Povos originários da Austrália: ancestralidade, diversidade de gênero e a retomada da visibilidade

Por Sergio Viula
Os povos originários da Austrália — as diversas nações aborígenes e os povos das ilhas do Estreito de Torres — vivem nesses territórios há pelo menos 65 mil anos. Ao longo desses milênios, muitas sociedades indígenas reconheceram e integraram formas variadas de gênero e afetividade que não se enquadram nas categorias binárias ocidentais. Esta postagem explica como essas identidades aparecem nas tradições, como foram silenciadas pela colonização e como hoje as comunidades e organizações indígenas LGBT+ recuperam sua visibilidade e cuidado comunitário.
1. Identidade primeiro pela nação, língua ou clã
Entre os povos indígenas australianos, a identidade pessoal aparece quase sempre ligada à nação, à língua e ao clã — não primeiro a um rótulo ocidental (por exemplo, “gay” ou “trans”). Grupos como Yolngu (nordeste de Arnhem Land), Pitjantjatjara (deserto central), Noongar (sudoeste) e Wiradjuri e Arrernte (entre muitos outros) possuem histórias, cosmologias e normas sociais próprias que moldam como gênero e relações são vivenciados. Sempre que tratamos dessas questões, é importante respeitar os termos e enquadramentos locais, e não universalizar uma leitura externa.
2. Práticas ancestrais: lugar para diversidade de gênero e afetividade
Fontes etnográficas, relatos orais e pesquisas acadêmicas indicam que muitas sociedades indígenas aceitavam:
- relações entre pessoas do mesmo sexo como parte das formas sociais e rituais;
- papéis de gênero não binários e identidades que hoje podemos entender como trans ou de gênero diverso;
- seres espirituais ou figuras míticas que atravessavam categorias sexuais e de gênero, incorporadas em histórias, cerimônias e arte.
Esses elementos fazem parte de cosmologias que integram espiritualidade, clanagem e regras sociais — portanto, a expressão de gênero e afetividade operava num contexto cultural mais amplo, não como algo meramente individual.
3. Termos contemporâneos: sistergirls e brotherboys

Em muitas comunidades australianas contemporâneas surgiram termos próprios que traduzem realidades locais:
- Sistergirls — termo usado para mulheres trans indígenas ou travestidas em contextos aborígenes;
- Brotherboys — termo usado para homens trans indígenas.
Esses termos não são simples traduções de categorias médicas ou ocidentais: eles carregam significados culturais, relações familiares e espirituais específicos. Hoje, já são reconhecidos em serviços de saúde e políticas públicas como expressões legítimas de identidade.
4. Colonização: criminalização, silêncio e apagamento espiritual
A colonização britânica trouxe a aplicação de leis criminais contra a “homossexualidade”, a imposição do cristianismo e a destruição ou desvalorização de saberes locais. Isso afetou profundamente a transmissão intergeracional de conhecimentos sobre gênero e sexualidade, forçando muitas pessoas a se esconderem e interrompendo práticas comunitárias que antes integravam a diversidade. O efeito foi duplo: perda cultural e violência jurídica/social sobre identidades diversas.
5. Dupla discriminação e impactos em saúde mental
Pessoas LGBT+ indígenas sofrem interseccionalmente por serem ao mesmo tempo First Nations e por sua orientação/identidade de gênero. Isso significa maiores riscos de exclusão social, problemas de saúde mental e taxas mais elevadas de suicídio quando comparados tanto a populações indígenas não-LGBT+ quanto a populações LGBT+ não indígenas. Programas específicos de prevenção e apoio culturalmente seguros são fundamentais para reduzir essas desigualdades.
6. Organizações e iniciativas atuais

Nos últimos anos, cresceram iniciativas lideradas por povos originários que atuam em saúde mental, prevenção ao suicídio, visibilidade e fortalecimento comunitário. Organizações indígenas LGBTQ+ têm construído respostas próprias, que combinam saberes tradicionais, apoio clínico e ações coletivas. Essas iniciativas reforçam que intervenções eficazes precisam ser culturalmente enraizadas, respeitando cada comunidade.
A luta pelos direitos LGBTIQ+ é fortalecida por uma rede ampla e diversa de organizações que atuam em frentes políticas, legais, sociais e culturais. Entre as de alcance nacional, destacam-se a Equality Australia, que lidera campanhas por igualdade legal e contra a discriminação, e o Human Rights Law Centre, que oferece apoio jurídico em casos de violações de direitos humanos. A Pride Foundation Australia financia projetos que impactam positivamente comunidades LGBTQIA+, enquanto grupos especializados, como a Transgender Victoria, se dedicam a promover direitos e bem-estar de pessoas trans e de gênero diverso. Também se somam a essa rede a Kaleidoscope Human Rights Foundation, com foco no Pacífico Asiático, e a Victorian Pride Lobby, que tem longa trajetória em conquistas legislativas e sociais.
No campo da saúde e apoio direto à comunidade, a ACON é referência nacional em prevenção do HIV e promoção de bem-estar, e a QLife oferece suporte emocional gratuito e anônimo por telefone e online. Há ainda iniciativas voltadas para grupos específicos, como o GRAI, que trabalha pela inclusão e dignidade de pessoas idosas LGBTI. Apesar dos avanços legais conquistados nos últimos anos, os desafios permanecem: a discriminação cotidiana, as barreiras no acesso a cuidados de saúde para pessoas trans e intersexo e a necessidade de proteger espaços seguros diante de pressões conservadoras. Essas organizações desempenham, portanto, um papel vital na resistência, visibilidade e afirmação da comunidade LGBTIQ+ australiana.
7. Arte, performance e a retomada da história queer indígena
A arte e a performance são campos vitais de recuperação e afirmação. Drag, música, literatura, cinema e eventos como a participação de sistergirls e brotherboys em paradas e festivais ajudam a recontar histórias e reconectar gerações. Personalidades e coletivos First Nations têm usado essas plataformas para lembrar que identidades diversas sempre fizeram parte da história indígena — e que a reivindicação é, ao mesmo tempo, pessoal e coletiva.
8. Exemplo: Tyra Bankstown — drag, representatividade e ancestralidade
Tyra Bankstown, drag queen Mangarayi, é um exemplo contemporâneo de artista indígena que usa a performance para celebrar identidade, resistência e pertencimento. Em festivais como o Miss First Nations, Tyra mostra como a arte drag pode ser espaço de orgulho, visibilidade e conexão ancestral para pessoas queer indígenas.
A recuperação da memória indígena sobre sexualidade e gênero é parte essencial da reparação cultural e política que ainda precisa acontecer. Apoiar essa luta significa ampliar a voz de artistas, ativistas e organizações indígenas LGBT+, exigir políticas públicas culturalmente seguras e, acima de tudo, reconhecer que a pluralidade de gênero e afetividade nas sociedades indígenas australianas é parte de tradições próprias — e não uma importação externa.
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