Setembro de 2025: 10 anos da realização do I Seminário Queer - Cultura e Subversões da Identidade no SESC Vila Mariana, com Judith Butler.

Judith Butler faz sua palestra magna no SESC Vila Mariana
(09 de setembro de 2015)



CELEBRANDO DEZ ANOS DESDE A REALIZAÇÃO
DO I SEMINÁRIO QUEER - CULTURA E SUBVERSÕES DA IDENTIDADE, QUE TAMBÉM FOI A PRIMEIRA VISITA DE JUDITH BUTLER AO BRASIL




O I Seminário Queer – Cultura e Subversões da Identidade ocorreu nos dias 9 e 10 de setembro de 2015 no Sesc Vila Mariana, em São Paulo. Organizado pelo Sesc em parceria com a Revista Cult, o evento reuniu pesquisadores brasileiros e internacionais para discutir temáticas desenvolvidas pelos estudos queer desde a década de 1980. ​

A programação do seminário foi estruturada em quatro eixos principais:​

Cultura e Política: Debate sobre como os estudos queer modificaram a compreensão da política sexual e suas formas de expressão, além de propor uma perspectiva crítica à normalização corporal e subjetiva promovida por instituições e práticas culturais.​

Gênero e Sexualidade: Análise dos dispositivos de gênero e sexualidade como vetores centrais de normalização social, explorando como reproduzem formas convencionais de vida e mantêm desigualdades relacionadas à orientação sexual e "normalidade" corporal.​

Educação e Saúde: Aprendizados: Foco nas tecnologias sociais presentes na esfera da educação, saúde e outras formas de pedagogia que contribuem para a generificação e sexualização dos sujeitos.​

Contra-Hegemonias – Os Estudos Queer entre os Saberes Insurgentes: Discussão sobre a posição dos estudos queer entre vertentes críticas de pensamento que se insurgiram contra a hegemonia disciplinar, como diferentes feminismos e os estudos pós-coloniais e decoloniais, visando compreender o pensamento queer como um saber insurgente e contra-hegemônico. ​

Entre os palestrantes, destacaram-se:​

Judith Butler: Filósofa norte-americana e uma das principais referências mundiais nos estudos queer, proferiu a conferência magna intitulada "Rethinking Vulnerability and Resistance".​

Richard Miskolci: Sociólogo e curador do seminário, apresentou a palestra "O que é o Queer?", contextualizando historicamente o movimento e suas implicações.​

Carla Rodrigues, Karla Bessa e Leandro Colling: Participaram do painel "Cultura e Política", discutindo as transformações na compreensão da política sexual a partir dos estudos queer.​

Berenice Bento, Marie-Hélène Bourcier e Marcia Tiburi: Integraram o painel "Gênero e Sexualidade", explorando os dispositivos de normalização social relacionados ao gênero e à sexualidade.​

Guacira Lopes Louro, Jorge Leite Júnior e Pedro Paulo Gomes Pereira: Debateram "Educação e Saúde: Aprendizados", enfocando as tecnologias sociais que influenciam a formação dos sujeitos.​

Larissa Pelúcio e Richard Miskolci: Encerraram o seminário com o painel "Contra-Hegemonias – Os Estudos Queer entre os Saberes Insurgentes", situando os estudos queer no contexto de saberes críticos e transformadores. ​

O seminário também foi marcado por manifestações externas de grupos conservadores que protestavam contra as discussões sobre gênero e sexualidade promovidas no evento. Apesar disso, o encontro consolidou-se como um marco importante para o debate acadêmico e político sobre diversidade, identidade de gênero e sexualidade no Brasil.

Traduzido aqui por Sergio Viula



PRIMEIRO SEMINÁRIO QUEER: CULTURA E A SUBVERSÃO DAS IDENTIDADES


Estamos de volta para a conferência final de hoje no Seminário Queer. Gostaria de chamar ao palco como moderador Vladimir Safatle e Judith Butler.

PALESTRA PRINCIPAL DE JUDITH BUTLER

Em primeiro lugar, quero agradecer a todos vocês por estarem aqui hoje e agradecer aos organizadores por todo o trabalho que eles realizaram para que este seminário pudesse acontecer. Acho que não faz muito sentido para mim introduzir Judith Butler, pois todos vocês a conhecem muito bem. Só quero lembrar que ela não é apenas uma importante teórica queer, mas também uma das filósofas anglo-saxãs mais importantes da atualidade, com obras que vão desde estética e filosofia política até questões israelenses-palestinas; e, claro, todas as discussões sobre questões de gênero, bem como os debates sobre feminismo e pós-feminismo. Então, vou passar a palavra imediatamente para Judith Butler, que apresentará uma comunicação intitulada “Repensando a Vulnerabilidade e a Resistência”. E depois disso, abriremos para perguntas. Muito obrigado.

Obrigado, Vladimir. Eu estou, claro, muito honrada em estar aqui hoje e quero agradecer a todas as pessoas que tornaram possível este evento e minha visita ao Brasil. Sei que alguns de vocês trabalharam por um ano inteiro para cuidar de todos os detalhes e estou honrada e emocionada por estar aqui pela primeira vez. Claro, pode-se perguntar por que é esta a primeira vez? O Brasil está no mapa da teoria queer e da política sexual radical. E podemos argumentar que o Brasil tem feito e refeitos esse mapa por um longo tempo. Bem, lamento por ter chegado tão tarde. Mas estou aqui e extremamente feliz por isso.

Como vocês sabem, meu trabalho inicial sobre gênero focou na teoria da performatividade. E agora estou trabalhando mais de perto na condição de precariedade e nas formas de mobilização contra a precariedade que estão acontecendo em todo o mundo, à medida que a economia global continua a produzir desigualdades aceleradas e à medida que vemos cada vez mais populações efetivamente designadas como descartáveis e impensáveis. No Brasil, a resistência coletiva a essa condição tem sido enorme. E essas resistências precedem e prefiguram as grandes manifestações na Europa. Para mim, é importante estar aqui não apenas teoricamente, enquanto tento entender as formas plurais que a performatividade pode assumir nos movimentos de resistência, mas também à medida que a compreensão global das vidas e políticas queer continua sendo remapeada para superar as dinâmicas coloniais de poder, para que as extraordinárias mobilizações no Brasil possam iluminar as relações entre a destituição econômica, o racismo, a sexualidade, o gênero e os prazeres e poderes da resistência.

Na minha visão, a palavra “queer” adquire importância por várias razões. Reconheço que ela pode não traduzir, que outras palavras podem se mostrar mais comoventes e mobilizadoras. Mas se “queer” continuar a ter um significado contemporâneo para nós, deve manter pelo menos dois sentidos. Um sentido, o de desvio, de afastamento da norma, de abertura ao inesperado. Outro sentido, o de uma aliança e não uma identidade entre grupos de pessoas que, de outra forma, não têm muito em comum e entre os quais há, por vezes, até mesmo desconfiança e antagonismo. Esse sentido de “queer” marca um campo de conexão erótica e política, além da afirmação da diferença que não pode ser facilmente superada por uma identidade unificada.

Às vezes, estamos aliados àqueles que amamos, mas isso não significa que todas as alianças sejam de amor, ou pelo menos não na minha visão. Às vezes, nos aliamos para estabelecer o direito de amar e viver livres de danos, para defender e preservar espaços de desejo tanto na vida pública quanto privada. Mas tudo isso acontece com o compromisso de viver juntos apesar das diferenças, às vezes em modos de proximidade não escolhida, especialmente quando viver juntos, por mais difícil que seja, continua sendo um imperativo ético e político, e não uma experiência totalmente feliz. Então, embora possamos nos mobilizar pelos direitos do desejo e do amor, pela liberdade incorporada e contra a violência, isso não significa que estamos desejando e amando todos ao nosso redor. Alianças são difíceis. Elas tendem a se fragmentar em conflito e fratura. Agir juntos não pressupõe nem produz uma identidade coletiva, mas sim um conjunto de relações dinâmicas e capacitadoras que incluem apoio, disputa, ruptura e solidariedade.

Certamente sabemos que aqueles que se reúnem na rua ou em domínios públicos onde a polícia está presente estão sempre em risco de detenção e prisão, mas também de serem tratados com violência ou até morte. É certamente importante para nós, que vivemos nos Estados Unidos, entender que mesmo enquanto nos opomos aos assassinatos policiais de pessoas negras nas ruas e nos organizamos sob a rubrica de "Black Lives Matter", no Brasil vocês convivem com o fato de que mil ou mais pessoas a cada ano são mortas pela polícia, e menos de um por cento dessas mortes são processadas. A polícia não processa, não importa o crime cometido por ela. E as mortes realizadas todos os anos pelos cartéis de drogas, quantas delas são processadas?

Isso nos leva a perguntar não apenas em interesse de quem a lei existe, mas se as leis perderam seu poder vinculante. Ou talvez a questão seja diferente. Quais ações são vistas como crimes perante a lei, e quais ações são consideradas como coação legalmente justificada ou atos de violência que a lei, incluindo seu poder policial, escolhe não ver? Acho que esse regime de violência policial e cumplicidade é algo que precisa ser entendido fora do Brasil, e isso nos dá uma maneira não apenas de formar redes globais de solidariedade para protestar contra tal violência, mas também de ver como o racismo funciona ao permitir que certas populações sejam livremente assassinadas, enquanto outras são ferozmente protegidas.

Claro, sabemos que isso acontece repetidamente nas “favelas”, mas talvez também precisemos ver como esse regime particular de violência legal afeta a vida de pessoas trans e queer, mas também mulheres, todas as quais são desproporcionalmente vulneráveis à morte violenta. O Instituto Avante Brasil relatou que 40.000 mulheres foram assassinadas neste país de 200 milhões de pessoas entre 2001 e 2010, e que em 2010 um feminicídio ocorreu a cada duas horas. Sei que importantes mudanças legais ocorreram recentemente, incluindo a nova lei que aumenta as punições para quem comete feminicídio ou “feminicídio”, se seguirmos Berenice Bento.

Entendo também, pelo importante trabalho de Berenice Bento, que o Brasil lidera o mundo em número de assassinatos de pessoas trans: 486 registrados entre 2008 e 2013, e 121 registrados apenas em 2013. Podemos produzir mais números. Devemos produzir mais números. Eles são importantes. Mas lembremos que os números são sempre enquadrados e apresentados, podem ser descartados ou desconsiderados, e não podem, por si só, produzir uma análise. As tipologias que usamos importam na forma como contamos, como enfatizado pelo importante trabalho de Rita Laura Segato.

Parece que a análise queer da violência, vulnerabilidade e resistência tem uma importância global no Brasil que não deve ser subestimada. Pois, em jogo aqui, não está apenas uma forma de teorização sexual e de gênero que tem a violência e a cumplicidade da polícia em seu centro, mas também uma longa história de racismo, as reverberações contínuas da escravidão na vida cotidiana e a designação de certas populações como descartáveis e impensáveis, disponíveis para serem assassinadas com impunidade.

Por mais que essa vitimização precise ser documentada, conhecida e oposta, levada aos tribunais de direitos humanos e à Comissão Interamericana de Direitos Humanos, há também, claro, uma história extraordinária de resistência, de redes de mulheres, de organizações contra a violência policial. Muito frequentemente, redes organizadas fora do campo da lei, que se opõem à crescente desigualdade econômica e ao racismo institucional prevalente.

A situação levanta questões sobre a relação entre vulnerabilidade, por um lado, e resistência, por outro. E talvez isso introduza um paradoxo político também. A necessidade de descartar aqueles argumentos que sugerem que as mulheres trazem seus assassinatos sobre si mesmas. Vi alguns editoriais de jornais no México, “As mulheres trazem seus assassinatos sobre si mesmas”. Ou “Pessoas trans merecem o que recebem.” Devemos, contra tais movimentos ideológicos, insistir na vitimização.

E, no entanto, se a vitimização se tornar o único paradigma que temos para entender a situação política, corremos o risco de eliminar ou apagar as práticas concretas de resistência que são realizadas por tantos grupos, pessoas negras, queer, trans, trabalhadores do sexo e mulheres. E por mais que desejemos afirmar a importância de novas leis, leis mais fortes, como aquelas aprovadas em março deste ano no Brasil, e apoiadas pela presidente Rousseff, também devemos entender se o recurso legal é o único ou último objetivo político. Não quero subestimar a importância das novas leis, mas se novas leis são instituídas dentro de um regime legal que exerce sua própria forma de violência, que implicações isso tem para o relato, para a aplicação e, finalmente, para a mudança da estrutura social?

E, em última instância, mudar as estruturas sociais do racismo, misoginia, homofobia e transfobia que levam à produção e reprodução de vidas não pranteáveis.

Parece-me que criar uma nova lei ou fortalecer um conjunto existente de leis é um passo claro para frente. Mas isso nunca pode ser o mesmo que um desafio à violência legal.

Quando a lei é invocada para uma elite racial e não para uma minoria racial, ou para um grupo de mulheres que exclui mulheres trans, vemos que outro sistema de poder atravessa a lei. Nossos posicionamentos políticos precisam reconhecer e combater regimes de poder que perpassam e excedem a lei.

O poder, portanto, não pode ser reduzido à lei, o que significa que uma política precisa ser maior do que um mero projeto de reforma legal. A lei pode estar no centro de tal política, mas não porque ela, sozinha, nos dá esperança de um futuro não violento e igualitário.

Pelo contrário, precisamos desenvolver e sustentar formas de criticar os poderes violentos da lei, não apenas a violência policial e os assassinatos cometidos por policiais que permanecem impunes, mas também a cumplicidade legal com esses crimes. Essa cumplicidade fica evidente na recusa de prender e processar criminosos, estabelecendo a lei como um refúgio seguro para aqueles que matam.

Pode-se ter uma lei contra o feminicídio, mas será que essa lei protegerá pessoas trans que sofrem violência? E será aplicada de maneira igualitária, sem privilégios raciais?

É sempre possível que uma lei exista, esteja nos livros, seja anunciada pela mídia, mas que, ainda assim, não seja aplicada. Se a polícia se recusa a agir e se as testemunhas são desacreditadas, qual é o verdadeiro status dessa lei?

Walter Benjamin argumentou, em sua obra Crítica da Violência, que a polícia não apenas aplica a lei, mas também a cria. No momento em que a polícia decide invocar a lei, ela a revitaliza. Quando vê uma situação e decide não classificá-la como crime, essa situação, mesmo quando claramente um assassinato, não é tratada como crime, e a lei deixa de ser aplicada, desaparecendo.

Assim, a distinção entre a violência justificada e a injustificada é determinada repetidamente pela polícia, que decide se algo é um crime ou não. Além disso, suas próprias ações são automaticamente consideradas legais. “Como poderiam cometer um crime? Eles são a polícia.”

Embora a polícia pareça agir como representante delegado de um poder soberano, ela também exerce esse poder no momento da ação. São soberanos por procuração. A aplicação da lei em um momento e lugar específicos, ou de maneira reiterada, é tanto uma forma de fazer a lei quanto de desfazê-la. Aplicar a lei é trazê-la à existência novamente, e conforme ela passa a valer para novas circunstâncias, acaba sendo elaborada e renovada.

Toda vez que uma prisão é feita, uma multidão é dispersa, um grupo de pessoas é contido ou detido, a polícia efetivamente declara: “Isto é poder soberano legítimo.” E, ao fazer esse ato discursivo, vincula o sujeito à força da lei.

No entanto, Benjamin não considera o que acontece quando a polícia se recusa a aplicar a lei. Isso gera uma contradição entre o ideal da lei e sua prática, revelando que os legisladores podem tentar transformar a sociedade de uma maneira, mas a polícia pode e frequentemente decide impedir essa transformação.

Onde, então, reside o poder? Existe um único soberano? Ou estamos agora em um campo de forças concorrentes, onde diferentes poderes exercem efeitos soberanos transitórios e disputam a hegemonia?

Outro ponto que extraio da Crítica da Violência de Benjamin é que a definição de "violência" depende do enquadramento jurídico. O próprio regime legal, que busca monopolizar a violência, precisa classificar qualquer ameaça a esse monopólio como um ato violento.

Assim, o regime pode renomear sua própria violência como força necessária ou coercitiva justificável. E, por operar dentro da legalidade, essa violência se torna legal e, portanto, justificada. Esse enquadramento, que Benjamin chama de “destino”, faz com que a lei seja justificada simplesmente por ser a lei, estabelecendo e diferenciando entre o que é justificado e o que não é.

Dessa forma, não se pode questionar a legitimidade do próprio regime legal de dentro dele. Esse regime cria o esquema de justificação que defende e sanitiza sua própria violência legal, ao mesmo tempo que rotula como "violência" tudo o que ameaça sua estrutura.

Assim, um grande movimento de resistência dentro das favelas pode ser enquadrado pelo Estado como violência descontrolada e ilegítima, como um "motim". Já a repressão policial a essas manifestações pode ser considerada um uso legítimo da força, invocado por razões de segurança ou para proteger a ordem pública.

No entanto, sob um enquadramento oposto, é a polícia quem pratica a violência, enquanto os protestos massivos ocorrem em resposta a essa violência policial, à exclusão social, à pobreza, às desigualdades crescentes e à precariedade dos serviços públicos, como saúde e educação.

E quando um grande número de pessoas se levanta contra a corrupção e o lucro indevido no governo, será que estão sendo “violentos” por protestar, ou será que estão exercendo liberdades democráticas fundamentais?

Eu não digo que não há violência dentro de tais manifestações, mas isso não deve ser motivo para identificar as manifestações com atos violentos. Não é apenas a perda do monopólio da violência que o regime legal enfrenta de forma tão contundente quando a polícia é solta contra uma população em protesto e com a acusação de violência, mas a questão de saber se o estado e seu aparato legal são ou continuam sendo legítimos. Quando essa questão de legitimidade é levantada, é muito frequentemente nomeada pelo estado como um ato de violência, porque o estado busca proteger a si mesmo contra qualquer desafio.

Como podemos ver, devemos rastrear essas estruturas que nomeiam e desnomeiam a violência, mas também aquelas em que há uma recusa em nomear a violência, o que se torna uma forma própria de cumplicidade com a violência. Pois, se não vemos crime, não pode haver aplicação da lei. Portanto, nossa relação política com a lei deve engajar o campo perceptivo, imerso em poder, que sustenta e reproduz regimes de violência legal. Claro, não quero abrir mão da lei, mas quero muito pensar sobre formas extralegais de resistência que exigem um vocabulário político que não seja redutível ao legal.

E assim, desejo direcionar minha atenção para a relação entre violência, vulnerabilidade e resistência, a fim de sugerir que a vulnerabilidade não deve ser imediatamente identificada com vitimização. Se fosse esse o caso, todos estaríamos constantemente buscando superar a vulnerabilidade, e talvez abandonaríamos os poderes particulares de resistência que surgem da vulnerabilidade. Isso é uma questão queer, no sentido de que o movimento queer sempre mobilizou e arriscou a vulnerabilidade. Pelo menos uma grande parte do movimento tem valorizado aparecer publicamente, não apenas para se reunir e demonstrar, mas às vezes simplesmente para andar na rua como o gênero que se é, para conduzir a vida abertamente com a suposição de que todos devem ter tais direitos de aparecer, tais direitos de mobilidade.

Não se provoca o ataque ao andar na rua, mas chama-se atenção para o fato de que andar na rua não pode ser dado como garantido como um exercício seguro e protegido da liberdade para muitas pessoas que são alvo com base em seu gênero ou sexualidade, ou na percepção de seu gênero e sexualidade, ou sua raça, ou a percepção de sua raça. Se dizemos que alguém é agredido "com base em sua raça", e em inglês isso é uma frase muito ambígua, deixamos em aberto a questão de saber se a raça é a razão para o ataque ou se a percepção da raça é a razão para o ataque.

Afinal, a raça é uma atribuição. Mesmo que seja uma atribuição institucionalizada, ela tem uma história, uma que pode ser chamada de "racialização". Ela é negociada de maneira diferente dependendo do tempo e do lugar. Portanto, é importante que tentemos evitar formulações que sugiram que a raça de alguém, entendida como um marcador estático, é a causa da violência feita contra essa pessoa. É o racismo que atribui raça e depois inflige essa violência.

Claro, há muitos motivos para ser cético quanto à vulnerabilidade. Ninguém quer se identificar como vulnerável o tempo todo. Eu não estou liderando um movimento do tipo: "Ah, sou vulnerável! Todos somos vulneráveis! A vulnerabilidade é o futuro!" Não estou fazendo isso, ok? Alguns temem que até falar sobre vulnerabilidade leve a um abraço da vitimização, o que por sua vez leva a uma demanda por proteção paternalista. Quero sugerir, como muitos outros já fizeram antes de mim, que a vulnerabilidade pode estar mais importantemente ligada a práticas de resistência do que a apelos por proteção paternalista.

Isso se torna importante de se considerar precisamente porque a proteção legal que buscamos de um regime de violência legal pode muito bem aumentar esse regime, suas contradições e sua própria cumplicidade, pelos motivos que acabei de sugerir. Você recorre à lei para se proteger, mas se recorrer à lei, você fortalece a lei, você fortalece o poder da lei, e se essa lei fizer parte de um regime legal de violência, você também pode estar fortalecendo sua própria capacidade de violência. É uma situação muito paradoxal.

O Brasil tem tantos exemplos de movimentos de resistência que podem ser chamados de extrajurídicos, incluindo os movimentos rebeldes negros, os "quilombolas", que duraram pelo menos quatro séculos, se opondo à escravidão. Mas mesmo agora, as redes feministas que se opõem à agressão e ao feminicídio, os grupos de solidariedade trans, os movimentos indígenas, os movimentos ecológicos para salvar a floresta tropical, os impressionantes movimentos estudantis que chamaram a atenção mundial em 2013.

Você dificilmente precisa da palestra de alguém vindo do Norte Global para pensar sobre a relação entre vulnerabilidade e resistência aqui. Mas talvez você concorde que a vulnerabilidade não emerge primeiro, após alguém ter resistido a um poder contrário. Alguns diriam que primeiro você resiste, depois se depara com sua vulnerabilidade, seja em relação ao poder policial ou àqueles que se opõem às suas posições políticas.

Certamente, a vulnerabilidade emerge antes, antes de qualquer reunião ou movimento, e ela condiciona e instiga a mobilização. Um programa intensificado de austeridade, paradoxalmente abraçado por alguns partidos nominalmente socialistas e de trabalhadores, leva a uma condição generalizada de precariedade. Essa condição de precariedade indexa uma vulnerabilidade que precede aquela com a qual as pessoas se deparam de forma bastante gráfica nas ruas e em relação à polícia ou aos oponentes políticos.

Se também dissermos que a vulnerabilidade à privação, à pobreza, à insegurança e ao dano que constitui uma posição precária no mundo leva à resistência, então parece que invertemos a sequência. Primeiro somos vulneráveis e depois superamos essa vulnerabilidade, pelo menos provisoriamente, por meio de atos de resistência. Acho que precisamos repensar ambas as sequências. Será importante estabelecer uma relação mais precisa entre vulnerabilidade e precariedade. Elas não são exatamente a mesma coisa.

Mas consideremos, como exemplo claro, os modos de resistência que surgem em oposição à falência da infraestrutura. A dependência da infraestrutura para uma vida viável parece clara. Mas quando a infraestrutura falha, e falha consistentemente, como entendemos essa condição de vida? Descobrimos que aquilo de que dependemos, na verdade, não está lá para nós, o que significa que ficamos sem apoio.

Sem abrigo, somos vulneráveis ao clima, ao frio, ao calor, à doença, talvez também ao assalto, à fome e à violência. Não é como se fôssemos, enquanto seres, não vulneráveis antes, quando a infraestrutura estava mais ou menos funcionando; e então, quando a infraestrutura falha, de repente nos tornamos vulneráveis. Quando os movimentos contra a falta de moradia surgem, o caráter inaceitável dessa vulnerabilidade, no sentido de exposição ao dano, fica claro.

Mas ainda resta uma questão: a vulnerabilidade continua sendo uma parte importante desse modo de resistência? A resistência exige superar a vulnerabilidade? Ou, quando resistimos, mobilizamos nossa vulnerabilidade? Considere que um movimento pode ser galvanizado precisamente para estabelecer uma infraestrutura adequada, ou para evitar que a infraestrutura adequada seja destruída.

Podemos pensar em mobilizações nas favelas ou nos bairros periféricos da África do Sul, Quênia, Paquistão, nos abrigos temporários construídos ao longo das fronteiras da Europa, mas também nos "bairros" da Venezuela, nas "favelas" do Brasil, ou nas "barracas" de Portugal. Esses espaços são habitados por grupos de pessoas, incluindo imigrantes, sem-teto e/ou ciganos, que estão lutando precisamente por água corrente e potável, banheiros funcionais, às vezes até uma porta fechada nos banheiros públicos, ruas pavimentadas, trabalho remunerado e provisões necessárias.

A rua não é apenas a base ou uma plataforma para uma demanda política. Não nos reunimos apenas na rua e fazemos nossa demanda. Precisamos da rua, e mobilizamos para ter a rua. A rua é um bem infraestrutural. Então, quando as assembleias se reúnem em espaços públicos, para lutar contra a destruição de bens infraestruturais, para lutar contra as medidas de austeridade ou o neoliberalismo que subverteriam a educação pública, bibliotecas, sistemas de transporte e estradas, descobrimos que a própria plataforma para tal política é um dos itens da agenda política.

Às vezes, uma mobilização acontece precisamente para criar, manter ou abrir a plataforma para a expressão política em si. As condições materiais para a fala e a assembleia são parte do que estamos falando e reunindo. Temos que assumir os bens infraestruturais pelos quais estamos lutando, mas se as condições infraestruturais para a política forem elas mesmas dizimadas, as assembleias que dependem delas também o serão.

Em determinado momento, a condição do político é um dos bens pelos quais a assembleia política ocorre. Isso pode ser o duplo significado do infraestrutural, em condições nas quais os bens públicos estão cada vez mais sendo desmontados pela privatização e pelo neoliberalismo, acelerando formas de desigualdade econômica e táticas antidemocráticas de governo autoritário, a violenta combinação de interesses do governo e dos cartéis, e o racismo institucionalizado e as formas massivas de desigualdade econômica e devastação ambiental que encontramos ao redor do mundo, mas particularmente aqui no Brasil.

Gostaria de ressaltar que, embora a resistência pública leve à vulnerabilidade, estabelecendo-nos como vulneráveis, e a vulnerabilidade, no sentido de exposição implícita pela precariedade, leve à resistência; “Ninguém deveria estar tão exposto”, ou: “Essa exposição deveria ser amenizada”; a vulnerabilidade não é exatamente superada pela resistência, ela se torna uma força mobilizadora potencialmente eficaz.

A demanda por infraestrutura é uma demanda por um certo tipo de terreno habitável, e seu significado e força derivam precisamente quando esse terreno cede. Quais são as implicações dessa noção de ação política apoiada para pensar sobre vulnerabilidade e resistência? Bem, acho que sabemos que a ideia de liberdade, que a liberdade só pode ser exercida se houver suporte suficiente para o exercício da liberdade, é uma condição material que entra no ato, que o torna possível.

De fato, quando pensamos no sujeito corporificado para exercer um discurso ou se mover através do espaço público, através das fronteiras, geralmente se presume que ele já é livre para falar e se mover sem a ameaça de prisão, deportação ou perda da vida. Ou esse sujeito é dotado dessa liberdade como um poder inerente, ou esse sujeito é presumido viver em um espaço público onde o movimento aberto e apoiado é possível.

O próprio termo "mobilização" depende de um sentido operativo de mobilidade, ele mesmo um direito, um direito que muitas pessoas não podem dar como garantido. Para que o corpo se mova, ele geralmente precisa ter uma superfície de algum tipo, e deve ter à sua disposição os suportes técnicos que permitem que o movimento aconteça. Sabemos disso pelos estudos sobre deficiência. Portanto, o pavimento nas ruas deve ser entendido como exigências do corpo, à medida que exerce seus direitos de mobilidade.

Ninguém se move sem um ambiente de apoio e um conjunto de tecnologias. E quando esses ambientes começam a se desintegrar ou são enfaticamente insustentáveis, somos deixados para “cair”, de algumas formas, e nossa própria capacidade de exercer nossos direitos mais básicos está em risco. Certamente, poderíamos fazer uma lista de como essa ideia de um corpo apoiado, mas agindo, apoiado e agindo, está em funcionamento implícita ou explicitamente em vários movimentos políticos.

Lutas por comida e abrigo, proteção contra ferimentos e destruição, direito ao trabalho, saúde acessível, proteção contra violência policial e prisão, contra guerra ou doenças, mobilizações contra austeridade e precariedade, autoritarismo e desigualdade. Assim, em um nível, estamos perguntando sobre a ideia implícita do corpo em ação em certos tipos de demandas e mobilizações políticas.

Em outro nível, estamos tentando descobrir como a mobilização pressupõe um corpo que precisa de apoio. Em muitas das assembleias públicas que atraem pessoas que se consideram em posições precárias, a demanda pelo fim da precariedade é encenada publicamente por aqueles que expõem sua vulnerabilidade às condições infraestruturais falhas. Há uma resistência corporal plural e performativa em ação que mostra como os corpos estão sendo impactados pelas políticas sociais e econômicas que estão dizimando meios de subsistência.

Mas esses corpos, ao mostrar essa precariedade, também estão resistindo a esses mesmos poderes. Eles encenam uma forma de resistência que pressupõe vulnerabilidade de um tipo específico e se opõe à precariedade. Se tratarmos a questão de maneira individual, podemos dizer: “Cada corpo tem um certo direito à comida e abrigo, liberdade para se mover e respirar protegido da violência.” Podemos torná-la uma questão de direitos individuais.

O direito de aparecer em público é um direito que pessoas queer e trans vêm incorporando desde o início de nossa politização. Por outro lado, podemos universalizar nossa afirmação: “Todo mundo tem esse direito.” E então particularizamos: “Todo mundo tem esse direito; nós também deveríamos tê-lo.” Mas me parece que precisamos perguntar: Quais corpos podem aparecer? Quais são os quadros forçados dentro dos quais a aparência é possível? E que aparência é possível?

Podemos, por um lado, ser espetáculos, desfrutar da hipervisibilidade, ao mesmo tempo em que nos falta direitos básicos para sermos protegidos da violência? Essa é uma questão que a comunidade trans claramente levantou. Talvez queiramos aquele conceito de direito que individualiza, que estabelece esse corpo concreto e discreto como um corpo que merece direitos. Mas considere que essa ideia dos direitos subjetivos corporais individuais pode falhar em capturar algo importante sobre esse corpo, seu senso de vulnerabilidade, sua exposição, sua dependência não apenas da infraestrutura, mas também de outros indivíduos. Talvez precisemos continuar a sustentar uma visão alternativa do corpo.

Se aceitarmos que parte do que é um corpo...

E vamos, por um momento, usar um termo ontológico.

...parte do que é um corpo, é sua dependência de outros corpos e redes de apoio; então, estamos sugerindo que não é completamente correto conceber os corpos individuais como totalmente distintos uns dos outros.

Claro, eles não estão misturados em um corpo social amorfo, mas, se não conseguirmos conceituar facilmente o significado político do corpo humano sem entender essas relações, as relações nas quais ele vive e prospera, falharemos em apresentar o melhor caso possível para os vários fins políticos que buscamos alcançar.

O que estou sugerindo é que não é apenas que este ou aquele corpo está envolvido em uma rede de relações, mas que o corpo, apesar de suas fronteiras claras, ou precisamente por causa dessas mesmas fronteiras, é definido por relações que tornam sua própria vida e ação possíveis.

Está envolvido, poderíamos dizer, em uma rede desde o início.

Sabe, eu sinto que essa teoria pode ser desnecessária para uma audiência brasileira. Desde o primeiro momento em que cheguei ao Brasil, todo mundo está sempre no seu corpo e no seu corpo, ao seu lado, abraçando, e... você sabe. Eu mal tive um momento para ter um corpo discreto desde que estou aqui.

Ok. Não, é legal. É um pouco diferente da terra do individualismo de onde eu venho. De qualquer forma, você sabe de tudo isso.

Mas o que quero dizer é que não acho que queremos pensar na vulnerabilidade corporal apenas como esse atributo deste corpo aqui, ou um atributo daquele corpo ali. A vulnerabilidade é, talvez, um ponto nodal que articula a rede relacional na qual todos nós vivemos.

Não podemos entender a vulnerabilidade corporal fora dessa rede de relações sociais e materiais. É precisamente porque somos, nossas vidas dependem dessas relações, que entendemos nossa vulnerabilidade como relacional.

Mas, claro, quero adicionar a isso que também não podemos realmente entender o corpo fora da maneira como ele é produzido performativamente dentro desse conjunto de relações.

Eu ajo, ou você age, para produzir os corpos que somos, mas nenhum de nós pode realizar essa produção sem o outro. Mesmo enquanto agimos dessa forma, sempre agimos dentro de uma situação de ter sido primeiramente agidos, nomeados, situados, trazidos à existência e mobilizados por poderes que são externos a nós mesmos, que são anteriores aos nós mesmos que somos.

Uma dimensão clara de nossa vulnerabilidade tem a ver com nossa exposição a sermos chamados por um nome. Há todas aquelas categorias discursivas esperando por nós na infância e na infância. De fato, elas esperam por nós ao longo de nossas vidas.

Eu não posso brigar com todos que me chamam de senhora no restaurante, certo? Se eu fosse brigar com todos que me chamam de senhora no restaurante, então eu estaria na prisão o tempo todo.

Às vezes, eles não sabem se devem me chamar de senhora. Uma vez, teve um cara, ele não conseguia anotar o meu pedido, porque ele não sabia se deveria me chamar de Senhor ou Senhora. Então, ele disse: “Senhor, Senhora, Senhor, Senhora, Senhor, Senhora...”

E eu sei que foi um pouco cruel, mas eu só esperei. Eu não o ajudei, e ele continuou, “Senhor, Senhora, Senhor, Senhora, Senhor, Senhora, Senhor...” Você sabe, eu pensei, “Quanto tempo isso vai durar?”

E eu finalmente disse: “É necessário determinar meu gênero antes de fazer o meu pedido?”

Ok, mas você sabe, é um mau exemplo, porque há uma diferença de classe aí, certo? Eu estou pedindo, ele está fazendo o meu pedido, então não é tão engraçado quanto deveria ser.

Ok. Tudo bem, aqui vamos nós. Todos nós somos chamados por nomes. E esse tipo de chamar de nomes demonstra uma dimensão importante do ato de fala.

Não agimos apenas por meio do ato de fala, “Eu me chamo por este nome. Por favor, me chame por este nome.” Os atos de fala também agem sobre nós.

Há um efeito performativo distinto de ser nomeado como este gênero ou outro gênero, como parte de uma nacionalidade ou como uma minoria, ou de descobrir que a forma como você é visto em qualquer um desses aspectos é resumida por um nome que você mesmo não sabia e nunca escolheu.

Podemos e fazemos a pergunta que a grande feminista negra do século 19 Sojourner Truth: “Sou eu esse nome?”

Como pensamos sobre a força e o efeito desses nomes que nos chamam antes de qualquer um de nós emergir para a linguagem como seres falantes, antes de sermos capazes de usar a linguagem para expressar nossa própria agência, nossa própria capacidade de agir?

O ato de fala age sobre nós antes de falarmos, e se não agisse sobre nós, se não estivesse ativamente agindo sobre nós, poderíamos falar?

Talvez não seja simplesmente uma questão de uma sequência. O ato de fala continua a agir sobre nós no momento exato em que falamos, de modo que podemos pensar que estamos agindo, mas também estamos sendo agidos ao mesmo tempo?

Eu uso uma palavra, mas essa palavra me é dada. Eu reproduzo uma palavra, eu chamo, eu me chamo, eu chamo você.

Quando Eve Sedgwick escreveu sobre a relação entre performance e performatividade, ela mostrou que os atos de fala se desviam de seus objetivos, muitas vezes produzindo consequências que são completamente não intencionais e, muitas vezes, bastante felizes.

Por exemplo, alguém poderia fazer um voto de casamento, e esse ato poderia então estabelecer um reconhecimento público do casamento, o que então permite ou abre uma zona de sexualidade possível que acontece bem abaixo do radar, aproveitando-se precisamente de sua não reconhecibilidade. O voto de casamento fornece uma cobertura pública para formas de vida sexual que permanecem não reconhecidas, e, felizmente, assim.

Em tais casos, o casamento organiza sexualidades que poderíamos esperar em formas conjugais e monogâmicas, mas também produz outra zona de sexualidade, definida precisamente pela falta de reconhecimento explícito na esfera pública. Sedgwick destacou como um ato de fala poderia desviar-se de seus objetivos aparentes.

Então, você faz o voto de casamento, digamos, em um contexto heterossexual, e isso permite que sua vida queer seja felizmente seguida, sem que ninguém perceba. Esse foi um exemplo de seu trabalho. Sedgwick enfatizou o sentido do desvio; o ato de fala desvia-se de seu objetivo.

Esse foi um sentido importante da palavra "queer", entendida, claro, menos como uma identidade do que um movimento de pensamento e linguagem contrário às formas aceitas de autoridade, sempre desviando e, assim, abrindo espaços para o desejo que nem sempre seria abertamente reconhecido dentro das normas estabelecidas.

Os discursos sobre gênero parecem criar e circular certos ideais de gênero, gerando esses ideais. O que às vezes tomamos como essências naturais ou verdades internas são ideais, fantasmas ou normas que tomaram conta de nós de uma maneira profunda e duradoura.

Assim, os ideais produzidos por um discurso, um conjunto de ideais de gênero, podem ser habitados nos gestos e ações de alguém, até mesmo passar a ser entendidos como essenciais para quem somos. De fato, imagens, normas e ideais como esses não podem ser descartados à vontade sem perdermos um sentido de quem somos.

Esse sentido essencial de quem somos é, até certo ponto, o funcionamento de um conjunto de normas sociais. Ter um sentido de quem somos "essencialmente" não é, por essa razão, um argumento para diferenças inatas. Argumentos sobre inatismo constituem apenas uma forma de essencialismo.

E pode-se ter uma ideia do que é essencial para a própria vida sem exatamente ser um essencialista. Como você pode saber, minha formulação inicial de que o gênero é performativo tornou-se a base para duas interpretações bastante contrárias. A primeira é que escolhemos radicalmente nossos gêneros. A segunda é que somos totalmente determinados pelas normas de gênero.

Essas respostas amplamente divergentes significaram que algo não havia sido articulado e compreendido sobre a dimensão dual de qualquer explicação sobre performatividade. Pois, se a linguagem age sobre nós antes de agirmos e continua agindo sobre nós a cada instante em que agimos, então precisamos pensar na performatividade de gênero primeiro como atribuição de gênero; todas aquelas formas em que somos, por assim dizer, chamados por um nome e gênero, antes de entendermos qualquer coisa sobre como as normas de gênero agem sobre e nos moldam, e antes de nossa capacidade de reproduzir essas normas de maneiras que possamos escolher.

A escolha, de fato, vem tarde no processo da performatividade. Seguindo Sedgwick, precisamos entender como desvios dessas normas podem e de fato acontecem, sugerindo que algo queer está em funcionamento no coração da performatividade de gênero. Uma queerness que não é muito diferente dos desvios tomados pela iterabilidade no relato de Derrida sobre o ato de fala como citacional, mas que assume um significado específico, incorporado e social na visão de Sedgwick.

Então, vamos supor, então, que a performatividade descreve tanto os processos de ser agido quanto as condições e possibilidades para agir, e que não podemos entender seu funcionamento sem essas duas dimensões. Que as normas atuem sobre nós implica que somos suscetíveis à sua ação, vulneráveis a uma certa chamada de nome desde o início. E isso se registra em um nível que é anterior a qualquer possibilidade de vontade.

Uma compreensão da atribuição de gênero tem que abordar esse campo de uma receptividade não desejada, suscetibilidade e vulnerabilidade; uma forma de ser exposto à linguagem antes de qualquer possibilidade de formar e realizar um ato de fala. Normas como essas exigem e instituem certas formas de vulnerabilidade corporal, sem as quais seu funcionamento não seria pensável.

É por isso que podemos e descrevemos a poderosa força citacional das normas de gênero, como são instituídas e aplicadas por instituições médicas, legais e psiquiátricas; e objetamos ao efeito que elas têm na formação e compreensão de gênero em termos patológicos ou criminosos. Claro, eu deveria adicionar algumas instituições religiosas, para que meus amigos de fora se sintam reconhecidos.

E, no entanto, esse próprio domínio de suscetibilidade, essa condição de ser afetado, também é onde algo queer pode acontecer, onde a norma é recusada ou revista, ou onde novas formulações de gênero começam. Embora as normas de gênero nos precedam e atuem sobre nós, esse é um sentido de sua ação; somos obrigados a reproduzi-las, e há um segundo sentido de sua realização, precisamente porque algo inadvertido e inesperado pode acontecer, neste reino de ser afetado, e ao reproduzirmos a norma, podemos encontrar e formar modos de gênero que rompem com padrões mecânicos de repetição, desviando-se, ressignificando e, às vezes, quebrando de forma bastante enfática essas cadeias citacionais da normatividade de gênero, criando novos espaços para a vida de gênero.

A teoria da performatividade de gênero, como eu a entendi, nunca prescreveu quais performances de gênero eram certas ou mais subversivas, e quais eram erradas e reacionárias. O ponto era precisamente relaxar o controle coercitivo das normas sobre a vida de gênero. Isso não é o mesmo que transcender todas as normas. O objetivo de relaxar o controle coercitivo das normas sobre a vida de gênero e de suspender julgamentos sobre as manifestações de gênero era precisamente produzir um modo de vida mais habitável.

Tanto os estudos de performance quanto os estudos sobre deficiência ofereceram a visão crucial de que toda ação exige suporte, e que até mesmo o ato mais pontual e aparentemente espontâneo depende implicitamente de um conjunto de condições que literalmente sustentam o corpo atuante. Essa ideia de suporte é bastante importante, não apenas para a re-teorização do corpo atuante, mas também para a política mais ampla da mobilidade. Quais suportes arquitetônicos devem estar em vigor para que cada um de nós exerça uma certa liberdade de movimento, uma liberdade necessária para exercer o direito à reunião pública.

Da mesma forma que afirmamos que o ato de fala depende de suas condições sociais e convenções, também podemos dizer que a performance de gênero, mais geralmente, depende de suas condições infraestruturais e sociais de apoio. Isso tem implicações para uma explicação geral da ação corporal e social, mas também para entender os riscos corporais que as mulheres correm ao caminhar por certas ruas à noite, se reunindo em praças públicas... O assalto sexual é um exemplo claro. ...e que pessoas trans correm ao caminhar na rua ou se reunir em assembleias públicas.

Sugeri que repensássemos a relação entre o corpo humano e a infraestrutura, para que pudéssemos questionar o corpo como discreto, singular e autossuficiente. E propus também entender a incorporação como algo tanto performativo quanto relacional. A relacionalidade inclui a dependência das condições infraestruturais e dos legados do poder discursivo e institucional que precedem e condicionam nossa existência. Também estou sugerindo que certos ideais de independência são masculinistas, e que uma explicação feminista expõe a dependência não reconhecida no coração da ideia masculinista do corpo.

Isso é diferente de dizer o que os corpos das mulheres são ou o que os corpos dos homens são. Eu não sei. Não estou fazendo essas afirmações. Estou apenas mostrando o que considero uma concepção masculinista da ação corporal que deveria ser ativamente criticada. Minha referência à dependência pode muito bem incluir a dependência da mãe ou do cuidador primário, mas não é essa forma de dependência primária que me interessa aqui. Estou interessado em teorizar o corpo humano como um certo tipo de dependência da infraestrutura, entendida de forma complexa como ambiente, relações sociais e redes de apoio, e sustento pelo qual o humano se prova não ser dividido do animal ou do mundo técnico.

Dessa forma, destacamos as maneiras pelas quais somos vulneráveis às infraestruturas dizimadas ou desaparecendo, aos apoios econômicos e ao trabalho previsível e bem remunerado. Não somos apenas vulneráveis uns aos outros, uma característica invariável das relações sociais e sexuais, mas essa própria vulnerabilidade indica uma condição mais ampla de dependência e interdependência que desafia a compreensão ontológica dominante do sujeito incorporado.

Quase terminei aqui. Talvez eu deva ir em direção ao final. Ok, não vou contar histórias sobre a Califórnia. Não, é só que há abusos políticos do termo “vulnerabilidade”. Então, quando alguns membros da população branca na Califórnia estavam preocupados que as pessoas de cor estavam se tornando a maioria da população, eles foram à imprensa e à Assembleia Estadual, e disseram: “Os brancos estão vulneráveis!” Eu pensei, “Ah...”

Então, vocês podem ver, às vezes, as formas hegemônicas de poder podem afirmar que estão vulneráveis. “Ah, você tem medo de ser desmantelado no serviço da igualdade? Desculpe, não estamos ouvindo você. Não estamos ouvindo você.” Ok. Geralmente, quando nos opomos à vulnerabilidade como um termo político, é porque preferimos nos ver como agentes. Queremos ser atores. Achamos que melhores consequências políticas virão se nos vermos sempre no processo de agir.

Se nos opomos à vulnerabilidade em nome da agência, isso implica que preferimos nos ver como apenas agindo, mas nunca sendo agidos? Como descreveríamos, então, aquelas regiões da estética e ética que presumem que nossa receptividade está vinculada à nossa capacidade de resposta? Como descreveríamos a sexualidade, uma zona em que somos agidos pelo mundo, pelo que é dito e mostrado, pelo que ouvimos, pelo que nos toca?

Se tomarmos esse domínio da impressionabilidade ou receptividade como primário, então podemos perguntar, quais aspectos do mundo nos impressionam no exato momento em que formamos uma impressão sobre esse mundo? O que encontramos é que, ao mesmo tempo em que agimos sobre o mundo, somos agidos por ele. Portanto, acho que não podemos eliminar a vulnerabilidade, porque estaríamos eliminando a capacidade de resposta, a impressionabilidade, a suscetibilidade, a lesão, a abertura, a indignação, a resistência, o desejo.

Se nada age sobre mim contra a minha vontade, sem meu conhecimento prévio, então quem sou eu? Sou um soberano. Tenho uma postura de puro controle sobre a propriedade que tenho e a propriedade que sou. Sou uma forma robusta e egoísta do "eu" pensante que busca encobrir aquelas falhas no próprio ser que não podem ser superadas. Que forma de política é sustentada por esse sentido inflexível de desconsideração?

Isso não é uma explicação masculinista da soberania, que, como ativistas feministas, queer ou trans, somos chamados a desmontar? Então, acho que vocês podem ver que quero contestar a ideia de que a performatividade pode ser reduzida à ideia de uma performance livre e individual. Somos chamados de nomes, nos vemos vivendo em um mundo de categorias e descrições muito antes de começarmos a classificá-las criticamente e nos esforçarmos para mudá-las ou criá-las por conta própria.

Dessa forma, somos, apesar de nós mesmos, vulneráveis e afetados por discursos que nunca escolhemos. De maneira paralela, quero sugerir que existe uma relação dual com a resistência que nos ajuda a entender o que queremos dizer com vulnerabilidade. Há uma resistência à vulnerabilidade que assume dimensões psíquicas e políticas; a resistência psíquica à vulnerabilidade deseja que nunca fosse o caso que discurso e poder fossem impostos a nós de formas que nunca escolhemos, e busca fortalecer uma noção de soberania ou domínio individual contra as forças formadoras da história sobre nossas vidas incorporadas.

Por outro lado, o próprio significado de vulnerabilidade muda quando é entendido como parte da própria prática da resistência política. Uma das características importantes das mobilizações extralegais, manifestações e assembleias que recentemente vimos, confirma que a resistência política depende fundamentalmente da mobilização da vulnerabilidade. A vulnerabilidade pode ser uma forma de estar exposto e agente, ao mesmo tempo. Um coletivo expõe sua própria vulnerabilidade como parte de uma declaração política.

Ao chegar ao público, um coletivo está exposto a possíveis ferimentos pela polícia, por aqueles contra os quais a polícia não oferece proteção. Estes são sujeitos políticos que estabelecem sua agência não vencendo sua vulnerabilidade.

Uma crítica muito importante emerge daqueles que argumentam que a vulnerabilidade não pode ser a base para a identificação de grupos sem reforçar os poderes paternalistas.

Eu entendo essa crítica, mas acho que precisamos ter em mente que a proteção paternalista não é o único objetivo político e que devemos deixar isso de lado em favor de formas de agência política e resistência realizadas por populações chamadas vulneráveis.

Para resumir, então: a vulnerabilidade não é uma disposição subjetiva. Ela caracteriza uma relação com um campo de objetos, forças e paixões que nos atingem ou afetam de alguma forma.

Como uma forma de estar relacionado com o que não é eu e não totalmente dominável, a vulnerabilidade é um tipo de relacionamento que pertence àquela região ambígua onde receptividade e responsividade não são claramente separáveis uma da outra, e não são distinguidas como momentos separados em uma sequência; onde receptividade e responsividade se tornam a base para mobilizar a vulnerabilidade, em vez de engajar em sua negação destrutiva.

Claro, estou ciente de que usei resistência de pelo menos duas maneiras: existe uma resistência à vulnerabilidade que caracteriza formas de domínio; existe uma forma social e política de resistência que é informada pela vulnerabilidade e, portanto, não é o seu oposto.

Quero sugerir que a vulnerabilidade não é nem totalmente passiva nem totalmente ativa, mas opera em uma região intermediária, uma característica constituinte de um animal humano, tanto afetado quanto atuante.

Sou levado, assim, a pensar sobre aquelas práticas de exposição deliberada à violência policial ou militar nas quais corpos, postos à prova, ou recebem golpes ou buscam parar a violência como bloqueios ou barricadas vivas.

Em tais práticas de resistência não violenta, como as que vimos no Gezi Park, podemos começar a entender a vulnerabilidade corporal como algo que na verdade é mobilizado para os fins da resistência.

Tal afirmação é controversa, eu entendo. Pode parecer que essas pessoas estão se engajando em autodestruição; mas, na verdade, acho que a mobilização da vulnerabilidade pode ser uma forma de afirmar a existência, reivindicar o direito ao espaço público, à igualdade, à mobilidade, opor-se à segurança policial violenta e às ações militares.

Às vezes, sob certas condições, continuar a existir, a se mover, a respirar, são formas de resistência, razão pela qual às vezes vemos cartazes na Palestina com o slogan: "Ainda existimos".

Na vida política, certamente parece que primeiro ocorre uma injustiça, e depois há uma resposta. Mas pode ser que a resposta esteja acontecendo enquanto a injustiça ocorre, e isso nos dá uma outra maneira de pensar sobre eventos históricos, ação, paixão, vulnerabilidade e formas de resistência.

Sem ser capaz de pensar sobre vulnerabilidade, não podemos pensar sobre resistência; e ao pensar sobre resistência, já estamos em andamento, desmontando a resistência à vulnerabilidade para, precisamente, resistir.

Muito obrigado.

Muito obrigado.


MOMENTO PARA PERGUNTAS:


Gostaria, antes de mais nada, de agradecer a Judith Butler por essa maravilhosa palestra.

Temos aqui algumas perguntas, mas gostaria de começar colocando uma pergunta eu mesma, também para dar tempo para que outras perguntas cheguem.

Minha própria pergunta, na verdade, seria a seguinte: gostaria de entender um pouco melhor como você entende um certo paradoxo envolvido em transformar a vulnerabilidade em um mecanismo político central.

Às vezes, tem-se a impressão de que, em seus trabalhos, existem dois paradigmas de vulnerabilidade, quase se contradizendo um ao outro.

Um deles é a vulnerabilidade como condição para o desejo, o que significa que só é possível desejar aceitando uma certa vulnerabilidade, já que o outro não é apenas aquele que me confirma em uma relação de reconhecimento, mas também é aquele que me despoja em cada relação.

Mas também há a ideia da vulnerabilidade como uma condição social de precariedade contra a qual devemos lutar. Quando você discutiu o corpo individual como uma entidade política, mas, antes de mais nada, não simplesmente como um corpo individual, mas também como um corpo que se abre para esse tipo de constituição de um corpo social; e quando você mencionou, em sua conferência, que a vulnerabilidade poderia permitir a constituição desse tipo de rede social que constitui o corpo político, pergunto-me como a vulnerabilidade poderia ser uma afecção que, no campo político, não se transformaria em medo ou mesmo em desejo de domínio, de dominar, de certa forma, para evitar a vulnerabilidade.

Você mencionou várias vezes este risco de que a vulnerabilidade possa se transformar em uma demanda por apoio, como se fosse uma espécie de "Hilflosigkeit" (impotência), pedindo uma figura paternal de proteção. Mas não ficou tão claro para mim como seria possível transformar a vulnerabilidade em algo mais do que isso, algo que realmente nos colocaria no campo político dentro dessa dimensão, essa condição quase primordial e ontológica do desejo, que você discute com tanto vigor.

Bem, muito obrigada, Vladimir, pela sua pergunta. Agradeço, aliás, pelo seu engajamento com o meu trabalho, e fico muito feliz de você estar aqui conosco hoje.

Primeiro, deixe-me dizer que eu não acho que podemos identificar a vulnerabilidade apenas com a precariedade, certo? E eu quero manter em aberto a ideia de que a vulnerabilidade tem uma dimensão que realmente buscamos valorizar e preservar, e que é importante para nós como seres encarnados, sexuais e responsivos. No entanto, é verdade que podemos ser explorados com base na nossa vulnerabilidade, certo? Somos criaturas que precisam de abrigo, somos criaturas que precisam de relações sociais, somos criaturas que precisam de comida. Em outras palavras, não podemos ser entendidos como autossuficientes, sem todas essas formas de apoio, de nutrição ou de relação.

Então, se tirarmos a ideia do indivíduo abstrato, que é desprovido de corpo e autossuficiente, e percebermos que somos seres encarnados, também descobrimos que nossos corpos dependem de todas essas relações para prosperar. Então, quero manter essa ideia. Mas precisamente porque somos vulneráveis nesse sentido, podemos ser explorados. Ou seja, o abrigo pode nos ser negado, a comida pode ser retida, a comida pode ser distribuída de maneira desigual, nossas casas podem ser desapropriadas. Vemos isso em Barcelona... movimentos que têm se oposto à desapropriação das pessoas de suas casas.

Não somos apenas indivíduos que são desapropriados de suas casas. Como indivíduos, somos seres encarnados que necessitam de abrigo. Isso faz parte do que significa ser encarnado. E se nos é negado o abrigo, ficamos em uma posição de precariedade inabitável. Então, por um lado, se tomarmos a sério o conceito de vulnerabilidade que estou tentando apresentar aqui, também seremos obrigados a construir um mundo onde os serviços básicos sejam fornecidos, onde serviços básicos sejam entendidos como parte do que uma organização política da sociedade deve garantir. Porque não podemos pensar o corpo fora do seu ambiente, não podemos pensar o corpo fora de sua fonte de alimento, não podemos pensar o corpo fora das suas relações sociais.

Mas a precariedade é a condição de ser explorado precisamente no nível da vulnerabilidade básica, como essas. Então, a revolta dos sem-teto. Aqueles que estão sem emprego se revoltam, e estão articulando algo básico sobre o que precisa ser provido por qualquer organização política legítima.

Agora, claro, a vulnerabilidade pode nos levar ao medo; a vulnerabilidade pode nos levar ao desejo de domínio; a vulnerabilidade pode nos levar a clamar por proteção paternal. Claro. Claro. E é justamente por isso que devemos fazer ativamente o argumento de que ela também pode nos levar ao igualitarismo radical, pode também nos levar ao socialismo, pode também nos levar à redistribuição radical da riqueza, ou aos direitos à moradia, ou aos direitos ao emprego, ou ao direito à educação, ao direito à saúde. Quero dizer, ela deve ser mobilizada precisamente para esses fins.

Por si só, não há consequência política imediata. Ela precisa ser argumentada politicamente. E onde não há coletivos que estão defendendo um futuro político radical e igualitário, as pessoas realmente experimentam sua vulnerabilidade como medo, ou desejo de domínio, ou a necessidade de proteção paternal, ou policiamento mais forte, certo? "Eu sou vulnerável, quero polícia mais forte."

Muito obrigada. Agora, vou ler algumas perguntas do público. A primeira, de... Ah!

Ok, farei as perguntas feitas pelo público. A primeira pergunta é de Marina Ganzarolli. A pergunta dela é: "Durante sua conferência em Salvador, você falou sobre resistência através da lei. Como poderíamos descobrir, ou melhor, expandir, esse potencial emancipatório dentro da lei, quando é precisamente a lei e suas normas que categorizam o gênero e a sexualidade e conformam nossos corpos? Como essas categorias poderiam servir ao reconhecimento dos nossos direitos? Ou melhor, como lidar com esse paradoxo?"

É uma pergunta muito grande e importante. Olha, eu acho que, por um lado, é importante ter leis que reconheçam e se oponham à violência contra as mulheres e contra as pessoas trans, por exemplo. É importante ter essas leis. Por outro lado, seríamos muito, muito tolos se pensássemos que a oposição política à violência contra as mulheres e contra as pessoas trans poderia ser resolvida através de uma lei. Isso não resolverá o problema. E não resolverá o problema justamente pela razão que sugeri aqui, que é que as leis podem ser passadas e depois nunca aplicadas; as leis podem ser passadas e depois se tornar parte de uma campanha de relações públicas que o estado está fazendo; e as leis podem ser passadas e nunca aplicadas pela polícia, e até minadas pela polícia, que ou comete sua própria violência ou permite que essa violência contra as mulheres e pessoas trans continue.

Então, o que isso significa? Significa que deve haver uma mobilização extrajurídica, política; que não podemos confiar na lei como o instrumento definitivo. Por outro lado, às vezes as leis funcionam para trazer consciência pública ou para mudar instituições. Então, é sempre uma questão de estratégia, sabe? Não podemos responder a essa pergunta de forma abstrata. Precisamos ver se a lei está fazendo mais violência ou se a lei pode amenizar a violência. Se a lei faz parte de um regime de violência legal, devemos sempre ser céticos em relação à lei. Mas, na minha opinião, não há razão para não lutar por novas leis. Só significa que nossa luta política nunca deve ser limitada à luta por novas leis.

Desculpe por não poder dar uma resposta mais conclusiva, mas acho que existem formas profundas e extrajurídicas de mobilização e resistência que precisam ser preservadas, reanimadas e revigoradas, que permitem uma distância crítica dos projetos de reforma legal. E acho que foi isso que eu disse em Salvador, que a reforma legal em si não pode ser suficiente se a lei está engajada em sua própria forma de violência.

Então, uma segunda pergunta...

Tudo bem, entendo "segunda pergunta".

Uma segunda pergunta, com base nesses temas que tocam a questão do direito de gênero, foi feita por Renan Quinaglia:

"Como você analisa a demanda pela criminalização da violência contra pessoas LGBT? Dado que, por um lado, a criminalização da violência oferece algum grau, por mais leve que seja, de proteção legal; mas também reforça o sistema penal e a prisão em massa. Diante desse paradoxo que você levantou, seria interessante para o movimento LGBT fazer essa demanda?"

Mais uma vez, uma pergunta muito importante.

É muito difícil ser a favor de aumentar a população nas prisões.

Eu não acho que a prisão seja a resposta para a violência contra pessoas LGBTQ.

Acho que essa é mais uma razão pela qual precisamos ter uma análise mais complexa da violência legal.

A prisão é, como sabemos, junto com a polícia, um dos principais instrumentos da violência legal com a qual muitos de nós, em muitos países, convivemos.

E a criminalização também geralmente exige ou a patologização da pessoa que comete o crime ou algum novo conjunto de categorias tipológicas que transformam esse indivíduo em uma espécie de personagem aberrante.

“Essa é uma personalidade aberrante.”

Bem, a verdade é que a violência contra trans e... contra mulheres e contra pessoas LGBTQ, contra minorias raciais, contra trabalhadores do sexo – lembremos aqui da violência contra trabalhadores do sexo – e novos migrantes; essa violência é uma expressão de uma forma maior de violência institucional; é uma expressão de formas maiores de racismo, sexismo e homofobia. Esses tipos de ódios e essas formas institucionalizadas de opressão devem ser combatidos em todos os níveis. Não podemos depender das prisões para fazer esse trabalho. As prisões não vão, e os tribunais não vão reconhecer, por exemplo, a violência contra mulheres e pessoas trans como algo endêmico à sociedade, como algo que permeia toda a sociedade. Eles vão criminalizar os indivíduos e dizer: "É apenas aquela pessoa." "É só aquela pessoa." "É só aquela pessoa." Assim, eles conseguem se exonerar criminalizando os indivíduos e os colocando na prisão.

De fato, todos esses crimes envolvem a sociedade como um todo, o que significa que deve haver uma crítica institucional muito mais massiva desse tipo de violência.

É verdade, eu não acredito que a encarceramento seja a resposta, mas acho que também precisamos olhar para a maneira como a polícia, ao não prender ou não processar, também se torna cúmplice da violência.

Portanto, estamos em um paradoxo.

Talvez pudéssemos perguntar: “Ok, uma vez preso, e depois?”

Sabe, Angela Davis tem uma ideia de justiça restaurativa que poderia acontecer fora do sistema prisional.

Existem diferentes maneiras de pensar sobre como lidar com essas situações que não necessariamente envolvem encarceramento.

Essas são questões muito mais amplas, e eu aprecio a dificuldade e a intransigência do paradoxo que você nomeia.

Ok.

Agora, uma pergunta sem nome.

"Em seu 'Manifesto Contra-Sexual', Beatriz Preciado faz uma breve crítica ao gênero como performance e afirma a necessidade de analisar a materialidade dos corpos. Considerando esse debate, não poderíamos dizer que uma análise centrada na materialidade abriria espaço para questionar discursos genitalizantes, com sua genitalização dos gêneros?"

A questão é...

A questão é se...

O microfone!

Tecnologia e o corpo...

A questão é se seria melhor começar com a realidade material dos corpos, em vez da performatividade?

A pessoa pode responder?

É uma pessoa sem nome.

A pessoa sem nome pode responder? Ah, não. Tudo bem.

Ok.

Ok. Eu posso tentar dar sentido à pergunta. Desculpe.

Bem, na minha visão, a performatividade é materializada. Há uma materialização do corpo.

Mas o que queremos dizer quando falamos sobre o corpo adquirindo sua realidade material?

O que eu quero dizer é que as próprias formas que tomamos e o que quer que surja para nós como genital ou como sexual, as próprias maneiras como vivemos e comportamos nossos corpos, elas tomam forma ao longo do tempo; e as normas culturais, e nossas resistências a essas normas, e nossas maneiras de reconfigurar essas normas também tomam forma em nossas vidas corporificadas.

Então, quando falamos sobre tomar forma: o gênero toma forma, ele toma forma ao longo do tempo; estamos falando sobre um processo de materialização.

A matéria do corpo não é uma espécie de matéria estática; é algo que se forma ao longo do tempo: crescemos, envelhecemos; podemos muito bem mudar de gênero, ou podemos incorporar o gênero de forma muito diferente.

Quando falamos sobre corporificação, estamos falando sobre um sentido ativo e temporalizado de materialização.

Então, eu não vejo a performatividade como linguística, algo abstrato, e negando o corpo que é concreto e real.

Eu acho que o concreto e o real são estruturados socialmente, e nós vivemos essa estruturação concreta do corpo em nossos próprios corpos. Vivemos a materialização da norma em nossos próprios corpos.

Então, para mim, essas coisas são... elas se movem juntas. Não tenho certeza se devem ser completamente entendidas como opostas.

Espero ter respondido à pergunta.

Mais duas perguntas, então?

A primeira, de Adriana Moura:

"Como os discursos da psicanálise minam os caminhos para a resistência e o relaxamento das normas de gênero?"

Bem, talvez você esteja lendo demais Lacan.

Eu esqueci, ele escreveu um...

Não, não!

A psicanálise pode ser muito interessante, na medida em que, como se vê, as identificações que podemos ter são muito flutuantes e móveis.

E, claro, há um lado muito conservador na psicanálise, que busca normalizar e patologizar. Não duvido disso. E, às vezes, claro, quando você lê Freud, isso fica muito claro. Mas agora existem leituras queer muito importantes de Freud, e poderíamos citar muitas delas, Lee Edelman entre elas, que sugerem que, na verdade, para Freud, o desejo, o desejo sexual, não está de forma alguma vinculado de forma natural à reprodução, à reprodução da espécie.

E até Freud, quando fala sobre o impulso, descreve-o como algo que desvia dos seus objetivos sociais.

“Você deveria estar desejando X, mas deseja dessa forma ao invés disso.”

Então, há um movimento queer no impulso que Lee Edelman, eu acho, sublinhou, e eu acho que esse é um ponto importante.

Pode haver algo muito queer no coração da teoria psicanalítica do impulso.

Theresa de Laurentis também fez esse ponto de maneira interessante.

Mas você tem que estar disposto a brincar um pouco com Freud e com a psicanálise, certo?

Você discute as partes que não gosta e rouba as partes que gosta. Essa é, pelo menos, a minha abordagem, geralmente.

Infelizmente, não será possível colocar todas essas perguntas. Então, vou fazer uma última pergunta e depois enviar as restantes diretamente para ela.

Infelizmente, o tempo é curto.

Mas talvez uma pergunta mais contextual aqui:

"Hoje no Brasil, temos um Congresso e uma Câmara muito conservadores, e na cidade de São Paulo acabaram de proibir a discussão de gênero na política educacional. Como agir no campo da política pública? E como você vê a possibilidade de criar um Partido Feminista?"

Bem, eu sei que as referências ao gênero e à diversidade sexual foram excluídas da política educacional no Brasil recentemente.

Também sei que a palavra “gênero” foi debatida durante a aprovação do projeto de lei sobre o feminicídio e foi excluída.

Então, parece haver um certo medo em relação ao gênero e também um medo em relação à diversidade sexual.

Mas isso é, claro, um momento de uma luta contínua.

Perdemos para esse, por enquanto. Mas é só um momento.

As pessoas vão voltar e dizer: "Não, insistimos que isso seja parte da política educacional. As crianças devem aprender sobre gênero."

Por que elas devem aprender sobre gênero e diversidade sexual?

Bem, em primeiro lugar, as crianças estão lidando com seus próprios gêneros.

Quantas delas estão ok com a atribuição de gênero? Quantas delas estão confortáveis com a atribuição de gênero? Quantas delas sentem que não se conformam à norma?

As escolas têm uma opção. Você ensina a norma.

"Isso é o que é ser uma menina. Isso é o que é ser um menino. Você só tem duas opções. Na verdade, você não tem uma escolha."

“Existem apenas duas opções, você não tem escolha.”

Lição linda.

Então, o que estamos fazendo? Estamos criando um ambiente onde os jovens podem fazer as perguntas que têm e podem discutir abertamente o que significa haver variação em como se vive o gênero ou como pensamos essas normas? Porque talvez não gostemos dessas normas. Talvez possamos debater essas normas.

A educação deve ser um lugar onde se pensa sobre a formação, onde se pensa sobre o que é necessário na cultura, o que não é; o que pode ser debatido, o que pode ser aberto.

Então, basicamente, a exclusão da política educacional me parece ser uma forma de censura que busca silenciar a conversa sobre como o gênero é vivido, como o gênero é vivido de várias formas; e agir como se, seja qual for o seu sexo, ele fosse estabelecido pela Bíblia ou por alguma versão da ciência que se conforme com a Bíblia.

Então, haverá pessoas da comunidade científica que vão rejeitar isso, há feministas, há todo tipo de gente, há educadores que acham que isso deveria ser uma discussão aberta que vão rejeitar isso. Então, a única pergunta que eu tenho é, qual será a forma que a nova mobilização tomará para combater essa censura?

Eu acho que é um ato de medo censurar esse material, claramente.

Eu realmente acho peculiar que grupos religiosos muito conservadores queiram afirmar que a questão de que a Bíblia estabelece homens e mulheres e a diferença entre eles, e que isso deveria se tornar a base para todo aprendizado; mas também parecem afirmar que o termo "gênero" é anticientífico ou recusa a existência científica da diferença entre os sexos.

Mas, claro, a comunidade científica tem muitas visões complexas sobre como ocorre a determinação do sexo. E elas brigam o tempo todo.

Há os que defendem a teoria hormonal, há os que defendem a teoria cromossômica; há os que defendem o modelo interativo, há os que defendem o modelo causal, há os que são não-causais, não-interativos.

Há um enorme debate, e até tentar entender a determinação do sexo nos animais, ou nos insetos, se tornou uma área muito contestada.

As pessoas trazem suas hipóteses à tona quando estão tentando determinar o sexo.

Então, por que todas essas discussões não deveriam ser conhecidas? Isso é ciência.

Sabemos que a categoria de sexo mudou ao longo da história, e ela muda dependendo de qual língua estamos falando e de qual parte do mundo estamos.

Por que isso não deveria ser sabido?

Por que não seria interessante e útil descobrir as várias formas que as pessoas pensam sobre o sexo?

Não apenas as religiosas e nem uma única, redutora, visão científica.

Em nome da investigação intelectual aberta, deveria ser obrigatório ensinar gênero.

Mas também, acho que só quero dizer que quando você começa a censurar uma palavra:

“Não, não vamos ensinar gênero”, é porque o gênero é considerado muito poderoso.

Então, estão atribuindo um certo poder.

Como, se um jovem aprender que pode mudar de gênero, aquele jovem vai sair e mudar de gênero naquele momento.

Se um jovem aprender sobre a vida gay ou lésbica, essa pessoa se tornará uma pessoa gay ou lésbica.

Eles imaginam que o que quer que estejamos fazendo é tão atraente e tão poderoso, que esses jovens não serão capazes de resistir e que todos serão recrutados para um grande exército de gays, lésbicas, trans. Então, eles têm uma fantasia enorme.

Ok, então...

Muito obrigado, Judith.

Muito obrigado, Judith, pela sua presença.

Muito obrigado pela presença de todos vocês.

As perguntas restantes serão enviadas a ela depois.

Bem, é isso. Muito obrigado.

PRIMEIRO SEMINÁRIO QUEER

CULTURA E A SUBVERSÃO DAS IDENTIDADES



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