão comuns em tantas culturas antigas, na pessoa de Maria, a quem chamam sempre de rainha do céu, virgem perpétua, mãe santíssima, fazendo referência a sua suposta superioridade em relação a outras tantas mulheres que, assim como Maria, viveram dominadas por todo tipo de violência misógina num mundo onde o patriarcalismo e machismo faziam o que bem entendiam sem qualquer constrangimento.

Mas ao destronarem tantos deuses para entronizarem apenas um, os seres humanos fizeram um movimento extremamente perigoso para a sobrevivência de qualquer deus que permanecesse de pé, a despeito de todos os que já haviam caído: tornaram-se TEOCIDAS — e isso bem antes do Renascimento do século 17, do Esclarecimento do século 18, da Revolução Industrial do século 19 e da Revolução Científico-Tecnológica do século 20 que segue em pleno vapor nesses primeiros 15 anos do século 21.

Mas por que me referi a todos esses séculos, ou seja do 17 ao 21?

Porque nunca antes na história desse mundo (risos), houve tantos teocidas no planeta. Os primeiros foram os próprios religiosos. Eles mataram centenas, milhares até mesmo milhões de deuses através de suas guerras santas, inquisições, textos sagrados, cultos religiosos e sermões. Deixaram apenas um de pé, mas esse também foi derrubado, apesar de ainda ser invocado por milhões de sonâmbulos existenciais.

O que quero dizer é que aquele que se cultua hoje como deus todo-poderoso não passa de um cadáver (para usar uma expressão de Nietzsche). Esse deus a quem os abraâmicos pouparam em sua sanha teocida também foi mortalmente ferido e sangrou até a última gota de seu fantasmagórico sangue pelos últimos cinco séculos, aproximadamente. O que judeus, cristãos e muçulmanos fazem hoje é cultuar um morto. Deus não faz sentido. Toda tentativa de explicar a vida e assumir ou ditar comportamentos a partir da crença nele e em seu mundinho supra-terrestre é mera obstinação e saudosismo de um tempo em que a a classe sacerdotal tinha a última palavra sobre tudo. Todo culto religioso atual não passa de um evento social com alta lucratividade para a maioria de seus organizadores. Provavelmente, há pessoas que acreditam de fato e até organizam suas comunidades pensando em preservar o que consideram a verdade divina, mas essa suposta verdade divina não se justifica mais, especialmente à luz dos conhecimentos acumulados e dos testemunhos da história.

O monoteísta devoto não é diferente de seus correlatos politeístas e animistas, que seguem cultuando deuses a quem os TEOCIDAS judeus, cristãos e muçulmanos assassinaram há muito tempo. Todos os cultuadores daqueles deuses cultuam cadáveres ainda mais velhos que o cadáver do deus abraâmico, também falecido há muito tempo. Aliás, foram os próprios abraâmicos que, ao matarem todos os outros deuses, acabaram envenenando o seu. Os desafios que estes colocaram diante dos cultuadores de outros deuses acabaram sendo arma uma carregada e engatilhada apontada para a cabeça de seu deus único e todo-poderoso. Foi uma questão de tempo até que ela fosse disparada, não importando quão rebuscado fosse o palavrório pseudo-filosófico ou pseudo-científico que esses mesmos abraâmicos usassem para salvar a vida de seu deus (vida que só era possível mesmo na imaginação dos que criam).

E por que ainda há quem carregue o cadáver de deus como se ele pudesse andar por conta própria?

Porque os seres humanos não são apenas racionais. Eles são passionais e misturaram muitos sentimentos ao culto à divindade. A adoração e a submissão mental à ideia de um deus são viciantes. Além disso, uma vez incorporado um hábito ou tradição, eles passam a controlar a pessoa, em vez do contrário. Basta ver quantos seres humanos cumprem ritos cujos significados eles desconhecem completamente. Contudo, se não os cumprem, sentem-se culpados ou ficam com medo de sofrerem consequências. O medo e a culpa são os grandes alicerces da crença religiosa, assim como dos ímpios sistemas e estruturas que dela advém.

Mas, observe bem: não é a crença em deus o maior problema. O maior de todos os problemas, a meu ver, é a crença na existência da alma e em sua imortalidade. Pouca diferença faria um deus que não tivesse o poder de punir ou recompensar eternamente uma alma que não pode morrer. Eis aí a grande sacada dos teólogos judeus, cristãos e muçulmanos: ameaçar a suposta alma dos fiéis (e dos infiéis que creem) com tormentos eternos ou tentar seduzi-la com prazeres eternos como meio de controlar os indivíduos. Por isso, ateus incomodam tanto – não podem ser controlados – e por isso, são tão perigosos – podem despertar outras consciências convenientemente dominadas se forem levados a sério.

Céu e inferno são as duas asas de um mesmo abutre. Você acabará devorado de qualquer modo, porque o único bem de fato que você possui, que é a vida aqui e agora, será diariamente sacrificado por uma ilusão até que não lhe reste mais um dia sequer e nem memória do que se foi.

Aliás, vale lembrar que outros sistemas de crença funcionam com a mesma lógica, inclusive a crença na reencarnação e em carmas. O abutre continua o mesmo: não fazer o que os mestres mandam acumula carma negativo e traz sofrimento, mas fazer fielmente o que eles ensinam compensará o carma acumulado de outras existências, aliviando o sofrimento. Se for bom o suficiente, poderá até se tornar um mentor, um guia de luz, um avatar, um com a divindade, dependendo da religião em questão. E isso vai do hinduísmo ao kardecismo, passando pelas mais diversas agremiações espiritualistas.

Por isso, a crença na imortalidade da alma é a maior ferramenta de mobilização de seres humanos. Ela é capaz de motivar pessoas relativamente inteligentes a darem a seus líderes aquilo que estes sempre ambicionaram: submissão e subserviência incondicionais, ou seja, poder.

Por isso, sugiro que você termine a leitura desse post assistindo meu vídeo sobre a imortalidade da alma e suas consequências nefastas. E que todos tenham uma boa semana, assim como uma vida sem cadáveres amarrados às costas, sejam eles de que deuses forem!


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Países mais ateus do mundo: Basta dizer não creio?

25/10/2015

Por Sergio Viula



Foto: estátua de Cristo na Polônia é maior que a do Rio


O site Mundo Estranho, que pertence à Editora Abril, publicou uma matéria sobre o ateísmo no mundo, sob o título “Qual é o país mais ateu do mundo?” (http://mundoestranho.abril.com.br/materia/qual-e-o-pais-com-mais-ateus-no-mundo ). Copio abaixo um resumo apresentado pelo próprio site:

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Crer ou não crer? – Os números da religião e do ateísmo no mundo

Suécia: 85%População: 8,9 milhões
Ateus: 7,6 milhões

Vietnã: 81%População: 82,6 milhões
Ateus: 66,9 milhões

O budismo e o taoísmo, religiões comuns por lá, são vistos como uma tradição, e não crença.

Dinamarca: 80%População: 5,4 milhões
Ateus: 4,3 milhões

Um levantamento da ONU aponta que países com boa taxa de alfabetização tendem a ser mais descrentes.

Noruega: 72%População:4,5 milhões
Ateus: 3,2 milhões

Japão: 65%População: 127 milhões
Ateus:82 milhões

Em 2008, o pesquisador britânico Richard Lynn concluiu que países com alto QI são mais ateus. É o caso da população japonesa, que mantém a média 105 – uma das mais altas já registradas.

República Tcheca: 61%População: 10 milhões
Ateus: 6,2 milhões

Finlândia: 60%População: 5,2 milhões
Ateus: 3,1 milhões

França: 54%População: 60,4 milhões
Ateus: 32,6 milhões

Coreia do Sul: 52%População: 48,5 milhões
Ateus: 25,2 milhões

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Vamos pensar juntos aqui...

Vê-se pelo quadro que os países, conquanto apresentem maioria de ateus em sua população, não são necessariamente igualmente emancipados quanto às visões tradicionalmente sustentadas pelas religiões. Suas posturas diante de diversas questões que afetam a vida humana, seja em seu plano individual ou coletivo, variam entre o nada tradicional e o extremamente influenciado pela tradição. Os suecos, por exemplo, respeitam os direitos humanos e valorizam as liberdades civis num nível muito mais intenso e amplo que o Vietnã, por exemplo, onde a população vive sob intenso controle governamental, inclusive em temas de foro privado.

A França, por exemplo, enfrentou forte oposição da parcela católica de sua população quando decidiu regulamentar os casamento para todas as pessoas, independentemente do sexo dos cônjuges. Venceu a legislação inclusiva, justa, igualitária, mas foi preciso empenho da parte da presidência daquela república em manter-se fiel à laicidade que os franceses vêm construindo ao longo dos últimos séculos. Venceu o laicismo. Casamento igualitário aprovado.

O que quero dizer com isso, então? Quero dizer que é fantástico ver que a maioria dos países com maior número de ateus é a dos que apresentam níveis de educação e bem-estar social mais elevados.Porém, quero chamar atenção para o fato de que não basta ser ateu. Dependendo da sociedade em que o ateu vive, ele precisa ir além do não crer. Ele precisa assumir uma postura subversiva, revolucionária. Deixo claro que não me refiro ao uso de armas e facções paramilitares. SUBVERTER O QUE ESTÁ ESTABELECIDO COMO TRADIÇÃO OU VERDADE INQUESTIONÁVEL SEM O USO DE ARMAS. Nossa estratégia tem que ser a de construir e promover CONHECIMENTO e manter um compromisso incondicional com a TRANSFORMAÇÃO, não com a CONSERVAÇÃO do que tradicionalmente é pensado, dito e feito em sociedades dominadas por normatividades nascidas de religiões totalitárias e que pretende controlar e ditar o que se deve pensar e como se deve viver em todas as perspectivas que a existência pode comportar.

É preciso ser subversivo, reformador, transformador. Precisamos ser parteiras e parteiros de uma cosmovisão que suplante tudo que veio sendo reforçado com base numa visão judaico-cristã em nossa sociedade, seja em termos de valores morais, interpretações da realidade, relações de toda sorte entre seres humanos e entre estes e a natureza que os rodeia. Incluem-se aqui também os modos de subjetivação e a pluralidade das subjetividades, o Direito, a Política, a Economia, a produção de conhecimento, as relações internacionais, e por aí vai.

Gente que conserva o que a neurose judaico-cristã produziu, por mais que diga ser ateia, continua agindo como um crente, com a diferença de que não ora. Isso é muito pouco. Pode ser até melhor deixar que os religiosos continuem fazendo isso, porque ver ateus irrefletidamente repetindo tais discursos e comportamentos, sujeitados a uma mimética do absurdo, é lastimável. E isso para não dizer profundamente prejudicial para qualquer movimento ateu que se preze.

Ateu que assina embaixo de coisas ditas por fundamentalistas e conservadores contra qualquer tentativa de romper com as subjugações, ou seja, com as subalternidades sacralizadas de muitos modos é mais religioso do que pensa, mesmo que despreze a cabeça do cadáver, ainda conserva o corpo. Diz que despreza deuses e qualquer tentativa metafísica de explicar a realidade, mas prescreve ou preserva como verdadeiros e mandatórios pensamentos e comportamentos que não se sustentam sem aqueles mesmos deuses e aquela(s) mesma(s) metafísica(s) que historicamente assombra o pensamento humano.

Para não esticar muito, como é que eu poderia resumir o que quero dizer numa frase? Não poderia. Mas vou tentar:

“Seja ateu em todos os sentidos, caso contrário não faz sentido ser ateu.” (Sergio Viula)


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Dia de Finados: Só os vivos sofrem

01/11/2015

Por Sergio Viula



Passou o divertido (e importado) Dia de Halloween e o (igualmente importado) Dia de Todos os Santos, afinal índio nunca comemorou isso até chegarem os invasores com suas armas e cruzes, e agora vem aí o Dia de Finados. Até nisso, há hierarquia: o Dia de Todos os Santos é para a elite dos que herdam o céu e o Dia de Finados para todos os outros, desde que batizados na Igreja Católica.

É importante para o católico celebrar todos os santos nesse dia específico, porque vai que algum santo tenha ficado esquecido no calendário anual. Lembre-se que todos os dias têm um ou mais santos sendo celebrados.

Agora, pagão (o não batizado) não merecia (e continua não merecendo) sequer ser lembrado.

Se fosse ateu, então, nem cova rasa queriam lhe dar. Claro, os cemitérios costumavam ser controlados pela Igreja, e até hoje a Santa Casa de Misericórdia controla muito do que acontece no agitadíssimo “condomínio dos mortos”.

E tudo isso é colocado estrategicamente em 31 de outubro e 02 de novembro para “substituir” as festas pagãs que mantinham crenças sobre o mundo dos mortos e dos vivos que não combinavam com as doutrinas cristãs. Claro que isso é muito lucrativo também: Três dias gastando dinheiro com os mortos, só que nos cofres da “vívissima” Igreja, enriquecendo o comércio religioso dentro e fora da máquina eclesiástica.

Mas muita gente diria, para usar a maneira originalíssima de falar que o Mussum usava:

Caralhis, eu quero é mé! (risos)

Mas beba com moderação, porque alguns encurtaram a própria vida por causa do álcool e outros entorpecentes, especialmente ao volante.

De qualquer modo, enquanto o nosso próprio fim não chega, vamos sofrendo perdas e sentindo saudades. E como eu disse ontem no Hangout da ARCA, do qual tive que me ausentar antes do final por problemas de conexão (NET promete, mas não entrega a velocidade combinada. Não é a primeira vez que isso acontece)… Então, como eu dizia: A má notícia é que vamos morrer. E a boa notícia é que vamos morrer. Explico:

É uma pena deixar a vida enquanto somos felizes, mas é um alívio ficar livre dela quando dores insuportáveis, doenças fatais para as quais não há cura, ou estados vegetativos nos atingem.

Para muita gente, essa é a realidade nesse momento. Para outros tantos, a vida parece uma festa sem hora para acabar. De qualquer modo, enquanto pudermos viver com dignidade, vale a pena viver. E quanto a morte, racionalmente falando, não há o que temer. Epicuro nos dá uma excelente lição sobre isso e penso que vale a pena lê-la, especialmente nesse dia 01 de novembro:


Epicuro
Grécia Antiga
341 // 270
Filósofo


A Morte Não É Nada Para Nós

Habitua-te a pensar que a morte não é nada para nós, pois que o bem e o mal só existem na sensação. Donde se segue que um conhecimento exato do facto de a morte não ser nada para nós permite-nos usufruir esta vida mortal, evitando que lhe atribuamos uma ideia de duração eterna e poupando-nos o pesar da imortalidade. Pois nada há de temível na vida para quem compreendeu nada haver de temível no facto de não viver. É pois, tolo quem afirma temer a morte, não porque sua vinda seja temível, mas porque é temível esperá-la.

Tolice afligir-se com a espera da morte, pois trata-se de algo que, uma vez vindo, não causa mal. Assim, o mais espantoso de todos os males, a morte, não é nada para nós, pois enquanto vivemos, ela não existe, e quando chega, não existimos mais.

Não há morte, então, nem para os vivos nem para os mortos, porquanto para uns não existe, e os outros não existem mais. Mas o vulgo, ou a teme como o pior dos males, ou a deseja como termo para os males da vida. O sábio não teme a morte, a vida não lhe é nenhum fardo, nem ele crê que seja um mal não mais existir. Assim como não é a abundância dos manjares, mas a sua qualidade, que nos delicia, assim também não é a longa duração da vida, mas seu encanto, que nos apraz.

Quanto aos que aconselham os jovens a viverem bem, e os velhos a bem morrerem, são uns ingênuos, não apenas porque a vida tem encanto mesmo para os velhos, como porque o cuidado de viver bem e o de bem morrer constituem um único e mesmo cuidado.

Epicuro,  “A Conduta na Vida”

Só para concluir, ressalto o seguinte:

Com medo da morte, alguns vivem miseravelmente, enquanto outros, a partir da exploração desses medrosos, vivem como reis. Além do medo, culpas meticulosamente geradas e manipuladas para darem o maior lucro possível e a conservarem relações de força desvantajosas para aqueles que se submetem aos supostos “mestres”, “guias”, “pais”, “mães”, “pastores”, entre outros, vão mantendo os crédulos presos por correntes e grades imaginárias dos mais variados tipos.



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Dois vasos de plantas no lugar daquelas duas testemunhas de Jeová ali na porta, por favor.

15/11/2015

Por Sergio Viula




Você pode clicar na foto para vê-la melhor e depois na seta de retorno para voltar ao post.

Numa universidade pública do Rio de Janeiro, duas testemunhas de Jeová (TJ) costumam ficar do lado de fora do portão, de plantão, na calçada que conduz aos portões da instituição.

Vestidas com decoro, com cabelos e pele muito bem tratados, eles/elas se destacam daquelas “ovelhas” de igrejas pentecostais extremamente radicais que vivem com os cabelos mal cuidados, usando roupas que não combinariam nem com o botijão de gás aqui de casa, tão ruim é o tecido e a estampa. Sem contar que as TJ não têm nada contra desodorantes.

Pois bem, essas adoráveis TJ, às vezes, duas mulheres; às vezes, dois homens, ficam de pé, como se estivessem de plantão, por horas a fio, esperando que alguma pobre alma desgarrada de Jeová pare para conversar com elas e seja reconduzida ao $alão do Reino das Testemunhas de Jeová, a única organização chancelada por Jeová na terra. Tudo mais é apenas sistema de Satanás. Um beijinho no ombro do Charles T. Russell todas as que não sobreviverão ao armagedom: as evangélicas, católicas, espíritas, enfim, todas as outras agremiações religiosas.

Até aí, tudo bem. A rua é pública e as revistas (Sentinela e Despertai) geralmente apresentam capas que não ferem os códigos de decência, ainda que eu não as considere inofensivas de modo algum, especialmente nas mãos de crianças e adolescentes. O que, de fato, me incomodou (nada que me fizesse perder tempo discutindo com elas) foi ver outra dupla dessas adoráveis criaturas, candidatas ao paraíso terrestre, fazendo plantão dentro das dependências da universidade. As duas figuras pareciam espantadas e dificilmente teriam alguma chance de conversar com os alunos, sempre apressados ou geralmente já abarrotados de leituras complicadas demais para ainda perderem tempo tentando entender os delírios de Jeová e dessa turma.

O que me incomoda, portanto, é ver a incoerência retratada naquela cena: uma organização que abomina o conhecimento científico, que vive criticando o “presente século” (o que inclui o humanismo secular e seus semelhantes), sempre dizendo que Jeová há de destruir e renovar toda a terra para que seus queridinhos panfleteiros e vendedores de literatura sancionada pelo Corpo Governante possam habitar sem a “pentelhação” dessa gente que insiste em doar sangue como gesto de amor, por exemplo, infiltrada nas dependências de uma universidade que elas mesmas abominam… Como assim, produção?

Não pude deixar de pensar no quanto as universidades FELIZMENTE se afastaram do controle da religião sobre o que se define como verdadeiro ou falso, pelo menos nos países que compõem o que chamamos de Ocidente. Infelizmente, em países dominados por governos islâmicos, isso ainda não é verdade. Conhecimento ou dogma se misturam, prevalecendo este sobre aquele. Lembrem-se do caso do jovem egípcio que ousou questionar a “cientificidade” do discurso de um professor muçulmano.

Mas pensemos nas universidades e sua trajetória.

As primeiras universidades surgiram no Oriente. Mas, as que foram fundadas no Ocidente foram fortemente estimuladas por padres e monges. Em seguida, passaram a ser subvencionadas pelos estados-nação, obviamente, por motivos nacionalistas e imperialistas, mas foram ganhando cada vez mais autonomia e primando pelo conhecimento livre das amarras dogmáticas da religião, pelo menos em alguns lugares do mundo. O resultado foi a secularização das universidades, mesmo daquelas que ainda são administradas pela Igreja, como é o caso das Pontifícias Universidades Católicas. E isso foi um ganho extraordinário para a comunidade acadêmica, para a sociedade em geral e para o sistema político-econômico no qual elas se inserem e ao qual, de certo modo, mantém ou transformam. Infelizmente, isso não acontece em todo o mundo. Muitas universidades continuam sob o domínio de líderes religiosos, especialmente no “mundo islâmico”.

Para ver uma lista das dez mais antigas universidades do mundo, acesse http://revistagalileu.globo.com/Revista/Common/0,,EMI343904-17770,00-AS+UNIVERSIDADES+MAIS+ANTIGAS+DO+MUNDO.html. É muito curioso.

Por serem tão estratégicas, as universidades, públicas ou privadas , precisam manter-se livres de qualquer influência de extremistas, conservadores e fundamentalistas. Ela pode e deve ser um lugar de diálogo inter-religioso , bem como de humanismo, secularismo, laicismo, ateísmo e outras formas de livre pensamento, assim como um espaço para os debates que envolvem ética, política e sociedade, é claro. Mas, a universidade precisa ser refratária a tentativas de sabotadores que odeiam a ciência ou que desejam controlá-la com fins mesquinhos.

Tentativas de fazer a universidade se curvar aos dogmas dessa ou daquela religião e aos interesses obscuros de partidos políticos ou de grandes corporações, em detrimento do avanço em todas as áreas do conhecimento (lembrem-se das pesquisas com células-tronco), exceto aquelas que atendam a esse ou àquele setor – isso é algo que não podemos admitir jamais.

A universidade deve produzir conhecimento científico, tecnológico, filosófico, artístico, social, político, histórico, linguístico, enfim, contemplar e promover o progresso em todas as áreas das ciências exatas, humanas e biológicas, de modo a enriquecer a experiência humana e facilitar a vida no planeta, desde as mais básicas atividades rotineiras até a realização dos mais ousados e sofisticados sonhos da humanidade, causando o menor impacto possível sobre ecossistemas, sejam os mais imediatamente associados a nós ou os mais remotos. Afinal, tudo está conectado de algum modo. Um recife que morre na Austrália pode afetar todo o planeta de diversas maneiras: temperatura, pureza e oxigenação dos oceanos, etc. A moral daquela velha anedota da borboleta que abanou as asas num lugar do planeta e causou um tsunami em outro é muito mais verdadeira do que se pode imaginar, apesar do tom jocoso da historieta.

Não se pode, por exemplo, tolerar “acidentes” como o da empresa Samarco, ocorrido neste novembro de 2015 em Minas Gerais. Um sistema fluvial inteiro foi afetado e possivelmente destruído por elementos tóxicos de responsabilidade daquela empresa ligada à Companhia Vale do Rio Doce, que desde o governo de Fernando Henrique está sob o controle da iniciativa privada. Não é mais estatal. Já se fala em deputados envolvidos numa CPI para investigar o caso supostamente recebendo dois milhões de reais cada da parte da empresa. CPI é o cacete! Polícia federal e Ministério Público em cima dos responsáveis. E STF em cima dos deputados que tenham aceitado suborno, caso seja comprovado. Cientistas, governantes, juristas têm que unir forças para obrigar a empresa a realizar a completa recuperação do Rio Doce e do sistema abastecido por ele, assim como do solo afetado. Pessoas intoxicadas poderão viver em grave sofrimento daqui para frente. Novas gestações poderão ser gravemente afetadas pela exposição aos elementos tóxicos. O Ministério da Saúde precisa investigar o impacto disso sobre a saúde pública e prover o necessário para que a população se recupere ou acabe sofrendo novos danos.

Não se pode tolerar a poluição do ar, principalmente nos níveis alarmantes de São Paulo, Pequim, Cidade do México – só para citar três.

Não se pode tolerar o desmatamento e a consequente destruição de nossas fontes hídricas.

Não se pode tolerar a poluição do espaço sideral com restos de foguetes, satélites e outras bugigangas de “última geração”, algumas enviadas para lá há décadas sem qualquer preocupação dos responsáveis em recolher esse lixo espacial. Na verdade, é lixo humano. O espaço não o produziu. Aliás, vale lembrar que outros animais não produzem lixo. Só o bicho humano. Há, inclusive, o risco de que esses objetos entrem na atmosfera da terra e colidam com áreas habitadas, florestas, regiões agricultadas ou usadas para criação de gado.

Não se pode tolerar o envenenamento de vegetais e animais usados para o consumo, a partir de insumos químicos com o objetivo de fazê-los crescer mais rápido, ao custo da saúde de bilhões de pessoas.

Outrossim, há que se pensar modos mais justos e solidários de se criar esses animais para que não sofram a vida inteira. Gado de corte e aves, de um modo geral, são torturados desde o nascimento até o abate. Isso é injustificável, antiético, cruel. Não é o caso de proibir o consumo de gado ou aves de corte, mas de tratá-los o mais dignamente possível até que, eventualmente, venham a ser comida. Enquanto ele comida não for, são seres sensíveis que apresentam muitas das emoções que tanto prezamos ou queremos evitar. Além disso, nós também seremos pasto para outros seres vivos um dia, inclusive micróbios, mas não vivemos como se já estivéssemos sendo devorados. E talvez já estejamos.

Ressalto, porém, que se depender de Jeová e de sua turma, o que teremos é o velho “quanto pior, melhor”, que a maioria dos crentes adora, quando se trata do “mundo” e das “coisas do mundo”. Afinal, só assim, eles podem culpar o diabo, o ser humano e o mundo, dizendo que a solução está naquele obscuro livro de muitíssimas fábulas e crimes, mas sem qualquer acuidade científica. O que se pode esperar, do ponto de vista científico, de um livro que não diferencia um morcego de uma ave.



Assim, não sejamos ingênuos. O conhecimento que gera soluções faz surgir novos problemas que precisarão de mais conhecimento para que sejam resolvidos, e que também gerarão novos problemas. Desse ciclo, jamais escaparemos, mas é transformando o círculo em espiral que nos desenvolvemos. O importante é não adiarmos o que já sabemos e que podemos fazer agora mesmo, de modo que vivamos vidas mais saudáveis, longas, felizes e com o máximo de harmonia possível no convívio com outras pessoas e demais seres vivos ou não vivos ao nosso redor.


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ATEU: Cansado, sim. Vencido, nunca.

29/11/2015 

Por Sergio Viula



Figura encontrada no Blog de Danilo Pinheiro



Ser ateu num país como o Brasil não é fácil, mas existem lugares bem piores. Em alguns locais, o simples ato de alguém assumir publicamente que não tem crença é suficiente para desencadear um linchamento à luz do dia sem qualquer obstrução por parte das autoridades locais. Em alguns casos, as próprias autoridades o incitam. Contudo, existem algumas coisas muito chatas que ateus podem enfrentar numa certa terra que tem palmeiras onde canta o sabiá.

Um dos momentos mais complicados pelos quais passa um descrente é o de “sair do armário ateu” para sua própria família. Assumir-se incrédulo para quem lhe ensinou algum credo ou rito desde cedo não costuma ser uma jornada tranquila. As pessoas podem ir das lágrimas ao ataque de fúria, seguidos de chantagem e outras violências.

Outra coisa chata é que quase todos os ritos de passagem em nossa sociedade incluem algum grau de religiosidade. Não basta dar nome ao curumim, é preciso batizá-lo, como no caso dos católicos, ou apresentá-lo ao “Senhor”, como fazem os evangélicos, ou circuncidá-lo como fazem os judeus, e por aí vai. Depois disso, existem outros ritos. Alguns designados para marcar o começo da adolescência (crisma, bar mitzvah, etc), celebrar o casamento, a bênção sobre a casa nova e outros objetos valiosos. Do nascimento à morte, sempre tem ritual. Não basta enterrar o defunto, é preciso rezar, cantar ou batucar, dependendo da religião da família. Afinal, nada mais badalado que um funeral, especialmente quando o indivíduo é famoso em sua comunidade, seja lá qual for a sua classe social.

Mas enquanto vivo for, o ateu sofrerá pressões para se explicar cada vez que diz não crer em deus ou em seres sobrenaturais. Até mesmo no leito de morte, o ateu será importunado.Tudo para garantir que ele se arrependa, mesmo que seja somente no último momento. Se o infeliz do moribundo, incapaz de falar ou gesticular, fizer o menor movimento com a pálpebra, um desses reflexos meramente mecânicos sem qualquer significado especial, haverá certamente um ou mais crentes aos brados no domingo seguinte, dizendo que o ateu se converteu antes de dar o último suspiro. Sério que vocês acreditam nisso mesmo?

Aliás, não só se enganam aí, como também não percebem que os momentos que antecedem a morte são provavelmente aqueles nos quais a maioria dos seres humanos (não todos, felizmente) mais jura acreditar em alguma coisa sobrenatural sem estar convicta de coisa alguma.

Não bastasse todo esse palavrório sobre deuses, anjos, espíritos, e congêneres para alimentar o mais profundo tédio de um ateu, já cansado de tanta bobagem, ainda é preciso encarar o fato de que a maioria das pessoas se sente especial demais para apenas nascer, envelhecer e morrer (reproduzir-se é absolutamente desnecessário diante da atual superpopulação mundial), devendo haver algo preparado especialmente para elas depois da morte. Isso é pior que porre de vinho barato: absolutamente insuportável.

Poderia até ser divertido se não fosse trágico. Afinal, como alguém tão importante poderia simplesmente deixar de existir, não é mesmo? Alguém que nunca fez a menor falta no universo em eras incompreensivelmente longas, de repente, torna-se indispensável depois de umas poucas décadas de vida – isso, se viver tanto.

E não basta uma única existência para pentelhar o mundo, é preciso sobreviver à própria morte e voltar (reencarnação), ou miraculosamente levantar-se do túmulo no mesmo corpo, estando livre de qualquer imperfeição (ressurreição).

Pelo menos, no budismo, o cabra não volta para sempre, porque em algum momento, depois de muitas reencarnações, o infeliz será absorvido pelo Nirvana – o nada. Também no hinduísmo, ele deixa de reencarnar quando se torna um com o Brahma – nada a ver com a cerveja que tu bebe depois do expediente, ateu pinguço… kkkk.

É muita pretensão que um indivíduo acredite que o universo não funcionará adequadamente sem que algo dele sobreviva ao “paletó de madeira” em algum tipo de existência pós-mundana.

É deprimente ver tanta gente que não vive tudo o que há para viver porque acha que precisa sacrificar prazeres que não causam dano algum ao semelhante para conquistarem recompensas pós-mundanas. E isso vai do simples fato de não ter uma religião ao inofensivo e solitário prazer de se masturbar durante um reconfortante banho no final do dia. Porém, existem consequências bem mais graves dessa crenças, tais como: os casos dos homens-bomba, que levam a jihad às últimas consequências.

Mas é de importância fundamental que atentados fundamentalistas estão sendo feitos aqui mesmo no Brasil, como provavelmente aconteceu com o terreiro Axé Oyá Bagan, que foi incendiado.

Houve denúncia de intolerância religiosa e o Ministério Público está acompanhando o caso. Segundo o jornal O Globo, em setembro, dois outros terreiros foram incendiados no entorno. Todos três Brasília.

Com o crescimento do extremismo, especialmente o chamado fundamentalismo evangélico, as religiões minoritárias correm cada vez mais risco, assim como vários outros segmentos sociais contra os quais essa turba ignorante grita em seus microfones e programas de rádio, TV e internet.

O que me consola é que o número de ateus vem crescendo entre os jovens. Mas, veja como os crentes se ressentem disso:

Eu comemorava o crescimento do ateísmo entre jovens brasileiros na minha timeline lá no Facebook, quando um conhecido meu, que é crente, veio me perguntar o seguinte:
Conhecido crente: Mas… deixa ver se eu consigo entender tanto júbilo. O fato de haver mais jovens que se dizem ateus do que aqueles que se identificam como evangélicos, conforme a reportagem, deve ser comemorado? Por quê? Qual é a vantagem disso na vida daqueles que comemoram o fato? E no quê isso melhora a sociedade, as chamadas minorias e a situação do país? Alguém pode me explicar como se eu tivesse cinco anos, como dizia o advogado vivido por Denzel Washington no magnífico filme “Filadélfia”?

Sergio Viula:
A vantagem é ter menos risco de ser manipulado a partir de neuroses relacionadas a amigos ou inimigos imaginários, ter pensamentos e corpos manipulados, desprezar os que não leem na sua cartilha dogmática, gastar fortunas para sustentar parasitas trabalhados óleo da unção, e por aí vai. Viver livre desses e outros entraves existenciais é numa puta vantagem no nível individual. Agora me aponta um problema em ser ateu que não esteja relacionado a alguma fábula, mito ou historieta?

Conhecido crente:
Nenhum problema. De fato, ateus não costumam ter amarras ou motivações religiosas ou proselitistas em suas ações. Mas, excetuando-se idiotas interesseiros como Malafaia e Feliciano, quantos mais evangélicos merecem, de fato, a classificação de perseguidores ou opressores, Sergio Viula? Você conviveu no segmento tempo suficiente para conhecer a modo de ação dos evangélicos.

Sergio Viula:
Todos os que os sustentam (diretamente) e os que mantém a circulação dos discursos que sejam menos do que reconhecimento da dignidade de todas as pessoas, inclusive gays, lésbicas, bissexuais, travestis, transexuais, sem nenhum “mas, porém, todavia”. NENHUM. O mesmo valendo para as religiões afro, para o folclore brasileiro, inclusive nas escolas, etc. Malafaia e Feliciano são só a ponta caricata do iceberg. É bem o contrário: a exceção é que destoa de tudo isso e ainda tem a coragem de desafiar esses hipócritas. São raríssimos.

(Fim da conversa)

Mas não basta ficar fazendo chacota das crenças. É preciso desenvolver textos (falados ou escritos) que colaborem para o esclarecimento daqueles que estiverem dispostos a ouvir e ler o que temos a dizer.

Na semana passada, por exemplo, eu estive na 1ª Conferência Internacional do [SSEX BBOX] em São Paulo. A minha fala foi sobre “Sexualidade, Cultura e Religião”. Vocês já podem imaginar o “babado” (hehehe). Falei dos dois armários dos quais saí praticamente ao mesmo tempo, mas que eram coisas bem diferentes: o da homossexualidade e o do ateísmo. Pude discorrer bastante sobre questões religiosas e sobre minha postura ateísta diante da vida e de tudo o que me circunda. Foi extremante estimulante ver a boa recepção, mesmo por parte daqueles que têm algum tipo de fé. Essa fala foi feita no contexto da polarização do laicismo versus fundamentalismo religioso e diversas nuances entre um e outro.

E, como em todo grupo social, os que têm alguma crença são a maioria, mas no caso dos participantes da conferência, parece que o fundamentalismo religioso está passando longe.

Aliás, penso muito sinceramente que o fanatismo religioso fará mais pela expansão do pensamento ateísta no mundo do que qualquer argumentação racionalmente construída. Há de chegar o dia em que as alegadas verdades reveladas e totalizantes serão vistas como absolutamente ridículas.

Assim, sigamos em frente, mas sempre defendendo o direito tanto à crença como à não-crença, enquanto combatemos as ideias extremistas e fascistas, que, por definição, são totalizantes, absolutizantes, uniformizantes e insuportavelmente antagônicas a qualquer projeto de liberdade. E digo liberdade aqui, pensando no direito de todo indivíduo à expressão de suas subjetividades e à realização de si mesmo, conforme suas mais profundas aspirações.

Chega de coerção e sufocamento!

E se for para sonhar com mundos melhores, sonhemos e trabalhemos para fazer desse mundo um lugar menos insuportável – o que significa mais livre, leve e solto. 


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Medo de descrer?

13/12/2015 
Por Sergio viula

medo de descrer

Tenho conversado com vários amigos sobre religião e ateísmo ultimamente. Algumas pessoas me contataram pela primeira vez nesta e na semana passada com o objetivo de solicitar algum esclarecimento ou conselho em matéria de fé e ateísmo. Confesso que não gosto da ideia de dar conselhos. Prefiro pensar que estamos trocando ideias, porque muitas das perguntas que esses amigos e colegas recém-chegados me fazem acabam me levando a pensar em certos aspectos da vida que eu ainda não tinha verbalizado do modo como acabo fazendo a cada interação. O crescimento vem em mão dupla.

Essas pessoas costumam me perguntar sobre certos aspectos de suas crenças e por que considero absolutamente dispensável ao bem viver qualquer tipo de fé em deus, deusa, deuses ou deusas. Nesse pacote, também viajam para bem longe de mim superstições como espíritos, anjos, demônios, vidas pós-mundanas, reencarnação, carma, etc.

Interessante notar que muitos nem acreditam completamente em tais coisas, mas ainda temem as consequências do descrer. Essa semana tive a oportunidade de conversar com três pessoas com essa mesma linha de raciocínio.

É curioso também que muitos acreditem que sem deus ou leis divinamente reveladas, os homens se perderiam e tudo viraria desordem e “barbárie”. Essa ideia não sobrevive à mais superficial passada d’olhos sobre realidade ao nosso redor. Não se precisa nem recorrer à história, ainda que ela possa nos fornecer inesgotáveis exemplos do que “homens de deus” foram capazes de fazer contra a humanidade.

Na verdade, basta olharmos em volta para percebermos que não é por falta de fé que as pessoas cometem os crimes mais hediondos: tortura, estupro, assassinato, corrupção envolvendo dinheiro público e de empresas privadas ou de capital misto – só para citar alguns. Muito pelo contrário, muitas vezes, o pretexto é justamente essa fé.

Mas, não nos apressemos, pois não podemos dizer que a fé transforma homens honestos em bandidos. Esse homens dificilmente foram honestos algum dia. E se pareciam ser, talvez estivessem mentindo para si mesmos – a pior das desonestidades. A maioria não buscou a igreja ou o sacerdócio/ministério pastoral à toa. De fato, o que choca é que essa mesma fé também não os tenha transformado. Nada mudou em seu mau caráter. Pelo contrário, o palavrório religioso serve para distrair os trouxas, enquanto aplicam diversos tipos de golpe..A Câmara dos Deputados está cheia de (maus) exemplos.

Mas dificilmente erraríamos ao afirmar que enquanto muitos desses bandidos estavam desprovidos de um elemento mobilizador que fosse capaz de catalisar seus mais sórdidos sentimentos e colocá-los em movimento, eles continuavam em “modo incubação”, até que encontraram na fé a motivação que tanto desejavam, e na congregação religiosa, o senso de pertença capaz de conferir às maiores atrocidades uma aura de “normalidade” ou de “senso comum” – que só parece comum mesmo, porque os membros da denominação religiosa, seja ela qual for, vivem num ambiente emocionalmente sobrecarregado de paixões de tristeza e de morte, que, por estarem associadas a ideais de virtude nas pregações e liturgias, impedem que eles façam qualquer movimento racional para fora dessa caixa de ressonância fundamentalista, extremista, totalizante e totalitarista – seja de fabricação judaica, cristã ou islâmica (para ficar só nos três maiores monoteísmos). Existem outras.

Portanto, nem a fé nem a falta dela torna alguém necessariamente bom ou mau. Tenho vários amigos que creem e são pessoas maravilhosas, assim como tenho amigos que não creem e são igualmente fantásticos. Por outro lado, conheço gente que afirma ter fé, mas é mais diabólica que o mitológico Satanás, e gente que diz que é ateia, mas fala e age como os crentes mais fundamentalistas do pedaço, achando que são melhores do que esses fanáticos apenas porque não repetem versículos bíblicos. Porém, tomam todo o cuidado para preservarem os mesmos “frames” – ou esquemas de pensamento e julgamento sobre certo e errado – que qualquer idiotinha extremista utiliza.

Além de causarem problemas para muita gente que não tem a menor intenção de viver de acordo com as lendas religiosas registradas nos livros “sagrados” de cada sistema de crenças ou com tradições preservadas pela transmissão oral, essas agremiações e suas pregações/doutrinas levam o indivíduo a se tornar dependente de uma fé coercitiva, baseada em preceitos inegociáveis, deixando de viver muitas alegrias e tentando justificar sua melancolia, frustração e até mesmo ira, por não conseguir se realizar plenamente por causa do auto-patrulhamento e do patrulhamento de outros que professam a mesma fé e pertencem à mesma agremiação.

Às vezes, até os que não têm qualquer ligação com aquele ambiente e os discursos que circulam nele tornam-se o “outro” em função do qual, o crente (qualquer que seja sua crença) precisa se comportar como um exemplo de piedade e abnegação, mesmo quando isso não passa de verniz. E olhem que estou pensando nos crentes que levam a religião a sério, porque a maioria nem se dá o trabalho de envernizar a cara de pau que canta (nem sempre) lindamente na igreja, mas depois faz todo tipo de falcatrua na praça, trai o cônjuge com gente da própria igreja ou da vizinhança, sem dar a menor importância ao escândalo que pode estar sendo semeado com isso tudo. Ah, e como brotam tais escândalos! Eles vicejam como capim e trepadeiras e prevalecem sobre as tentativas de ocultamento de padres, pastores, rabinos, imãs, etc. Sem contar o que faz o povão que os segue, é claro.

Se tem uma coisa que as religiões institucionalizadas, especialmente as que trabalham com técnicas de manipulação mental, odeiam quase tanto quanto odeiam o ateísmo, são conceitos como o de individualidade, subjetividade e autonomia. Por isso, falam tanto na importância do rebanho, da reunião, da submissão a uma suposta “autoridade especialmente designada por deus”.

Só que tudo isso é muito perigoso, pois é por meio dessas técnicas de controle e muitas outras aparentemente inofensivas que multidões inteiras são enredadas no engano e perdem tempo, dinheiro, amigos, contato com os parentes que não compartilham do mesmo sistema de crenças, e por aí vai. E o medo de descrer é o maior aliado do silenciamento (que não resolução de modo algum) das dúvidas que ousaram emergir de regiões aparentemente inacessíveis da própria pisque.

A todos e todas, um ótimo domingo e uma linda semana.

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Você é dono dos seus pensamentos?

20/12/2015 



Por Sergio Viula

É amplamente conhecido o ódio dos fundamentalistas muçulmanos contra qualquer sinal de diversidade ou de discordância das normas arbitrariamente estabelecidas por odiadores que viveram antes deles, principalmente autoridades políticas e religiosas.

Mas, atenção: Ninguém nasce num mundo “virgem” em termos de normas. Não existe uma sociedade sequer, na qual um indivíduo possa nascer sem que esteja sujeito a normas que o constrangem e o modelam em sua mais íntima subjetividade.

Antes mesmo do primeiro choro do recém-nascido, uma série de normas já estão operando para “enformá-lo” tão-logo ele chegue ao mundo. Essas normas envolvem gênero, sexualidade, crenças, classe social, etnia, nacionalidade, e determinarão muito do pensamento e comportamento desse indivíduo futuramente.

Por isso, não basta que se retire um fanático muçulmano, vítima de extremismos, ainda mais extremos do que o seu próprio, da região em que vivia, para que esse refugiado ou imigrante se livre do sistema de coerções que restringiam e continuam restringindo seu pensamento e comportamento.

Isso é o que temos visto da parte de refugiados muçulmanos homofóbicos, os quais, trazendo toda a bagagem de preconceitos que acumularam em sua terra de origem, ameaçam, torturam e até matam seus conterrâneos homossexuais com base nos mesmos pressupostos esposados pelos grupos extremistas, dos quais eles também fugiram: o Estado Islâmico, o Boko Haram, a Al Qaeda, entre outros.

Na Suécia, dois jovens marroquinos mataram um cidadão homossexual, mas além do espancamento que resultou em morte, eles o insultaram com xingamentos homofóbicos o tempo todo. Por fim, enrolaram uma cobra morta no pescoço da vítima. Não escaparam, porque um dos jovens teve seu DNA identificado graças a resquícios de seu sangue na cobra – símbolo do mal personificado para judeus, cristãos e muçulmanos. Um vídeo com as cenas do espancamento foi recuperado pelos investigadores suecos, mesmo depois de apagado, e a cena do crime pôde ser vista em detalhes.

Além desse episódio na Suécia, a Holanda tem se preocupado com o sofrimento dos refugiados sírios que são gays. Eles têm sido submetidos a todo o tipo de constrangimento e risco de morte entre seus patrícios, igualmente refugiados. Tanto assim que esse mês (dez/15), o Ministro da Justiça holandês, Klaas Djikoff, decidiu criar uma ala separada para os refugiados que venham a sofrer assédio homofóbico ou que voluntariamente se identifiquem como gays ao serem recebidos nos espaços de recolhimento. Inicialmenre, o ministro hesitou em criar esse espaço, porque considerava que essa seria uma forma de segregação com base em orientação sexual. Porém, levando em consideração o risco real para a vida dessas pessoas, ele não viu outra alternativa.

Em julho desse ano, um jovem iraquiano contou à BBC como escapou de ser entregue pelo próprio pai ao Estado Islâmico. O pai estava ciente do destino dos homens gays entregues aos milicianos extremistas. Ele sabia que o filho provavelmente seria atirado de um prédio, sob a excitada aprovação da multidão, mas mesmo assim pretendia fazê-lo. O rapaz conseguiu escapar a tempo.

Fonte: http://www.bbc.com/portuguese/noticias/2015/07/150723_ei_homossexuais_tg

Tragicamenre, é justamente esse o tipo de multidão que emigra para outros países, tentando escapar do ISIS e outros grupos. Suas mentes deformadas pela homofobia – continuamente alimentada pelas crenças e normas estabelecidas ao longo de séculos de doutrinação religiosa naquelas sociedades – vai com eles, obviamente. Vale lembrar que muitas dessas pessoas consideram a si mesmas como fiéis e amáveis seguidoras de Alá e de seu profeta. A noção que têm de si mesmas e das outras pessoas é patologicamente distorcida pelos sistemas de coerção baseados em crenças e discursos que elas mesmas consideram como sagrados, apesar de violarem qualquer noção de direitos humanos.

Sensível a essa terrível realidade que os refugiados LGBT tem enfrentado, mesmo quando chegam a terras consideradas mais seguras que seus países de origem, foi que o presidente Barack Obama decidiu priorizar o recebimento dos refugiados com esse recorte identitário que fogem da morte na Síria. A decisão foi anunciada pela Casa Branca no último dia 09.

Mas por que trago essas notícias hoje? Entre outras coisas, para que reflitamos sobre o sofrimento que essas pessoas estão vivenciando, mesmo depois de chegarem a destinos onde acreditavam que teriam paz e alguma chance de começar uma nova vida.

Isso nos diz muito sobre os males que os discursos religiosos podem causar aos seres humanos, mas, muito mais do que isso, gostaria de chamar a atenção dos meus queridos leitores e das minhas queridas leitoras para o fato de que nós também estamos sujeitos a sistemas de coerção, que, de modo semelhante àqueles, modelam nosso pensamento de muitas maneiras, assim como o pensamento das pessoas que nos rodeiam – o que pode nos dar a falsa sensação de que não podemos estar errados. Afinal, muita gente pensa do mesmo jeito e é impossível que tanta gente esteja enganada. #sóquenão. Podemos estar absolutamente enganados. E para piorar, podemos estar sendo reforçados em nosso engano por pessoas tão enganadas quanto nós mesmos. Como quebrar essa corrente de equívocos, então?

Felizmente, apesar das múltiplas influências e interações que ajudaram a constituir nossa subjetividade, podemos pensar o pensamento. Não é fácil, mas é possível. E como o modo como nos vemos e vemos os outros, e a maneira como agimos no mundo, tem muito a ver com o que pensamos a partir de pressupostos já cristalizados em nossa cultura, antes mesmo que pudéssemos problematizá-los, devemos nos esforçar sinceramente por reconhecer e compreender o modus operandi dessa rede de coerções.

Ao nos darmos conta de como essas coisas se interconectam e nos constituem, poderemos reconstruir os caminhos que nos trouxeram aqui. É preciso que identifiquemos o que não é racional, razoável e justificável a partir de uma ética que inclua o máximo de empatia possível, a fim de mudarmos o que for preciso para que nos tornemos seres humanos mais abertos, livres e felizes e para que sejamos proativos na produção das condições de existência que permitirão que outros também o sejam.

Infelizmente, a desconversão, a apostasia, ou seja lá como queiram chamar o abandono da fé por alguém que ainda há pouco era crente, não é suficiente para garantir que o indivíduo fará uma completa travessia para fora das caixinhas mentais que lhe foram impostas ou daquelas que ele abraçou irrefletidamente, a partir das interações sociais que vivenciou desde que nasceu. Por isso, ainda existem tantos ateus que reproduzem preconceitos engendrados pelas crenças e pelas instituições religiosas – e não me refiro apenas à homofobia e seus derivados.

De qualquer modo, ver um ou outro ateu usando termos como “gayzista”, por exemplo, para desmerecer a luta das pessoas LGBT por direitos iguais é algo que me causa profundo estranhamento. Primeiro, porque o termo foi cunhado por fanáticos do movimento neo-pentecostal americano que venderam essa ideia para extremistas evangélicos no Brasil, como foi o caso de Julio Severo, que através de seus canais na internet, serviu de interface entre os pastores extremistas e caça-níqueis americanos e brasileiros do ignóbil quilate de Silas Malafaia, Marco Feliciano e outros. Note bem o que estou dizendo: EU, SERGIO VIULA, já ouço Júlio Severo usando esse termo há anos. Há uns 14 anos!!! De repente, o mais fake de todos os fakes de filósofo, o insuportável Otávio de Carvalho, começou a usar o termo também. Bastou isso para que alguns ateus (não mais inteligentes do que essa turma de ignorantes) achassem o termo engraçadinho e começassem a usá-lo para fins de piada e para desmerecer o que realmente está em jogo: as justas demandas das pessoas LGBT por direitos iguais, bem como a liberação da sociedade das mesmas amarras que atam todos esses fundamentalistas (e, digo-o com vergonha alheia, alguns ateus ignorantes também) num amontoado de esquizofrênicas inutilidades contemporâneas.

Além do total nonsense do termo gayzista, ele justapõe dois substantivos historicamente antagônicos – gay e nazista.

Gays foram torturados, mortos e esquecidos nas cadeias, mesmo depois do final do Holocausto nazista, graças ao parágrafo 145 do Código Penal da Alemanha, sendo os homossexuais e transgêneros de vários tipos o único grupo que sofreu dupla violência: a dos campos de concentração e a da não compensação pelo governo alemão do pós-guerra.

A justaposição dos dois termos (gay e nazista) está longe de ser inocente. Ela foi pensada, através da cunhagem do híbrido gayzista, dar a entender que existe esse (outro) absurdo semântico, a “ditadura gay”.

Quando você quiser mostrar claramente a altura, a largura e a profundidade da sua ignorância e má-fé, use interno gayzista na presença de gente que não faz uso desse termo e nem advoga a ridícula ideia de ditadura gay. Você será imediatamente reconhecido como membro do nada seleto grupo dos completos idiotas.

Ironias à parte, não use esses termos para se referir à comunidade LGBT e sua luta. Não seja conivente com os que trabalham na mesma lógica do ISIS, dos nazistas, dos fundamentalistas cristãos e dos judeus ultraortodoxos, só para citar alguns. Todos eles estão presos à mesma matriz de crenças e de moralidade abraâmica. Liberte-se disso o quanto antes.

É por isso que eu já disse reiteradas vezes que penso o seguinte: nenhum ser humano, principalmente se for cético, agnóstico ou ateu, deveria se contentar em simplesmente não adotar um credo religioso. Para além disso, cada um desses seres humanos deveria fazer um trabalho sério de desconstrução de conceitos e preconceitos. Mas isso apenas para abrir espaço para a construção de conceitos e valores que não admitam – sob qualquer hipótese – a restrição das liberdades humanas, seja no campo do pensamento ou da expressão de si mesmo. E por expressão, refiro-me às expressões identitárias, bem como às expressões de ideias e de afetos. E associemos a isso o direito legítimo à autorrealização, seja ela qual for, desde que não viole os direitos fundamentais das outras pessoas.

Simplificando: O fato de um sírio, iraquiano ou iraniano ser gay, e se realizar como ser humano enquanto tal, não viola o direito de qualquer muçulmano, cristão, judeu, hindu, budista, ou religioso de qualquer outra filiação, muito menos de ateus e agnósticos.

Por outro lado, o ódio homofóbico de qualquer uma dessas pessoas viola direta e gravemente os direitos das pessoas homossexuais, bissexuais e trans, inclusive o mais essencial deles, que é o direito à vida. Isso, por si só, já deveria fazer qualquer ser humano inteligente e desprovido de má-fé, ou que não sofra de alguma psico/sociopatia, a abandonar qualquer pragmática anti-LGBT.

O que não podemos admitir, sob hipótese alguma, é que o ódio LGBTfóbico que caracteriza certas sociedades do Oriente Médio, da África e da Ásia venha a lançar raízes em países que se tornaram o sonho imigratório dessas pessoas exatamente por funcionarem sobre bases mais humanistas e secularistas.

Por isso mesmo, refaço aqui a pergunta do título: Você é dono dos seus pensamentos? Ou será que os pensamentos que você tão obstinadamente considera seus são, na verdade, o resultado de uma espécie de contínua “colonização”, resultante de sua inserção nessa rede discursiva altamente complexa e profundamente influente que o rodeia e perpassa desde o primeiro contato dos seus pulmões com o oxigênio do ambiente em que você nasceu? Lembre-se que nossa sociedade foi doutrinada sob bases muito semelhantes às do islamismo: as bases dos monoteísmos judaico e cristão são essencialmente as mesmas. Na verdade, o islamismo é uma combinação de judaísmo e cristianismo com crenças correntes no tempo de Maomé e seus sucessores.

Se isso o consola, temos sido (todos) colonizados por essas ideias em alguma medida. Mas não confunda consolo com resignação. Não parece ser uma atitude correta resignar-se diante do simples fato de que você não é o único. Lembre-se que você pode reavaliar, refletir, expor-se a outras maneiras de ver e de pensar as mesmas coisas. Você pode realizar profundas mudanças em seu modo de pensar, falar e agir, mesmo que leve muito tempo nesse processo. Mas, que sejam mudanças para garantir mais liberdade, mais abertura para a diversidade de sujeitos com igualdade de direitos, para a assumir e usufruir o próprio corpo, de modos cada vez menos sujeitados às arbitrariedades de gente que vive de mal com o mundo e consigo mesma.

Que você e eu atinjamos uma abertura maior para o pensamento racional, razoável, acompanhado daquela compaixão que nos resguarda de fazermos o que não gostaríamos que fizessem conosco ou nos livra de nos omitirmos naquilo que gostaríamos que outros agissem, caso fôssemos nós na berlinda.

Em uma frase: Não podemos admitir nada menos que as condições de existência que garantam um lugar seguro ao sol para todos, todas e todxs!

Boa semana!

Sergio Viula


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Listen to your heart!

03/01/2016 


Por Sergio Viula



Primeiro domingo do ano e primeiro texto da Coluna do Viula em 2016. Acho que é um bom momento para pensar na vida. E falando em viver, não há coisa melhor que viver o que se quiser viver, como se desejar viver. E não custa lembrar: o único limite inegociável é o respeito aos mesmos direitos na pessoa do outro.

Estamos em pleno século XXI e ainda tem muita gente que não faz o que deseja por mera coerção social. O pior é que, uma vez internalizadas, essas coibições resultam numa série de efeitos colaterais, especialmente psíquicos, que vão da raiva à depressão, podendo ser somatizados, ou seja, transformados em doenças físicas também. Sem contar o barulho que toma as redes sociais e outros círculos quando essa gente mal resolvida cisma de vociferar todo seu ódio por aí. Quando isso acontece, acabamos conhecendo o lado feio da força (risos). Não digo (lado) negro (da força), porque negro é lindo! Tenho me surpreendido com pessoas que eu nunca pensaria serem tão egoístas e desumanas.

Fiz um teste essa semana. Nunca havia publicado qualquer foto minha sem roupa por aí. Não acho que seja adequado mostrar genitálias em publicações abertas nas redes sociais. E mesmo nas publicações de grupos fechados, sempre há a possibilidade de vazamento. Como tenho, vários compromissos que exigem algum decoro, nunca me permiti publicar ou enviar por chat fotos assim. Mas, meu decoro é só mesmo o necessário. Nada de obsessões com etiquetas sociais excessivas e opressivas.

Mas, no último dia do ano, acordei com fogo extra no coro. E decidi fazer um teste: publiquei uma foto nu, mas sem qualquer exagero. Nada de pênis ou bunda aparecendo. Acreditem, houve quem dissesse que a foto poderia virar um desenho ou uma pintura. Fiquei lisonjeado. Não sou mais jovem (esse povo entre 20 e 30 anos). Já estou curtindo meu 46º ano de vida. Então, todo esse frisson acabou sendo um carinho gostoso e saudável no ego.

Quando eu pensei que já tinha atingido meu orgasmo midiático, recebi uma mãozinha extra de um(a) conservador(a). O moralista de plantão, fiscal do furico alheio, achou por bem fazer uma denúncia anônima contra a foto, esperando que o Facebook a removesse. O que ele(a) não esperava era que a rede do Zuckerberg lhe desse uma baita bordoada no meio da lata.

Sim, porque o Facebook respondeu que a foto não viola os padrões da comunidade. Publiquei a resposta deles em print e tirei um delicioso sarro com a cara do(a) idiota. O clímax dessa punheta foi essa frase que eu soltei no meio do meu mais subversivo prazer:

Essa foto NÃO VIOLA. Essa foto VIULA. (risos)

Incrível como as pessoas nem ligam quando veem corpos trucidados, mutilados, boiando em enchentes – corpos atravessados por tragédias naturais ou por violências que vão de um mero assalto até um crime por homofobia ou transfobia, por exemplo.

Já vi fotos de extremo mal gosto publicadas no Facebook, mas nunca consideradas impróprias. Coisas como mulheres esfregando a vagina na cara de homens em bailes funk e coisas assim. Sou totalmente a favor da liberdade para que os bailes funcionem e que cada um faça o que achar melhor de seu próprio corpo, desde que não viole o corpo do outro. Mas, não deixa de ser interessante ver a hipocrisia de alguns moralistas; o incômodo que a felicidade alheia pode causar a essas “frágeis” criaturas de gosto duvidoso. Fico me perguntando como o bem-estar de alguém, inclusive o de estar bem consigo mesmo, pode incomodar tanto os descontentes, frustrados e reprimidos, como eu disse lá no início?

Antes que alguém me pergunte: Mas cadê a foto, Sergio Viula? Aí, vai um print da publicação.




Alguém pode estar se perguntando: E por que falar nisso aqui? Entre outras coisas, porque esse episódio ilustra bem dois princípios que eu adoto para a vida: Faça tudo o que você desejar, desde que isso não viole o direito de ninguém. Não tente impedir que as pessoas façam aquilo que desejarem se isso não viola o seu direito.

E digo a vocês, queridos leitores: um amigo já havia me dito que talvez o Facebook me bloqueasse por causa dessa foto. Ele estava preocupado, porque gosta muito de ler minhas postagens e pensou que eu pudesse ficar impedido de fazê-las. Minha resposta carinhosa foi que se o Facebook fizesse isso, eu daria uma de loka e alopraria geral, publicando mais e mais fotos e postagens ousadas assim, mas sempre na mesma linha de bom gosto, até que eles suspendessem minha conta. Eu ia querer ver até onde iria tudo isso. Mas, como eu disse, o Facebook deu um lindo coió na recalcada (essa pessoa desocupada e infeliz… kkkk) que fez a denúncia. E como não poderia deixar de ser, saí linda e faceira desse embate. E pelos comentários que recebi dos amigos, tudo isso acabou sendo extremamente inspirador para a maioria deles (depois de ler esse post, clique na foto e veja os comentários). Eu também acho que a ousadia com bom nível é sempre inspiradora. Tem muita gente que segue essa linha e me enleva.




E é por essas e outras coisas que o título desse post é inspirado pela música de mesmo nome, cantada por Roxette: Listen to your heart (Ouça seu coração). Roxete canta literalmente o seguinte: Ouça seu coração antes que você lhe diga adeus.

Sim, meus amigos e amigas, porque cada dia que você não faz o que deseja, isto é, não vive como quer ou não é plenamente você mesmo(a), é um dia a menos para fazer tudo isso daí para frente. Nossos lindos corpos são como ampulhetas ambulantes. A areia continua caindo, mas não há quem possa nos virar ao contrário para que tenhamos todo aquele tempo de novo.

Penso que o equilíbrio pode ser resumido numa frase. E foi essa frase que eu coloquei como foto de capa na virada do ano:

“Resolução de ano novo: Viver intensamente, mas sem pressa.”

Explico: a pressa é fruto da angústia diante dos prazos apertados, e ela mesma, por sua vez, gera mais angústia ainda, porque geralmente é “inimiga da perfeição”. E vou mais longe: a pressa é inimiga da SATISFAÇÃO. Comer com pressa, amar com pressa, viajar com pressa, enfim, fazer qualquer coisa apressadamente não satisfaz. Parece que sempre fica faltando alguma coisa; algo se perde pelo caminho. Viver intensamente, mas sem pressa – eis uma boa maneira de se conduzir na vida.

Se tem uma coisa que ateus, agnósticos e outros livres pensadores ‘deveriam’ poder fazer melhor que ninguém, é viver sem medo e sem culpa de serem felizes. Curiosamente, nem sempre é assim. Muitos ainda vivem sob os ecos das vozes do além, imaginadas com tanta força e carregadas de tanta emoção enquanto valorizavam a religiosidade que agora renegam, que, sem que eles percebam, acabam reprimindo ou estragando seus mais inocentes prazeres. Isso para não falar nas coerções impostas pelas voz do outro e pelo olhar do outro, sempre temidos, sempre considerados como de suma importância. Ah, a reputação! Ela tem seu valor, mas, se excessivamente valorizada, ela se transforma em gaiola.

Por isso, considero de suma importância que todos saibam usar convenientemente o botão do foda-se. Ele é extremamente útil na hora de se lidar com gente recalcada, reprimida, mal resolvida, moralista, conservadora, fundamentalista, despeitada, invejosa, eternamente insatisfeita com tudo, seja lá o que for isso, principalmente quando querem contaminar os outros com essas ziquiziras psíquicas e existenciais. Ligar esse botão “mágico” dá menos trabalho e é uma delícia! Experiência própria, meus lindos e minhas lindas!

Então, para não prender você demais aqui, encerro esse post com um Feliz 2016! E que seja um tempo feliz, especialmente porque você está de bem com seu corpo (porque o corpo é você) e com os demais corpos à sua volta. Porque, se você estiver de bem consigo mesmo, provavelmente viverá em paz com os outros. É o que eu sempre digo: Gente feliz não enche o saco. (risos)

Para inspirar seu domingo e sugerir um bom lema para cada dia de 2016, compartilho a linda música de Roxette, Listen to your heart .

Vídeo aqui: https://www.youtube.com/watch?v=yCC_b5WHLX0



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Hoje, eu não queria dizer nada.

10/01/2016 

Por Sergio Viula


Relutei muito em escrever o texto dessa coluna hoje. Na verdade, gosto de pensar no tema antes de escrever a respeito dele. Não que eu não tenha algo a dizer, mas falta a vontade de dizê-lo. E eu mesmo não sei por quê. Talvez, porque já tem muita gente dizendo muita coisa o tempo todo em todo lugar. Acho que estou com saudade do silêncio. Talvez, porque eu mesmo esteja um pouco cansado de dizer o que penso sobre tantas coisas.

Ando meio desanimado com o ser humano de um modo geral. Pode ser que esse cansaço seja comigo mesmo no final das contas, sei lá. Vejo tanta incompreensão, intolerância, discussão sem sentido e sem qualquer objetivo mais nobre. Vejo tanta gente boa sendo injustiçada, enquanto tanta gente mesquinha passa incólume. Mas isso acontece desde que o mundo é mundo. Por que isso me afetou hoje, não sei. Acho que não foi hoje. Esse sentimento já vem me acompanhando há um tempinho, mas varia de intensidade. Tanto assim que há pouco mais de duas ou três semanas, eu saí de todos os grupos ateístas e LGBT dos quais fazia parte. Um total de mais de 40. Por quê? Cansaço. Ninguém me fez nada direta ou pessoalmente. Simplesmente, cansei de certas discussões. Não ouvir certas coisas mantém as pessoas que eu (acho que) conheço em posições mais altas no meu ranking valorativo. Ah, antes que eu me esqueça: o mesmo deve acontecer comigo: quando falo, caio no conceito de alguns e subo no conceito de outros. Mas, o que isso quer mesmo dizer, afinal? ^^

Essa semana, assisti um vídeo no Facebook em que Muhammad Ali dizia tanta coisa verdadeira sobre o modo como os negros eram tratados nos EUA que eu quase dei um curtir no vídeo. Mas, no final do vídeo, ele disse que foi por uma injustiça dessas que ele se tornou muçulmano. Tipo, depois de ser campeão mundial pelos EUA, uma garçonete se recusou a lhe vender um cachorro quente, porque o estabelecimento para o qual ela trabalhava não servia negros. Isso me revolta é claro, mas a pergunta que me veio à mente foi: Cara, por que não você se tornou logo ateu? Ou por que não se voltou para a religião dos seus ancestrais? De que maneira, o islamismo, um misto de judaísmo, cristianismo e crenças populares que circulavam na Arábia do tempo de Maomé pode ser uma alternativa melhor? Como escolher uma religião que foi pretexto para outros invasores dominarem o norte da África, assim como o foi o cristianismo? Homens africanos degolados, mulheres africanas estupradas e feitas de escravas, crianças separadas de seus pais com finalidades sexuais e de trabalho forçado!!! Como isso pode ser mais emancipador do que aquilo?

Daí, vi muita gente curtindo e compartilhando, provavelmente porque concordaram com o que ele falou sobre racismo, mas não perceberam a sutileza com que ele estava, na verdade, divulgando o islamismo ao dar esse ‘testemunho’ de conversão.

Fiquei pensando no crescimento do Islã no Brasil e na possibilidade desses muçulmanos nascidos aqui, com todos os direitos de cidadão brasileiro garantidos, elegerem deputados e senadores dentre os líderes de suas comunidades religiosas, gente comprometida com o islamismo. Dinheiro para as campanhas não lhes falta. Só precisam de eleitores, mas se o islamismo vier mesmo a ser uma das três maiores religiões do Brasil em 15 ou 20 anos, isso não seria mais empecilho.

Que tragédia seria isso! Além da bancada fanática de católicos e evangélicos que já amargamos, poderíamos ter representantes fanáticos do Islã com toda sua misoginia, homofobia, ódio às artes, ao secularismo e ao laicismo, ódio aos ateus, aos religiosos que não sejam muçulmanos e a tudo o que nos parece inofensivo, mas que lhes parece blasfemo.

Países com democracias bem mais maduras que a nossa resistem a essas influências, mas não sei se nós conseguiríamos fazer isso, uma vez que mal resistimos aos atentados fundamentalistas evangélicos e católicos contra a laicidade do Estado brasileiro. Imaginem, então, se essa marolinha virar onda de verdade.

Além disso, acabei de assistir o canal Nostalgia (Youtube) falando sobre a vida, a carreira e a morte de Michael Jackson – um dos artistas que eu mais amei (e ainda amo!) ao longo da minha breve vida. Não pude deixar de me emocionar com o talento, mas também me entristeci novamente com o sofrimento imposto sobre ele por uma mídia ansiosa por ganhar dinheiro, custe o que custar aos infelizes que ela pega para judas. Ele também enfrentou muito sofrimento por causa do vitiligo (confirmado, inclusive por autópsia). Teve também o acidente que quase o matou, enquanto ele gravava um comercial para a Pepsi. Sem falar no inferno que foi ter um pai como o dele. Com toda sua docilidade e aparente fragilidade, Michael Jackson superou tudo isso e tornou-se um dos maiores ícones do pop, mas não só isso: ele também foi um dos maiores filantropos entre as celebridades de todos os tempos, doando fortunas para 62 organizações beneficentes, principalmente aquelas voltadas para o bem-estar das crianças.

Rever a história de Michael Jackson me trouxe de volta a ideia de que seres humanos incríveis podem ter vidas muito dolorosas, mesmo obtendo sucesso em suas carreiras e finanças. E tudo isso por causa da mesquinhez de outros seres humanos, incapazes dos mesmos feitos mas muito competentes na “arte” da fofoca, da chantagem e da sabotagem.

Como seria bom que cada um cuidasse apenas de sua própria vida! Melhor ainda se cada um valorizasse e fizesse bom uso do que tem, enquanto procura realizar novos sonhos, em vez de ficar contando cada níquel que o vizinho faz ou quão feliz ele parece ser.

Mas, pior do que o outro sabotando a vida da gente, é a autossabotagem. Como seria bom que cada um fizesse o que bem entendesse de sua própria vida sem se importar com a aprovação ou reprovação do outro, desde que a realização de seu desejo não prejudicasse terceiros. Terrível coisa é viver pensando em agradar plateias não pagantes e com quociente intelectual e emocional abaixo da mediocridade.

Hoje mesmo conversei com um rapaz que me disse ter passado anos de sua vida tentando ser algo que não era por medo de parecer o que os outros poderiam reprovar. Eis aí uma das mais terríveis maneiras de alguém se autossabotar. Existem muitas outras.

Viver já dá muito trabalho. Ser feliz e prolongar essa felicidade, idem. Agora, tentar viver para agradar os outros é insuportável e nunca se traduzirá em felicidade de fato.

Como é que Muhammad Ali, Michael Jackson e esse rapaz cujo nome eu mantenho no anonimato vieram parar aqui, eu não sei… Talvez, porque todos três sofreram mais por causa do que os outros falaram deles ou para eles (ou até do que eles imaginaram que diriam) do que por uma limitação natural. Incrível como o social nos afeta e até nos modela, seja para melhor ou para pior, para mais ou para menos. Felizmente, podemos participar ativamente nesses processos e nos recusarmos a nos submetermos a essas circunstâncias, pessoas ou sistemas.

Bem, para quem não queria dizer nada, acho que já falei até demais. Desculpem a interrupção abrupta, mas vocês podem pegar o que acabaram de ler e fazer algo ou nada com tudo isso. O que sei é que vou me recolher aos meus pensamentos novamente. Tenham todos um ótimo final de domingo nesse 10/01/16 e uma semana com mais alegrias.


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Existe ateu na hora da morte?

17/01/2016.





Parece ser ‘patrimônio’ do senso comum a ideia de que todo ateu, ao primeiro sinal de grave crise, tal como doença ou morte, passa a acreditar, quase que imediatamente, na existência de algo para além da vida. E para ‘provar’ isso, os que têm alguma crença, especialmente aqueles que precisam desesperadamente de confirmação para suas ideias, acreditam que a suposta conversão de um ateu (muitas vezes mera especulação de crentes), seja a demonstração última de que crer é a coisa mais racional a se fazer, mesmo que a existência de qualquer realidade metafísica jamais tenha sido mínima e satisfatoriamente demonstrada. Tentativas foram feitas, mas todas elas fracassaram. Não me surpreendo que existam ateus, mas que ainda existam crentes. Faço questão de dizer que isso não tem nada a ver com sinceridade ou falsidade na prática da religião. Nem a safadeza de pastores ladrões e estupradores nem a admirável piedade de Desmond Tutu, por exemplo, fazem qualquer diferença para o argumento de que crenças religiosas são pura imaginação carregada de fortes emoções. Resumindo: o mais sincero crente não torna nenhuma de suas crenças mais verdadeiras.

E por que será que temos a impressão de que ateus geralmente se convertem no leito da doença ou da morte?

Uma das razões é que a mídia geralmente destaca qualquer sinal de pietismo religioso, mas apaga, ignora, silencia o discurso ateu e a morte dos inconversos. Não se precisa de muito esforço para perceber que a imprensa raramente dá espaço ao discurso ateu, mas está repleta de discursos religiosos, seja de pregadores profissionais ou de artistas e pessoas comuns.

Claro que aqueles que nunca acreditaram no sobrenatural podem se render às pressões sociais, muitas vezes exercidas em momentos de maior vulnerabilidade emocional e revestidas de palavras solidárias. Mas, eu poderia apostar que quando ateus morrem rejeitando qualquer sacramento, oração ou apelo à conversão, os religiosos que testemunharam seu fim não divulgam isso, porque sentem-se derrotados e/ou desesperados só em pensar que seu parente ou amigo pode ter ido para o inferno por causa disso. Isso quando não dizem que ele se arrependeu e creu, ainda que não haja qualquer evidência disso, como nos casos de morte depois de longos períodos em estado vegetativo. Como o falecido ateu não pode voltar para dizer o que realmente aconteceu, prevalece o silenciamento de sua descrença ou a lenda de sua conversão.

Pessoalmente, espero que no momento da minha morte (se não for resultado de um acidente que me tome de supetão), não haja um crente de qualquer matiz (católico, evangélico, espírita, etc.) pentelhando meu juízo. Espero poder simplesmente desaparecer graciosamente. E caso eu seja tomado por um acidente, catástrofe natural ou por uma fulminante parada cardíaca, sejam dignos e não inventem lendas urbanas de caráter supersticioso a meu respeito. Aceitem que dói menos: o ateu morreu. Ponto final.

Ponto final para mim, mas não para os elementos que compõem meu corpo, assim como acontece a qualquer outro organismo no planeta.

Meu corpo se decomporá ao nível das partículas mais elementares e provavelmente será reaproveitado pela natureza para a formação de novos de organismos da mesma maneira que ele mesmo se formou e se desenvolveu a partir dos elementos que já foram de outros corpos, vivos ou não vivos.

Mas e a consciência?

Não vejo razão para não crer que ela seja uma projeção do corpo, isto é, uma produção dessa fantástica fábrica de sensações e pensamentos chamada cérebro. Gosto da metáfora da TV. Mesmo que ela não seja perfeita – nenhuma metáfora o é -, ela ajuda a entender o que quero dizer. A metáfora é a seguinte: se o televisor fosse meu corpo, a imagem dele seria minha consciência. Uma vez pifada a TV, a imagem desaparece. Uma vez morto o corpo, cessam todas as suas expressões, porque cessam os processos na base que produz o que chamamos de consciência, inclusive a autoconsciência. O medo da morte e a invenção de supostas vidas depois dela são resultado dessa consciência, mas não sobrevivem à cessação da atividade cerebral.

E por que me parece mais sensato pensar assim? Porque não há qualquer evidência do contrário. Milagres, sonhos, revelações, comunicação mediúnica, projeção astral, etc. não são provas do contrário. Só reforçam a minha tese, pois continuam sendo resultado de processos cerebrais que um dia deixarão de produzir a mesma consciência que acredita ter sido gerada por uma superior a si mesma. O argumento espiritualista, no sentido mais amplo do termo, é circular: Porque há vida após a morte, as pessoas têm experiências inexplicáveis. E as pessoas têm experiências inexplicáveis porque há vida após a morte. Só que tudo isso não demonstra coisa alguma a respeito dessa tal vida após a morte. Só revela de que capacidades extraordinárias, especialmente no campo da imaginação, o cérebro é capaz.

Não admira que nossa imaginação seja tão povoada por ideias oriundas de crenças religiosas. Nascemos numa sociedade mergulhada em crenças cristãs e nossa mente continua encharcada de conceitos oriundos destas, mesmo que deixemos os templos. E isso explica parcialmente por que os ateus muitas vezes se referem às crenças cristãs, apesar de existirem tantas outras. Por isso, a reiterada referência a esses produtos historicamente cristalizados (os textos sagrados, as doutrinas, os ritos, os templos) a partir da fluida imaginação humana.

Um dos ateus que eu mais admiro é José Saramago, autor português, que foi perguntado muitas vezes sobre seu ateísmo e nunca se acanhou em responder direta e francamente a essas provocações argumentativas. Morreu sem nunca se curvar a qualquer apelo religioso. Nunca se converteu a deus algum. Em 18/06/10, Saramago deu seu último suspiro. Seu falecimento se deu em seu próprio quarto em sua bela casa nas Ilhas Canárias, depois de uma vida de produção literária exuberante. Foram 87 anos! E nem a doença ou a morte roubaram-lhe a lucidez que caracterizou sua vida.

Vale a pena ver o que Saramago disse nessa entrevista.

Graças à tecnologia das artes gráficas e das telecomunicações, podemos ter o que deus algum jamais poderia nos dar: sua eternização. Saramago continuará conosco através de seus livros e vídeos. Só não lhe dirijam preces. Ele não estará em lugar algum para ouvi-las.  Deixo vocês com Saramago em vídeo e aqui me despeço por hoje. Bom domingo!

SARAMAGO AQUI: https://youtu.be/XjkoxGa-72s


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A face mutante do Diabo e sua utilidade para a igreja


24/01/2016
Por Sergio Viula





Recorte do Saltério de Winchester, uma pintura da Idade Média


As representações do Diabo foram introduzidas e modificadas ao longo do tempo no imaginário popular por artistas que compuseram alguns dos mais incríveis mosaicos, pinturas e textos na Europa.

O Diabo, como o pensam hoje as massas, não foi sempre imaginado do mesmo jeito. E mesmo nas escrituras cristãs, não existe uma descrição clara de sua criação e queda. O que o cristão mediano supõe ser um relato de sua criação e queda são originalmente passagens que falam da Babilônia e do rei de Tiro (respectivamente, Isaías 14:11-23 e Ezequiel 28:11-19). Portanto, para início de conversa, não existe qualquer passagem bíblica clara e exclusivamente dedicada a descrever a origem e a suposta queda de satanás. apesar de existirem citações sobre satanás, diabo e demônios, como veremos adiante.

Ao que parece, a igreja cristã precisava desesperadamente de um bode expiatório para explicar a origem do mal, e satanás era a opção mais conveniente. Dizer que Deus criou o mal seria colocar em dúvida a qualidade de seu caráter. Isso, porém, não resolve o problema, porque se Deus é onisciente, ele sabia o que aconteceria se criasse o tal anjo. E se Deus é onipotente (o que inclui dizer que é livre para fazer o que deseja), poderia nem ter criado esse querubim que viria a ser o diabo, para início de conversa.

De qualquer modo, a caracterização de Satanás como um poderoso rival de Deus servia (e serve) bem ao propósito de controlar as massas através do terror. À figura do diabo, está associada a ideia de inferno como um lugar ou estado de sofrimento eterno, bem como a ideia de pecado, seja como um ato de rebelião contra Deus ou como um estado de corrupção e decadência. A tríade diabo-pecado-inferno rendeu extraordinariamente mais poder, dinheiro e grandeza ao clero católico e protestante, do que a ideia de um Jesus meigo, bondoso e acolhedor.

Só para se ter uma ideia de como a centralidade de Satanás no discurso de pastores e padres hoje passa longe do lugar que ele ocupava nas escrituras cristãs, vale a pena tomarmos alguns números relacionados aos termos que se referem ao Diabo, bem como aos termos que se referem a Jeová, Jesus ou ao Espírito Santo. O termo “Deus” foi deixado de lado por poder se referir tanto ao Deus dos judeus e dos cristãos como aos Deuses dos gentios e dos pagãos. O nome de Jeová, porém, foi usado nessa pesquisa, porque era o mais usado para se referir a Deus no Velho Testamento.A palavra Senhor também foi incluída nessa busca, porque ela era usada para se referir a Deus judaico-cristão, mas não aos Deuses gentílicos ou pagãos pelos escritores da Bíblia. A busca foi feita através do site Bíblia Online, que utiliza a tradução de João Ferreira de Almeida – a preferida pelos protestantes no Brasil. E isso foi o que encontrei.


Referências ao diabo nas escrituras cristãs:

A palavra diabo aparece 20 vezes no Velho Testamento e 135 no Novo Testamento (total 155).
A palavra satanás aparece 15 vezes no Velho Testamento e 73 no Novo Testamento (total 88).
A palavra demônio aparece 04 vezes no Velho Testamento e 104 no Novo Testamento (total: 108).
O termo “espírito imundo” se referindo aos demônios aparece somente no Novo Testamento – 25 vezes (total: 25).
O termo “espírito maligno” (ou espírito mau) aparece 09 vezes no Velho Testamento e 08 vezes no Novo Testamento (total: 17).
O nome de Jeová é mencionado 5.817 vezes no Velho Testamento e nenhuma no Novo Testamento (Total 5.817).
O termo Senhor, atribuído a Deus, aparece 6.932 vezes no Velho Testamento e 954 vezes no Novo Testamento, atribuído a Deus, a Jesus ou ao Espírito Santo (total: 7.886)
O nome de Jesus é mencionado 1438 vezes no Novo Testamento (total: 1438).
A palavra Cristo é mencionada 570 vezes no Novo Testamento (total: 570).
O termo Espírito Santo aparece 03 vezes no Velho Testamento e 98 vezes no Novo Testamento (total: 101).
O termo Espírito de Deus aparece 22 vezes no Velho Testamento e 20 vezes no Novo Testamento (total: 42).
MORAL DA HISTÓRIA:

Os temos que se referem ao “inimigo” de Deus totalizam 393 ocorrências;
As palavras que se referem a Jeová, a Jesus ou ao Espírito Santo totalizam 15.854 ocorrências.

Isto quer dizer que os termos referentes a Jeová, Jesus e o Espírito Santo ocorrem 40 vezes mais frequentemente do que termos referentes a Satanás e aos demônios. No entanto, a igrejas têm uma fascinação pelo diabo que parece torná-lo uma figura muito mais presente em seus cultos, pregações, artigos e representações do que jamais imaginaram os autores bíblicos nos 66 livros que compõem a Bíblia protestante ou nos 73 livros que figuram na Bíblia católica. Ah, sim, porque os cristãos não têm consenso sequer sobre quais livros devem compor a Bíblia!

E por que será que isso acontece? Por que Satanás é tão popular na boca desses pregadores? Duas hipóteses são as seguintes:

Porque o Diabo na boca dos pastores e padres é reconhecidamente um excelente instrumento de controle do povo pelo medo – o que significa governar seus corpos, suas carteiras, seus votos e seus pensamentos. Os crédulos serão contra tudo aquilo que o pastor e o padre lhes dizem ser do Diabo e serão a favor de tudo daquilo que o pastor diz ser de Deus.

E também porque quanto pior for Satanás na pregação desses líderes religiosos, mais indispensáveis serão eles. Os “ungidos” serão vistos como verdadeiros heróis na fictícia luta contra o diabo. Mas nada disso sem um custo ($$$) elevadíssimo, “absolutamente justificado” pela “nobreza” da função que exercem.

E será que o diabo existe mesmo? Sim, ele existe tanto quanto a Cuca e o Saci Pererê. Quero dizer que o Diabo judaico-cristão existe de modo semelhante ao das míticas figuras do folclore brasileiro, as quais também infligiam medo sobre as mentes ingênuas dos antigos moradores do interior do nosso país. O Diabo e seus demônios – figuras míticas do judaísmo e do cristianismo – também infligem pavor sobre as mentes dos crédulos, mas são tão imaginários quanto os personagens do nosso folclore.

Mas, sabe o que é pior? Os crédulos dirão que iniciativas como a de escrever esse texto são obra do Capiroto com o objetivo de enganar os néscios. Dirão também que – se possível fosse – enganariam até os escolhidos. É fácil perceber onde isso vai dar. Para provar que é um escolhido, o ‘cabra’ tem que rejeitar qualquer questionamento sobre a validade de suas crenças. Caso contrário, ele colaborará com Satanás. Assim, está garantido o ofício e os ganhos dos que se alimentam das tesourarias desse desperdício de espaço e de tempo a que chamamos igreja, exceto por aquelas que são verdadeiras obras de arte e que poderiam ser transformadas em peças de museu muito bem preservadas e sem a menor relevância, senão a de preservar uma parte de nossa história e da arte produzida nesse período. Mas, isso só seria possível se as pessoas fossem mais céticas do que costumam ser. O problema é que crer parece mais fácil do que pensar. Deslumbrar-se é mais confortável do que analisar criticamente o que se vê.

Mas o que é que vemos, senão as obras dos próprios homens, já que Deus mesmo nunca deu as caras? Ah, mas os teólogos terão mil motivos para esse ocultamento… Sim, os teólogos, essas estranhas criaturas que pensam o impensável, dizem o indizível e descrevem o invisível. Não são por isso mesmo ainda mais extraordinárias? Chegam a ser mais incríveis do que o Deus a quem supõem conhecer. Mas, eu me pergunto quantos deles creem realmente em tudo o que dizem. Ninguém sabe… NINGUÉM mesmo.


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Vida louca, vida breve
13/02/2016 


Por Sergio Viula



Antes de tudo, quero pedir desculpas por não ter publicado nos últimos dois domingos, mas muita coisa aconteceu nessas duas semanas e não dei conta de tudo. Agradeço aos que sentiram falta e procuraram saber se estava tudo bem. 

Fora de controle

A maioria de nós adora a sensação de estar no controle das coisas, mas, no fundo, isso não passa de mera ilusão. E quando não acreditamos que temos o domínio, tendemos a atribuir a condução de nossas vidas a deuses ou outros seres supostamente superiores. Esse é o teor da frase de para-choque de caminhão que diz: “eu dirijo, mas Deus me guia.” O fato é que nem nós nem deus algum está no controle do que quer que seja. A vida humana é breve, cheia de altos e baixos, cercada de riscos, e sempre passível de ser encerrada sem qualquer aviso prévio.

Isso, porém, não deve ser razão para desespero ou desmotivação. Pelo contrário, se podemos ter nossas vidas interrompidas a qualquer momento, eis aí mais um motivo para vivermos ainda mais intensamente cada momento disponível. E isso sem perder a tranquilidade de quem sabe que quando não há solução para uma ameaça à existência, não haverá oração ou pensamento positivo que nos valha.

Felizmente, graças ao desenvolvimento do conhecimento científico, já fomos capazes de coisas extraordinárias, ainda que nem sempre nos demos conta de sua grandeza. A prevenção ou cura de uma (nada) simples diarreia em crianças através do soro caseiro, já salvou bilhões da morte e é um bom exemplo disso. Existem outros muito mais complexos, mas esse mostra que as soluções para grandes problemas podem ser simples, mas nem sempre fáceis de serem encontradas. E mesmo com toda nossa ciência e tecnologia, um dia a morte chegará para nós também, com ou sem aviso prévio. E é aí que me lembro de uma canção de Cazuza: “Vida louca, vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve…”

No final, ele diz: “Tô cansado de tanta babaquice, tanta caretice, dessa eterna falta do que falar. Vida louca vida, vida breve, já que eu não posso te levar, quero que você me leve..”

E é exatamente nessa “vibe” que me encontro. Na verdade, já faz algum tempo que venho vivendo assim. Viver o que há para ser vivido sem prejudicar ninguém, mas sem deixar que outros me digam como devo viver. Esses dias, disse a um amigo que decidi deixar de dançar a música alheia e tocar a minha própria. E é bem isso.

Dois pesos – a babaquice de muitos humanos

Falar de Cazuza e dessa música é lembrar de seu drama com o vírus da imunodeficiência adquirida. E quando o vírus HIV começou a infectar pessoas nos EUA, muita gente pensou e disse as maiores asneiras. De “castigo de Deus” e “praga gay” a “sinal do fim do mundo”, a estupidez típica dos desesperados ou maliciosos reinava, inclusive entre aqueles que deviam primar pela exatidão dos dados antes de espalhar superstições e boatos que imediatamente tornariam as vidas de muitos indivíduos infectados com o vírus uma experiência insuportável no momento em que mais precisavam de apoio.

Na verdade, tratava-se apenas de um microrganismo sem qualquer ideologia embutida em seu DNA, mas logo se formaram ao redor dele os mais estapafúrdios discursos. Assim como o HIV, o Ebola também fez seu estrago fatal em muitos casos, mas foi controlado rapidamente. Agora o caos está sendo promovido pelo vírus Zika, que desafia os cientistas e apavora as grávidas por estar aparentemente associado à microcefalia em fetos. No entanto, não houve uma só manchete que atribuísse os males causados pelo vírus Zika a algum castigo divino contra a “obstinação humana em procriar”, apesar da superpopulação de 9 bilhões de “parasitas humanos” que causam todo tipo de malefícios ao planeta. Pelo contrário, Deus foi convenientemente deixado fora disso, apesar da desgraça que vem se abatendo sobre esses pobres fetos e essas gestantes. Mas, eu acho que é uma boa ideia colocá-lo em foco, porque a coisa fica bem feia para o lado de Deus quando lemos que Jesus teria dito: “Não se vendem dois passarinhos por um asse? No entanto, nenhum cai por terra sem a vontade de vosso Pai.” (Mateus 10:29) Um asse era uma moeda romana de bronze de pouco valor. Então, a lógica é que se dois passarinhos valem tão pouco e Deus supostamente cuida deles, ele certamente cuidará do ser humano com muito mais diligência.

Ora, se esse é o caso, por que a microcefalia em fetos causada por um estúpido vírus, afinal de contas? Será que Deus quer que essas crianças fiquem prejudicadas pelo resto de suas vidas? Alguns dirão: “De modo algum!” Então, porque ele não impede que isso aconteça? Por que ele – todo-poderoso como dizem que é – não impede que o vírus continue existindo ou simplesmente demita o mosquito da função de vetor? Vocês já sabem a resposta, mesmo que se recusem a dizê-la: Porque não há um deus no controle de nada disso.

Ah, sim, só para garantir que ninguém deixe de entender meu ponto aqui, quero deixar claro algumas coias:

1. HIV, Ebola e Zika vêm todos do mesmo lugar: da floresta.

2. Seres ditos sobrenaturais não provocam, não impedem e não curam doenças desencadeadas por esses vírus. Nossa esperança está no trabalho dos cientistas, assim como se deu com a prevenção ou cura de várias doenças: a paralisia infantil, as hepatites A e B, o sarampo, e assim por diante.

3. Esses e outros microrganismos que nos causam danos não servem a qualquer propósito mais elevado, assim como nós não servimos a nenhum propósito mais elevado para a vida das vacas quando comemos um bife.

Olhando para tudo isso, é inacreditável que muita gente ainda renuncie a vida em troca de uma recompensa que nunca virá, ou porque tem medo de pegar alguma doença, ou porque acredita que pode sofrer algum dano. Ora, renunciar a vida é o dano. Quando você é mortal, descartar ao que você não tem condições de recuperar é uma tremenda estupidez. O melhor nome que me vem à mente para isso é DESPERDÍCIO. Eu poderia dar outros bem mais agressivos, mas não temos tempo para isso, não é verdade? 

Então, se o grande barato da vida é viver, o que você ainda está fazendo aí, criança? Vá viver, se aventurar, inventar, criar, curtir o que você gosta de fazer, porque um dos meus mais queridos poetas-cantores já disse que a vida é louca, que a vida é breve.  Mas, isso não quer dizer que você não pode ou não não deve tomar as precauções possíveis. O que isso quer dizer é que de um jeito ou de outro, você vai parar um dia. Então, viva! E para sua inspiração ou só para matar a saudade, encerro esse post com Cazuza.


VIDEO: https://www.youtube.com/watch?v=wYZeAkIgGA0



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Coisas que eu ouço…

21/02/2016 

Por Sergio Viula


Charada – Jim Carey no filme do Batman


Viver em sociedade é sempre um desafio. Você ouve de tudo. Claro que os outros podem dizer a mesma coisa a seu respeito. Mas nem tudo o que a gente ouve é ruim. Tem muita coisa divertida, interessante, inteligente. Por isso, esse domingo quero colocar algumas delas aqui na coluna.

PRIMEIRA PERGUNTA

Um amigo por causa do meu atual namoro: Sergio, você só gosta de namorar gente mais nova?

Eu: Não, eu gosto de namorar gente, desde que seja do sexo masculino. Já fui casado com mulher e antes dela tive uma outra namorada, mas gosto de homem. Já namorei caras mais velhos, um dos mais novos tinha sete anos a mais que eu e o mais velho tinha quase 20 anos a mais. E estou falando da minha fase adulta. Hoje, meu namorado é bem mais jovem que eu, mas poderia ser da mesma idade ou mais velho, como outros que eu já tive. Por que não? De 18 a 80, tudo é possível! ^^ Não é uma questão de idade, mas de química, cabeça, honestidade, etc. E quando vai além de uma boa transa e vira amor de fato, não tem explicação: a pessoa torna-se indispensável. É o que estou sentindo agora em reciprocidade.


SEGUNDA PERGUNTA

Uma aluna. Ela olha meio surpresa para a minha mão, depois de um tempão já convivendo comigo, e pergunta: Professor, você não era casado?

Eu, rindo: Sim, era. Mas me divorciei já te tempo (quase dois anos já, minha gente!). Não fica triste, o feriado de carnaval me proporcionou um lindo encontro com o amor e parece que vai longe (a turma toda riu, inclusive ela).


TERCEIRA PERGUNTA

(na verdade, essa não foi uma pergunta, mas uma interação entre duas pessoas)

Uma mulher vinha conversando com um marinheiro, voltando de BH para o Rio, e começou a criticar jovens gays e lésbicas. O papo nem era esse de começo. Era só sobre a pegação do marinheiro durante o carnaval. A mulher mesmo parecia doidinha para esfregar a proa dela no mastro dele. Mas o que interessa é o que respondeu o marinheiro: Eu já fui do tipo que não podia ver casalzinho gay que queria dar porrada e tudo. Amadureci com a vida. Hoje, eu penso que cada um pode fazer de si mesmo o que quiser. Isso é da conta de cada um e não dos outros. Além disso, se o meu vizinho não gosta de mulher, melhor para mim.

Eu, em pensamento: Chupa, mocreia homofóbica! Que bom que tem gente que ainda consegue mudar para melhor!!! Detalhe, tinha um casal de rapazes num banco mais adiante dormindo abraçadinhos. Lindos!


QUARTA PERGUNTA


Um amigo via Facebook: Sergio, você poderia me dizer como abordar a questão do livre arbítrio?

Eu: A pergunta é boa. Primeiro, eu diria que não acreditar em livre arbítrio não significa acreditar que nossos atos estão todos determinados a serem uma só coisa, isto é, sem a possibilidade de fazermos escolhas. Claro que as fazemos, mas dentro de um escopo de possibilidades. Para dizermos que nossos arbítrio é totalmente livre precisaríamos ser onipotentes. Por isso, se alguém pode ser perfeitamente responsabilizado pelo mal que há no mundo, esse é o deus dos teístas. Ele, sim, detentor de todo o poder e de todo saber, poderia ter feito tudo de outra maneira, quer dizer, de modo que o mal nunca se formasse ou que nunca se manifestasse (claro que estou falando sobre o que pensam os teístas, porque para mim isso não passa de imaginação). Se não o fez, ele não é livre de verdade. E se desejava que tudo fosse assim realmente, ele não é bom. Quanto a nós, temos contingências que não nos permitem fazer tudo e qualquer coisa, mas dentro do escopo de nossas possibilidades, podemos fazer coisas diferentes. Por exemplo, não podemos escolher não escolher, porque isso também já é uma escolha. Mas podemos fazer escolhas diferentes dentro de um número de possibilidades. A título de exemplificação, posso dizer que se ouço um insulto, posso devolvê-lo, posso bater no ofensor, posso matar o ofensor, posso ignorar e seguir adiante, posso processar o ofensor, ou posso até abençoar o ofensor (Jesus disse para fazermos essa última… Kkkk). 

Todas essas são possibilidades dentre as quais eu posso escolher. Por isso, posso ser considerado responsável pelo que fizer em função da ofensa e do ofensor em questão. Claro que fatores como temperamento, educação, força, o contexto vão influenciar minha decisão sobre que ação tomar, mas não vão determiná-la irremediavelmente numa direção. Pessoas pacatas matam e pessoas coléricas perdoam. Brigas quando os dois estão a sós podem não terminar em violência física, enquanto brigas à luz dia e no meio de uma multidão podem virar caso de polícia. Fazemos escolhas, mas nunca livres de contingências intrínsecas e extrínsecas a nós mesmos. Isso sem contar os casos que envolvem doença mental, entorpecimento por drogas, etc. A própria justiça considera atenuantes em certas circunstâncias, porque determinados fatores podem alterar o juízo do acusado, interferindo no seu arbítrio, que se fosse realmente livre não seria passível de coerção por fator algum.


QUINTA PERGUNTA

(em função de uma matéria que saiu o The Guardian)

Um amigo: Sergio, você ganha dinheiro com essas entrevistas para a mídia?

Eu: Não. Geralmente, entrevistadores não pagam cachê a seus entrevistados. A motivação para falar o que falo e, de certa forma, me expor como eu faço é uma só: promover avanços no pensamento dos que forem alcançados por aqueles conteúdos, especialmente no que diz respeito à diversidade sexual e procurar construir um sociedade mais inclusiva, porque plural ela já é, só que ainda está longe de ser igualitária. Já foi pior, mas ainda falta muito, especialmente no que diz respeito às pessoas transexuais.

Fim das perguntas por hoje, mas quem quiser pode enviar perguntas para futuras postagens por inbox. É possível que numa outra postagem eu traga outras.

Desejo um ótimo final de domingo para todos e todas!


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O tempo e o senso comum
28/02/2016 


Por Sergio Viula


Depois de trocar umas ideias com um amigo a respeito do tempo e sua suposta ação sobre sobre nós, achei interessante escrever a coluna de hoje com essa temática. Não pretendo dizer o que é o tempo. Filósofos e cientistas já tentaram fazê-lo e não foram bem-sucedidos. O que pretendo fazer é abordar alguns pensamentos do senso comum a respeito do tempo e ‘seu poder’.

O amor vem com o tempo


Quando o amor acontece, ele não pergunta que dia é hoje e nem que horas são. Ele simplesmente acontece e não oferece a menor explicação para isso. A ideia de que a intimidade que alimenta o amor precisa de um período relativamente definido para ser considerada suficiente não corresponde ao que testemunhamos nessa rede de relações a que chamamos de realidade. Pessoas juntas há anos podem ser duas ilustres desconhecidas em muitos sentidos, enquanto outras se deleitam em desfiar seus mais profundos sentimentos e pensamentos, suas mais preciosas memórias, ou seus mais queridos planos para o futuro em tempo recorde.

Não é improvável que você possa trocar mais intimidade com seu amado (ou sua amada) em poucos dias do que outras pessoas em meses e até anos. Talvez, você já tenha vivido em relacionamentos que também não desfrutaram da intimidade e confiança que você desfruta atualmente. Não é o tempo que determinará se haverá intimidade ou não. São as pessoas envolvidas que decidem se constroem simulacros de si mesmos para tentar agradar ao outro com uma realidade artificial ou se mostram suas verdadeiras cores (lembra da música True Colors?).

O que quero dizer é que se duas pessoas forem honestas entre si, elas provavelmente construirão um relacionamento satisfatório, independentemente do tempo que já conviveram. Diversas variáveis podem influenciar ou determinar o curso dessa relação, mas o tempo provavelmente não é uma delas.

É claro que através da convivência, o amor poderá se fortalecer e aprofundar, mas isso não depende de calendários – essa tentativa nossa de fragmentar e controlar uma abstração. O que favorecerá o aumento ou a redução da intimidade é a relação. É o modo como interagem quando estão próximos ou distantes. O tempo não é pai nem mãe de coisa alguma, muito menos do amor. Não é o tempo em si – se é que existe um ‘em si’ para o tempo – que determinará o sucesso ou o fracasso do que quer que seja.

O tempo corrói tudo

O poder de corrosão, desgaste, erosão, envelhecimento não é uma propriedade ou ação do tempo. Isso é outra ilusão do senso comum. São os corpos que agem uns sobre os outros, combinando-se ou não, que se fortalecem ou enfraquecem, modificando ou reforçando suas características a partir dessas relações.Em outras palavras, o tempo não tem o poder de corroer coisa alguma se as relações entre os corpos não desencadearem corrosão. E o contrário também pode ser dito: o tempo não pode impedir que a corrosão resultante dessas relações ocorra.

Por exemplo, o desgaste da montanha não é provocado pela “ação” do tempo. O tempo não age. Quem age é a chuva e o vento no sentido de interagir com a matéria da montanha e produzir o que chamamos de erosão. Contudo, a montanha também ‘obriga’ o vento a reduzir sua velocidade ou a mudar de curso pelo atrito que ele sofre ao passar por ela. Portanto, os dois se alteram de alguma forma. Não fossem essas e outras relações extrínsecas e intrínsecas às montanhas, elas estariam ali eternamente sem sofrerem mudanças a despeito de quanto tempo tivesse ‘passado’. Interessante o que acabo de dizer, não? Dizemos que o tempo passa, como se ele fosse um rio que arrastasse tudo, mas o que parece ser a passagem do tempo é apenas nossa percepção das alterações que ocorrem em todos os elementos do cenário que nos cerca e em nós mesmos – alterações essas causadas pelas relações que se estabelecem continuamente em todos os níveis da existência e funcionamento dos corpos, sejam eles vivos ou não-vivos. Uma rede capilar de relações de poder entre os mais diversos elementos e fatores da natureza.

O tempo nos envelhece

Não mesmo. O envelhecimento é resultado das modificações que se dão a partir das interações entre os diversos elementos que compõem o nosso corpo, seja em nível micro ou macro, bem como as relações que ele mantém com outros elementos: luz, calor, frio, alimento, sono, micro-organismos, outros seres humanos, sedentarismo, tipo de trabalho realizado ao longo da vida, etc. É interessante notar que o envelhecimento não se dá igualmente para todos. Há pessoas mais velhas (que viveram mais tempo) que parecem mais novas do que pessoas bem mais jovens (que viveram menos tempo). O tempo não está no comando de nada aqui. Essas diferenças dizem respeito a cada corpo em sua constituição e funcionamento, bem como às relações que ele estabeleceu com outros corpos ao longo da vida.

O tempo cura tudo

O tempo não cura nada. Em se tratando de patologias, o que nos cura são os remédios, que ao entrarem em contato com o nosso organismo, comportam-se de maneira a restabelecer sua ordem anterior. Às vezes, o próprio corpo restabelece o equilíbrio por mecanismos próprios.

E quando a dor é emocional, como uma decepção, por exemplo, superamos o sofrimento quando chegamos à conclusão de que não vale mais a pena gastar energia psíquica com uma ofensa que nem deveria ser mais atualizada. O ressentimento atualiza a ofensa e sua dor, mas ele é obra de nosso próprio cérebro. Não podemos decidir como os outros nos tratarão, mas podemos decidir o que faremos daquilo que eles fazem ou fizeram conosco. E, de novo, não é o tempo que está agindo, mas nossa consciência, essa projeção do cérebro, que, por sua vez, adora trabalhar no “modo economia”, eliminando o desconforto e o desperdício de energia para poder se dedicar ao que realmente interessa: à manutenção e fortalecimento do corpo.

Mas a física não lida com noções de tempo?

Sim, mas isso pode ser considerado uma abstração. E o mais interessante é que foi um dos maiores físicos de todos os tempos que pensou a Teoria da Relatividade. Ela basicamente afirma que tempo é relativo, ou seja, não há universalismos que deem conta do tempo.

O tempo não é o mesmo em todos os lugares desse vasto universo. Se pudéssemos viajar por milhares de anos-luz, experimentaríamos o que chamamos de tempo de modos muito inusitados. Quando voltássemos, descobriríamos que o tempo da Terra não “passou” na mesma velocidade que o tempo dos planetas onde estivemos ao longo da jornada. E isso nos leva a outra questão: O tempo não é uma linha reta, sequenciada, como gostamos de pensar.A linearidade do tempo é mais uma ilusão dos sentidos.

Então, o tempo não tem a menor importância?

Apesar de ser relativo, não podemos dizer que o tempo não tenha importância. Vale considerar o pensamento de Kant sobre o tempo, que o via como uma intuição que, juntamente com a noção de espaço, viabilizaria a percepção e o processamento dos dados que nos chegam pelos cinco sentidos: visão, audição, tato, paladar e olfato.

Conclusão

O tempo não é um elemento mágico e nem exerce qualquer poder sobre os corpos. Não é um ente entre outros. Na verdade, são os corpos, vivos ou não, que interagem, ganhando ou perdendo força, podendo, inclusive, sofrer e provocar modificações, até mesmo ao ponto de não serem mais reconhecidos em sua constituição inicial. E sendo mortais como somos, não me parece uma boa ideia desperdiçarmos oportunidades de encontros que possam aumentar nossa potência. Em outras palavras, quero estar em contato com aquilo e aqueles com quem possamos estabelecer relações que me fortaleçam e expandam minha potência (alguns chamam de poder) em todos os sentidos, numa perspectiva ética da felicidade. O contrário disso pode ser danoso e até fatal.



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Quando é que você vai ser feliz?

06/03/2016 


Por Sergio Viula



Muita gente vive o tempo todo no mundo das hipóteses. São pessoas que dizem: “Se eu tivesse dinheiro, seria feliz”; “se eu tivesse um grande amor, seria feliz”; “se eu morasse em outro país, seria feliz”; “se eu tivesse saúde, seria feliz”; “se meus pais não fossem assim ou assado, eu seria feliz”; e por aí vai.

Porém, todas essas coisas não passam de desculpas que as pessoas dão a si mesmas e aos outros para tentarem justificar suas frustrações e a falta de vontade de transformá-las em força para realizarem as mudanças que poderiam viabilizar sua felicidade, tornando tudo mais leve e mais gostoso.

Em momentos como o que vivemos atualmente no Brasil, os sentimentos de frustração aumentam, seja por uma razão ou por outra. Uns ficam frustrados em terem governos que não desejam. Outros, em pensar que esses governos poderão ter fim antes do que esperavam. Essas frustrações vampirizam parte da energia que poderia ser investida na construção das condições necessárias à auto-realização. Como dizia Espinosa, as paixões tristes nos enfraquecem.

Considerem cuidadosamente o que digo, meus amigos e minhas amigas: há 500 anos, essa quimera chamada Brasil faz parte do mapa do mundo. Já foi colônia, vice-reino, império, república (desde 1889 até hoje), mas nunca foi o que a maioria esmagadora dos brasileiros esperava de um país que tem a ousadia de dizer-se “mãe gentil, pátria amada, Brasil”.

Como república, já vivemos em ditadura, abertura e democracia, tanto com voto indireto como com voto direto. Em 1988, nossa assembleia constituinte produziu umas Constituições mais avançadas do mundo. E ainda assim, o Brasil continua tratando os filhos desse solo de modo nada gentil. A podridão está em todas as esferas de poder, passando por todos os partidos (ou, para ser cauteloso nas generalizações: quase todos) e não há muito o que possamos fazer.

Dizem que não sabemos votar. Mas como votar bem quando as chapas são decididas pelos partidos? Os candidatos, dentre os quais somos obrigados a escolher um governante ou legislador, são praticamente da mesma fabricação. Seria mais fácil escolher um anjo do bem entre os seguintes candidatos: o Demônio, o Diabo, Satanás, o Capiroto, o Sete Pernas, o Unha Fendida, o Tinhoso. Alguém poderia dizer: “Mas todos esses nomes não se referem ao mesmo indivíduo?” Eu responderia: Sim, mas imaginemos que sejam candidatos diferentes com a mesma essência. Essa é uma metáfora do que somos obrigados a encarar no processo eleitoral brasileiro, na maioria dos casos. Então, como dizer que o povo não sabe votar? Talvez não saiba, mas nunca teremos certeza enquanto o quadro eleitoral for esse.

Na verdade, os palácios de onde se exerce o poder executivo, seja em nível federal, estadual ou municipal, tornaram-se escritórios para despachar de acordo com os interesses de seus verdadeiros patrões: as grandes empresas, entre elas as igrejas, é claro, mas não exclusivamente e nem principalmente. Empresas no campo do petróleo, da engenharia, do câmbio, da farmácia, dos transportes, entre outras. Estas são as mãos que controlam as marionetes – os políticos. E isso pode ir do presidente aos vereadores, que comportam-se como vaquinhas de presépio diante dos interesses dessas empresas, ganhando muito dinheiro para isso, e como testas-de-ferro quando a casa cai. Isso tem sido historicamente assim.

A diferença é que agora, vemos os ratos comendo-se uns aos outros, encurralados pela justiça. Delatam-se uns aos outros na esperança de escaparem mais cedo da cadeia ou não serem lançados nela. Mas aqui também existem muitos riscos, pois a delação sem prova material pode ser mera calúnia, e esta não deveria ser admitida no processo jurídico, uma vez que ela mesma também é crime.

Ao cultivarem esse clima de desalento geral, setores interessados em sabotar o projeto democrático, o sonho republicano, bem como qualquer possibilidade de se promover igualdade e bem-estar social, a partir do crescimento econômico e do fortalecimento das instituições republicanas e democráticas, podem acabar tirando vantagem desse quadro, facilitando o acesso de fascistas ao poder estatal. Isso seria uma catástrofe ainda maior, pois aí teriam eles poder para executarem suas agendas sanguinárias.

O ponto central é: precisamos tomar cuidado com essas manobras sem deixarmos de investigar aquelas outras coisas, sejam quem forem os possíveis envolvidos: Dilma, Lula, Aécio, Cunha, Calheiros, etc.

Enquanto vemos o circo – em seu pior sentido – desfilando verdadeiros shows de horror na mídia, governadores como Alckmin ainda não explicaram a máfia das merendas. Pezão ainda não pagou os atrasados do funcionalismo. Pior ainda, esse senhor que (des)governa o Rio de Janeiro está endividando o estado através de empréstimos milionários. Há que se ver que comissões podem estar sendo repassadas para cada empréstimo realizado. Lembram-se que foram fechados os buracos por onde os ratos eram alimentados com financiamento de campanhas por empresas privadas? As ratazanas cavarão outros. Então, duvido muito que esse “endividamento” seja algo fortuito.

Por essas e outras, o tema dessa coluna é: Quando você vai ser feliz? Porque se você está pensando em ser feliz só no dia em que o Brasil se livrar dos roedores que devoram suas riquezas, você provavelmente vai morrer sem saber o que é felicidade. É preciso que junto com a luta por justiça e igualdade, aprendamos a construir nossa própria felicidade sem dependermos diretamente de quem ou do que quer que seja. Não importa se é uma condição específica, ou uma pessoa da família a quem você se submete (refletida ou irrefletidamente), ou mesmo um governante que você considera um crápula, mas que terá que suportar até o final de seu mandato – você nunca será plenamente feliz se condicionar sua realização pessoal e suas alegrias mais profundas a essas pessoas ou circunstâncias. É preciso cultivar uma autonomia que não despreza o outro, mas que também não o supervaloriza, seja para o bem ou para o mal.

O Brasil tem mais de 500 anos. Você provavelmente não viver nem 100. Alguns não chegarão sequer aos 30 ou 40. Como é que você pode adiar sua felicidade? Mortais não têm tempo a perder. Quanto ainda você vai esperar para ir atrás do que deseja? Mas lembre-se: dificilmente, a felicidade pode ser construída por meios injustos. Não se engane.Ressalto mais uma vez: não adianta dizer que os outros impedem sua felicidade. Se isso acontece, é porque você permite que eles o façam. Então, no final das contas, é você mesmo que se sabota. Livre-se desse padrão de pensamento-comportamento e construa sua própria felicidade. Cabe a você descobrir como realizar a sua. Não existem cartilhas. E por que não começar agora mesmo? Tudo o que temos é esse átimo. Aproveite-o ao máximo.


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Ateus cada vez mais resolvidos
13/03/2016 


Por Sergio Viula



É muito bom ver que os ateus estão cada vez mais seguros em falar de suas convicções em público. Essa semana, estava eu dando uma prova oral para um grupo de estudantes da língua inglesa em nível pré-intermediário, quando numa determinada pergunta sobre tratamentos chamados de ‘medicina’ alternativa, ele falou sobre o efeito placebo, explicando por que não acreditava na eficácia daqueles tratamentos. Ao longo da fala, ele disse categórica e simpaticamente “sou ateu”. Quase tive um cabrito!!! hehehehe Sorri e disse: Que interessante, fulano. E quase completei: bem-vindo ao clube. Mas não podia criar distrações durante a prova, que é feita em dupla. Futuramente, falarei com ele sobre isso. Talvez, ele até já saiba. Muitos alunos meus me conhecem primeiro pelo Google… hehehehe Quem manda ser abusado e ficar dando a cara a tapa? Não tem jeito, sou dessas. ^^

Mas, não é a primeira vez que isso me acontece. Tempos atrás, dei aula para um grupo de jovens iniciantes, e um dos mais brilhantes alunos disse que era ateu. A turma entrou em erupção. Deixei que ele mesmo se defendesse. E só fechei a conversa com a ressalva de que devemos respeitar a diversidade humana e o direito à crença ou não crença. Esse aluno acabou se tornando um bom amigo e já trocamos muitas ideias.

Ser ateu, porém, não torna ninguém imediatamente justo e coerente. Existem ateus bastante idiotas por aí. Mas, dá prazer ver gente com alto nível de conhecimento, equilíbrio, abertura para o outro, mesmo quando este lhe parece diferente, dizendo “sou ateu” ou “sou ateia”, não gratuitamente, mas em momentos nos quais isso possa ser realmente relevante.

Fico bastante feliz também quando vejo pessoas que, conquanto tenham alguma crença no sobrenatural, não se deixam levar por fanatismo e manipulação. São defensoras de valores importantíssimos como liberdade, igualdade e fraternidade. Elas dizem um NÃO retumbante à qualquer tipo de discriminação e juntam suas vozes às dos que lutam por inclusão e dignidade na diversidade, inclusive sexual e de gênero. Tenho o privilégio de conhecer algumas assim. Tenho orgulho de tê-las como amigas.

Mas, sem dúvida, uma das boas coisas do magistério é poder estar em contato com gente que te inspira e acrescenta coisas boas à tua bagagem existencial. Eles dizem que também crescem nessa interação e isso me deixa super feliz.

Essa semana, tive um caso desses numa aula de conversação. A turma sugeriu temas a serem discutidos naquela aula. Num dado momento, surgiu o papo sobre HIV, AIDS e doenças sexualmente transmissíveis. A discussão foi super produtiva, mas na hora que eu fui alinhavar a atividade antes de passar para outro assunto, dei o costumeiro feedback sobre o desempenho deles, mas decidi acrescentar uma fala minha também. Comentei sobre como eu lidava com esses temas na educação dos meus filhos. Eles ficaram surpresos, primeiro por ouvirem que eu tinha filhos (e eu me divirto muito com isso). Depois, pela abertura com que os eduquei nesse sentido.

Uma aluna minha que estuda medicina ficou super feliz com o que eu acabara de falar, e não poupou elogios às minhas posturas – o que só reforçou para a turma toda a importância do diálogo franco, da prevenção por meio da camisinha, da testagem regular e – em caso de soropositividade – o acompanhamento médico. Também incluí a gravidez não planejada, especialmente na adolescência, por falta de prevenção, que, por sua vez, pode ser falta de informação, de diálogo de garantias de que não se vai ser expulso de casa por simplesmente carregar um punhado de camisinhas na mochila. Sem dúvida, foi uma aula produtiva, na qual a confiança de que se pode falar de tudo – desde que as posturas sejam sempre as mais respeitosas – só cresceu.

Viver de bem com o próprio corpo é fundamental. Não temer o corpo alheio, idem. Cuidar-se para seu próprio bem e para o bem de quem a gente ama ou com quem a gente se diverte – tanto faz – dispensa qualquer justificativa. É simplesmente a coisa a se fazer, e ponto. Faça o mesmo sem medo de ser feliz!

E não deixem de aproveitar todos os dias dessa semana
 para crescer mais um pouco em conhecimento. Que esses caras te inspirem. 




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Um dos muitos mitos de origem


A prisão de Cristo (1598), Caravaggio


Por Sergio Viula


De onde vem essa história de que a carne é fraca?


Diversos fatores passíveis de exame crítico/histórico podem servir de plataforma para explicar como a morte de um homem que nasceu num dos lugares mais distantes do centro de poder da época (Roma), viveu numa região das mais pobres (Nazaré), e veio a se tornar um ícone tão poderoso e mobilizador de tanta energia mental em tantas partes do mundo ao mesmo tempo, acabou se tornando esse messias que tanta gente adora.

Basta que chegue uma data como a semana santa ou o natal para que vejamos a força que essa tradição exerce até sobre aqueles que vivem o ano inteiro como se ela fosse tão importante quanto qualquer outra crença. De seres fantásticos integrados e dependentes da floresta até um deus acima de tudo e todos, que não depende de nada para ser, a religião passou por uma tremenda evolução - ou involução, dependendo do ponto de vista.

É interessante ver como tanta gente que se deleita com um bom churrasco, seja de carne de frango, de gado bovino ou suíno, ou alguma de origem mais exótica, é capaz de deixar tudo isso de lado para comer peixe e frutos do mar, sem sequer estabelecer qualquer conexão necessária entre isso e a morte de Jesus.

Dizer que isso é feito em respeito ao corpo torturado de Cristo não parece ser uma boa razão, visto que nas próprias escrituras cristãs não há qualquer passagem que sugira tal coisa.

Bem, para mim isso não é problema, porque há três anos parei de comer carne, exceto pelo peixe. Então, comer peixe hoje ou no carnaval não é nada que fuja da minha rotina.
Mas, não é dessa carne que eu quero falar. O que quero pensar aqui é de onde as pessoas tiraram essa contraposição entre a ” carne” e o “espírito”.

Quando algum cristão (ou seu mímico, sem qualquer vínculo com a fé no nazareno) pensa que a “carne é fraca”, ele geralmente tem em mente o corpo decaído. Decaído, porque em Adão todos caíram, conforme apregoa a maioria das teologias cristãs. Assim, o corpo já nasce contaminado pelo pecado e com uma tendência intrínseca para pecar sempre, devendo, portanto, ser meticulosamente cerceado. Daí, as dietas religiosas, as indumentárias da santidade, o controle do sexo, entre outras técnicas de repressão e condicionamento.

Como supostamente disseram Paulo e Tiago, respectivamente, nas passagens abaixo, o corpo deve ser subjugado:

Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado. 1 Coríntios 9:27

Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça em palavra, o tal é perfeito, e poderoso para também refrear todo o corpo. Tiago 3:2

Não é de admirar que os castigos corporais e restrições aos prazeres mais banais façam parte do imaginário e da prática da cristandade. As orações prolongadas em jejum, as vigílias, as penitências, a autoflagelação e outras formas mais agressivas de subjugação (só que não subjugam coisa alguma) são também algumas dessas “técnicas”.

Contudo, o convento, o mosteiro, as sacristias, os gabinetes pastorais, e outros ambientes onde o controle do corpo é uma neurose constante, negam a eficácia dessas “técnicas” repressivas. Há coisas que acontecem ali que fariam as/os profissionais do sexo duvidarem de seus próprios olhos se pudessem vê-las.

Na verdade, não haveria razão para reprovar a maioria desses “atos pecaminosos”, caso fossem experiências vivenciadas por outros que não os mesmos que condenam tais coisas na vida alheia. De fato, não fosse a pedofilia, tão comum nesses ambientes, as outras relações seriam absolutamente inofensivas em quaisquer outros contextos, fosse o relacionamento entre homens e mulheres, o relacionamento entre homens e homens, ou o relacionamento entre mulheres em mulheres. Só que essas experiências corporais ganham contornos bem diferentes quando desfrutadas por padres, freiras, pastores e pastoras. E por que isso? Justamente porque esses clérigos e essas “noivas de Cristo”, que é como as freiras geralmente se denominam, são a representação de toda essa repressão supostamente justificada por uma busca de santidade, mas que é – ela sim – absolutamente contra a natureza. O antagonismo se revela em pares: céu x terra, corpo x alma, santidade x prazer, e por aí vai.

Mas o pior é sempre a repetição irrefletida, desprovida de crítica, e de averiguação. Um dos chavões mais repetidos entre os cristãos e – de novo – seus mímicos é: “a carne é fraca”. Trata-se de um recurso para quem se defende ou para quem tenta justificar o “erro” de alguém que lhe interessa de modo mais especial do que o restante da humanidade.

Entretanto, essa frase atribuída a Jesus nunca foi usada nesse sentido, nem no contexto de pecado, nem com ideia de que o “corpo do pecado” é mais forte do que alma. A contraposição que Jesus faz é bem outra. Veja a passagem (grifos meus):

36  Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar.

37 E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito.

38 Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até a morte; ficai aqui, e velai comigo.

39 E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.

40 E, voltando para os seus discípulos, achou-os adormecidos; e disse a Pedro: Então nem uma hora pudeste velar comigo?

41 Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.

42 E, indo segunda vez, orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade.

43 E, voltando, achou-os outra vez adormecidos; porque os seus olhos estavam pesados.

44 E, deixando-os de novo, foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras.

45 Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai; eis que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores.

(Mateus 26:36-45)

Qual foi a intenção de Jesus com essa fala, então? Foi simplesmente a de reconhecer que os três discípulos que ele havia levado para um ponto mais retirado do Getsêmani, a fim de que vigiassem e orassem, enquanto ele se afastava para orar sozinho, estavam dispostos (o espírito está pronto), mas não conseguiam se manter acordados (a carne é fraca), devido ao cansaço resultante das jornadas dos dias anteriores e das emoções que precederam sua prisão ali mesmo naquele horto. Ele chegou a reprovar Pedro por não ter conseguido ficar uma hora sequer velando com ele – o mesmo Pedro que teria dito ser capaz de morrer por ele, mas nunca nega-lo.

O significado dessa fala, se parafraseada, seria o seguinte:

Eu sei que vocês estão dispostos, não é por mal que vocês pegaram no sono, mas porque o corpo não aguenta mais ficar em pé. Então, durmam, porque não fará diferença. Serei entregue de qualquer modo nas mãos dos que me odeiam.”

Isso nada tem a ver com pênis, vagina, boca, ânus, seios, peitos, pelos, pele, orgasmo, ejaculação, ereção, contrações vaginais ou anais, e por aí vai. A ideia de associar a fala de que “a carne é fraca” às relações sexuais e ao erotismo do corpo humano, do qual a mente também é produto, vem de outro momento: vem dos apóstolos metidos a tradutores do pensamento de Jesus, os quais disseram, em suas cartas, coisas que ele nunca disse em seus sermões e conversas íntimas com os discípulos, conforme registrado.

Posteriormente, Santo Agostinho, querendo aproximar a teologia católica da filosofia grega, criando um híbrido perigoso, falou de sua própria juventude como um tempo de satisfação da “carne”, reforçando a ideia de que o corpo é desprezível e que tudo o que vem dele condenável. Ele reduz o homem a uma entidade espiritual, condenada a um invólucro que o arrasta para baixo (mais baixo do que o animal), mas tudo isso não passa de uma manobra realizada por uma consciência adoecida por culpas que ela mesma inventou para si. Agostinho, bem como alguns de seus antecessores e muitos de seus contemporâneos, padeciam dessa neurose que faz desprezar o corpo e incensar a alma.

Que coisa me deleitava senão amar e ser amado? Mas, nas relações de alma para alma, não me continha a moderação, conforme o limite luminoso da amizade, visto que, da lodosa concupiscência da minha carne e do borbulhar da juventude, escalavam se vapores que me enevoaram e ofuscaram o coração, a ponto de não se distinguir o amor sereno do prazer tenebroso. (SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. [Coleção Os Pensadores]. 2000, p. 63-64)

E não apenas na juventude, mas ele lamentava que suas concupiscências continuavam e continuariam atormentando sua “alma”, enquanto ele não morresse. A linguagem é rebuscada, mas é exatamente isso que ele diz:

[…] concluiremos, assim, as tentações da concupiscência da carne, que ainda me perseguem, fazendo-me gemer e desejar ser revestido pelo nosso tabernáculo que é o céu. Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e amenidade das cores. Oxalá que tais atrativos não me acorrentassem a alma! (SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. [Coleção Os Pensadores]. 2000, p. 294)
Essa ideia de que a alma é superior ao corpo é uma reedição adaptada do platonismo. Para Platão, o mundo sensível era inferior ao mundo ideal (o mundo das ideias). Agostinho vai buscar essa premissa platônica para construir sua “antropologia teológica”. O céu é superior a terra, a alma é superior ao corpo, e Deus é o supremo bem – coisa que Platão nunca sonhou em dizer. Até porque os gregos nunca deixaram de usufruir dos prazeres que o corpo podia proporcionar: a degustação de bom vinho, boa comida, a camaradagem entre homens (o que incluía o relacionamento sexual), o conhecimento do mundo e de seu funcionamento como uma atividade emancipadora, e por aí vai. Agostinho e Tomás de Aquino conseguiram perverter isso. O primeiro o fez com o platonismo, e o segundo, com o aristotelismo.

Não admira que ainda haja tanta gente coxeando entre o pensamento de ser feliz e o pensamento de ser obediente. Mas obediente a quem? Obediente a neuróticos que ganharam renome com o tempo? Obediente a escrituras absolutamente questionáveis sob diversos aspectos? Obediente a homens e mulheres borrados de óleo e que portam chapéus engraçados ou vestimentas espalhafatosas? Obediente a ideias de “santidade” que nada mais são do que a negação de tudo o que é natural, prazeroso, tudo o que fomenta nossa criatividade, alegria e potencial para ser e para fazer feliz?

Não é exatamente essa obediência que se constitui a plataforma de todo o tipo de fundamentalismo? Não é dessa repressão que se faz toda sublimação que põe tanta gente a trabalhar incansavelmente por recompensas pós-mundanas? E quem ganha com isso? Os administradores dos dividendos da fé, é claro. Toda a riqueza das religiões que trabalham com essa “lógica” é incomensurável – da Basílica de São Pedro (no Vaticano) até a mais simples capelinha da mais nova igreja fundada por aquele pastor ex-traficante, que mal sabe escrever, ali na esquina.

Qual é a moral dessa história, então?

É preciso libertar-se dos fantasmas que têm assombrado o mundo, graças a um considerável número de homens e mulheres, mas principalmente homens, sexualmente mal resolvidos e dominados por ressentimentos contra a humanidade, contra o mundo, e contra tudo o que diga respeito às incríveis possibilidades, bem como as inegáveis limitações, de nossa existência.

Abandonemos ideias como recompensas ou castigos pós-mundanos ou intra-mundanos promovidos por uma divindade, ou lei estabelecida por uma força ou entidade superior aos seres humanos.

Desprezemos completamente o discurso dos desprezadores do corpo.

Como dizia Nietzsche no preâmbulo de seu Assim falou Zaratustra:

“Exorto-vos, irmãos meu, a permanecerdes fiéis à terra e a não acreditardes naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. São menosprezadores da vida, moribundos que estão, por sua vez, envenenados, seres de quem a terra encontra-se fatigada; vão-se de uma vez.”

O mais irônico é que os desprezadores do corpo não compreendem que a mente doentia, que nega sua própria corporalidade, continua sendo projeção desse mesmo corpo. Por mais que acreditem que possam se emancipar do corpo, nunca deixarão de ser corpo e de viver de acordo com aquilo que ele mesmo projeta, mesmo quando o negam. O corpo é a origem de tudo o que somos, pensamos e sentimos, inclusive aquilo a que chamamos de “mente” e aquilo a que chamamos de “ego”. Tudo isso é produzido pelo corpo, é projeção dele - de intrínsecas e incríveis combinações bioquímicas dentro de nós.

Os desprezadores viverão reprovando o corpo e negando seu potencial erótico/criativo, mas não sobreviverão à própria morte para descobrir que perderam tempo precioso e irrecuperável. Isso é lamentável, obviamente, mas uma coisa é fantástica: podemos viver nossa corporalidade, ou seja, não precisamos seguir o rebanho de corte, pastoreado por aqueles que vivem de suas mortes, podemos viver intensa e plenamente a despeito deles. Vivamos, então, sem qualquer restrição que não apenas a de vivenciar nossos prazeres com aqueles que espontânea e consensualmente desejam a mesma coisa. Nada mais é necessário.

Originalmente publicado em 19 de fevereiro de 2017. Atualizado em 18/08/17.

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