
Quando um ator gay não pode interpretar um hétero (e o absurdo dessa ideia)
Por Sergio Viula
Em pleno século XXI, ainda tem gente achando que orientação sexual determina talento. Parece piada, mas aconteceu: a respeitada (ou nem tanto, depois dessa) revista Newsweek publicou um artigo afirmando que atores gays não são convincentes ao interpretar personagens heterossexuais. Isso mesmo que você leu.
O texto, assinado por Ramin Setoodeh, mirava especificamente na atuação de Sean Hayes, o eterno Jack da série Will & Grace, agora vivendo um protagonista hétero na Broadway. Segundo Setoodeh, Hayes parecia “plástico e artificial, como se estivesse tentando esconder algo que de fato ele é”. Em outras palavras: porque é gay, não convence como homem que ama mulheres. E assim, com um só parágrafo, ele reduziu um artista à sua sexualidade — desconsiderando completamente sua capacidade profissional.
A reação foi imediata e à altura do absurdo. Ryan Murphy, criador de Glee (série que, ironicamente, sempre celebrou a diversidade), lançou um boicote à revista até que ela se desculpasse com seus leitores LGBTQIA+. Em suas palavras, o artigo foi “prejudicial, desnecessariamente cruel e perturbadoramente obtuso”. Concordo com cada sílaba.
A GLAAD (Aliança Gay e Lésbica Contra a Difamação) também não deixou barato. Seu presidente à época, Jarrett Barrios, deu a resposta certeira: “A vida pessoal de um ator não deveria ser um fator para sua credibilidade num papel. Seria o mesmo que dizer que o público não vai acreditar que Ashton Kutcher e Katherine Heigl se amam em ‘Killers’ só porque são casados com outras pessoas na vida real.” Pois é. Ninguém questiona a capacidade de atores héteros interpretarem personagens gays (e serem premiados por isso), mas basta inverter a equação e o preconceito aparece.
A discussão não é nova, mas continua necessária: até quando vamos aceitar que profissionais LGBTQIA+ sejam definidos por sua orientação? Se o ator é gay, ele só pode fazer papel de gay? Se é trans, só pode interpretar pessoas trans? Onde fica a tal da atuação, que é justamente o ato de viver alguém diferente de si?
Essa lógica não resiste a cinco minutos de pensamento crítico. Sir Ian McKellen, um dos maiores atores vivos, é gay e convenceu milhões como Gandalf e Magneto — dois personagens héteros. E ninguém questiona seu talento por isso. Da mesma forma, Neil Patrick Harris fez sucesso interpretando um pegador compulsivo em How I Met Your Mother. Quer mais? A lista é longa.
O que está em jogo aqui não é só um artigo infeliz. É o eco de uma mentalidade que ainda vê a homossexualidade como algo que “contamina” papéis, histórias e até a empatia do público. Um tipo de censura velada, disfarçada de crítica artística.
É por isso que posicionamentos como o de Ryan Murphy são tão importantes. Porque se ninguém reage, esse tipo de discurso se normaliza. E quando nos calamos, acabamos reforçando a ideia de que ser gay, lésbica, bi ou trans é um obstáculo — quando, na verdade, é só uma das muitas características que formam quem somos.
Não queremos privilégios. Queremos igualdade de oportunidades. Queremos poder sonhar com qualquer papel, com qualquer história, e sermos julgados pelo talento, não pela vida pessoal.
Se ser ator é viver o outro, que nos deixem viver todos — sem exceção.
Se um gay não pode fazer um papel de hetero, o hetero não pode fazer o de um gay. Ator não tem sexo, gnt?!
ResponderExcluirConcordo plenamente!!! :)
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