O cãozinho na mochila e uma nova volta ao redor do sol

Por Sergio Viula
22 anos depois de sair do armário, um sonho no meu aniversário me disse mais do que palavras acordadas jamais diriam.
Na noite de 7 para 8 de maio, sonhei. E o sonho me trouxe uma imagem tão estranha quanto poderosa. De repente, me vi tirando um filhote de cachorro bem pequeno de dentro de uma mochila que eu carregava e que, finalmente, havia tirado das costas. Fiquei admirado que o cãozinho estivesse vivo e não tivesse sujado a mochila toda. Tirei o bichinho da mochila e o coloquei no chão para que se esticasse. Ele não latiu ou ganiu, mas apenas urinou — direto sobre uma peça íntima feminina que estava embaixo da cama que a dona da casa me apresentava. Ela parecia estar me recebendo como hóspede. O gesto involuntário do filhote — instinto puro — mexeu comigo.
É importante ressaltar que Portugal é a terra do meu pai e dos meus quatro avós, e agora o lar da minha filha, que é casada com um homem português. Os dois me deram uma neta portuguesa. Portanto, Portugal representa território ancestral e futuro ao mesmo tempo.
Por que esse sonho parece psiquicamente relevante?
Porque hoje completo 56 anos de vida, estando há 22 anos fora do armário. E esse sonho, vindo justo na noite do meu aniversário, pareceu um recado direto do inconsciente.
Veja o que entendi a partir dessas imagens:
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O filhote guardado na mochila por muito tempo pode representar minha própria subjetividade ou identidade, que ficou reprimida por muito tempo. Na verdade, desde cedo na infância. Naquela época, eu me sentia completamente sem espaço para me manifestar livremente do ponto de vista afetivo e sexual.
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A mochila, sendo algo que carregamos nas costas, parece remeter a essa bagagem de memórias e experiências que misturavam alegria e tristeza, prazer e medo — tudo ao mesmo tempo. Experiências e sentimentos que precisavam ficar ocultos aos olhos alheios.
há partes de nós que, mesmo depois da saída, ainda ficam escondidas. Há instintos guardados. Emoções engavetadas. Pequenos seres vivos esperando o momento certo para emergir.
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O filhote que urina ao sair provavelmente remete à liberação de algo que esteve retido — pode ser interpretado como uma catarse emocional ou descarga de tensão. Isso, de fato, foi o que me aconteceu quando eu saí do armário há 22 anos. Era como se uma bigorna com toneladas tivesse saído das minhas costas. O fato de ele urinar sobre uma peça íntima de mulher sugere a quebra de um tabu, o desafio às convenções sociais ou familiares, especialmente ligadas a gênero, sexualidade ou papéis tradicionais. Vale lembrar também que a peça estava embaixo da cama. Trata-se de uma expressão inconsciente de liberdade, desobediência ou irreverência.
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A mulher, a casa e Portugal trazem diversas representações simbólicas. Primeiro, porque, como eu disse anteriormente, Portugal é a terra da minha mãe e de todos os que vieram antes dela, e do meu pai, que nasceu no Brasil porque os pais dele emigraram. Portanto, evoca raízes, ancestralidade, pertencimento — e agora, também futuro, já que é o lar da minha filha e o "berço da minha meta".
Estar na casa de outra pessoa sugere que eu vivi em território emocional alheio, ou seja, por mais que eu estivesse entre pessoas que demonstravam amor de muitas maneiras, eu estava sempre tendo que "negociar" minha identidade. Minha presença não era plena porque não podia se manifestar autenticamente. Eu me sentia compelido a me enquadrar em tradições e modos de ver a vida que não correspondiam à minha subjetividade como a criança, o adolescente, o jovem e o adulto gay que eu sempre fui, mas que só conquistou seu espaço como tal a partir dos 34 anos.
Um pouco de poesia não faz mal a ninguém
Em algumas linhas poéticas tudo seria descrito assim:
O Cão que Dormia na Mochila
Na noite em que o tempo virou
e o mundo sussurrou “feliz novo ciclo”,
eu sonhei com um filhote escondido —
um pequeno cão que dormia há muito
no fundo da minha mochila.
Guardado, esquecido, protegido,
carregado por estradas longas
que cruzaram oceanos e origens,
Portugal — terra dos meus mortos
e agora terra dos que plantei vivos.
Quando o tirei, ele não latiu.
Não pediu desculpas nem licença.
Simplesmente existiu.
E em primeira ação no mundo,
urinou sobre a peça íntima
de uma mulher desconhecida
numa casa estranhamente familiar.
Nada mais simbólico:
instinto marcando território
no altar do costume.
Natureza sobre pudor.
Verdade sobre protocolo.
Era o cão que fui,
o que escondi,
o que eu cheguei a esquecer que fosse,
o que não podia existir nos salões antigos.
Agora ele corre.
Marca território.
Vive como deseja.
22 anos fora da mochila
22 anos fora do armário
22 anos de orgulho
A mensagem do sonho é clara:
Não basta ter saído.
É preciso não mais caber
em nenhuma mochila.
É preciso não reter mais a própria urina.
Talvez esse filhote seja um novo eu — mais livre, mais intuitivo, mais próximo da minha verdade atual. Seja como for, esse homem que entra hoje na segunda metade da sua quinta década de vida não cabe mais em mochila alguma.
E você? O que ainda guarda na mochila?
Gente,
ResponderExcluirLer as coisas do "Fora do Armário" é terapêutico. São reflexões preciosíssimas que nos fazem (re)pensar a nossa existência enquanto LGBTs. É sempre bom falar do "Em busca de mim mesmo", livro mais que necessário do nosso querido Sergio Viula, que já ajudou muita gente e continua atualíssimo. LEIAM!!!
Quero aproveitar para PARABENIZÁ-LO, pro mais esta dádiva. Que venham muitos e muitos anos com muita Saúde, Paz, Alegria e INSPIRAÇÃO para continuar nessa nobre missão de ajudar a transformar vidas, sendo luz e bússola para os 'perdidos'. Felicidades!!!🥂🍾🎂🎉🥳🫂
Obrigado, querido Mikael.
ExcluirVocê é uma pessoa extraordinária! Você talvez não faça ideia do impacto positivo que sua mensagem exerce sobre mim.
Um forte abraço, querido, e obrigado por tudo.
Sergio Viula