
A Controvérsia da Normalidade
Por Sergio Viula
Eu sempre digo que adoro ler os comentários dos meus leitores. Alguns me incentivam, outros me divertem — e ainda tem aqueles que me inspiram. Foi o que acabou de acontecer. Estava lendo um comentário do Léo (no post “Homenagem a Heath Ledger”, de 30/01/08), e o cara simplesmente tocou num dos calcanhares de Aquiles de uma grande parte dos gays atuais: o medo de serem associados às “desprezíveis” bichinhas (como pensam os machistas). O comentário dele desencadeou uma série de pensamentos relâmpago na minha mente... geralmente inquieta.
A questão é a seguinte: existem muitos homossexuais que têm medo de sair do armário. Ponto pacífico. Outros continuam no armário porque acham conveniente para suas profissões, convívio familiar etc. O medo ainda é a base dessa escolha. Medo de rejeição, rótulos, olhares julgadores, deboches. Mas é preciso respeitar a decisão daqueles que optam por continuar do lado de dentro. Só que não existem apenas dois tipos de homossexual: os que estão dentro e os que já saíram. A coisa é bem mais complexa.
Há homossexuais assumidos que vivem sua sexualidade como quem segue o conselho das cervejarias pressionadas pela agência reguladora e pelo governo federal: “Beba com moderação.” Eles fazem o mesmo com sua identidade. Querem ser vistos como gays “moderados”: o tipo bem-moldado, comportado, social e politicamente correto. O problema é que todos esses rótulos se baseiam em estereótipos ditados pela heteronormatividade — aquela voz que sempre começa com “homem que é homem...” e, a partir daí, empacota tudo que lhe interessa: “... não desmunheca”, “... não fala macio”, “... não ri demais”, “... não chora”, “... anda largado”, “... senta de perna aberta”, “... coça o saco”, “... fala palavrão”, “... não usa rosa”... Cansou? Eu também. Cansei de ouvir isso a vida inteira, vindo de pai, mãe, tia, avó, tio, primo, colega... todo o “esquadrão da vigilância masculina”.
Mas sabe qual é o maior problema? Muitos homossexuais ouviram isso por tanto tempo que passaram a acreditar. Para quem ainda vive trancado no armário da própria vida, isso não é novidade. Tem que ser bom ator, senão nem precisa sair — o armário despenca só com o olhar do próximo, sempre atento ao menor escorregão.
O problema maior é com quem já saiu do armário. Aqueles que frequentam lugares e eventos LGBTQIA+, que fazem parte de comunidades gays online. Mas mesmo assim, ainda caem na tentação de querer agir o mais parecido possível com os heterossexuais. Não que haja algo errado em ser “naturalmente” masculino. Há gays que simplesmente não possuem traços comportamentais que destoem do que se convencionou chamar de “masculino”. E muitos deles são assumidíssimos! Levam cantada de mulher o tempo todo e não hesitam em dizer que têm namoradO, maridO, parceirO. Até aí, tudo bem. O problema surge quando o sujeito só consegue agir assim à força, ou quando age assim naturalmente, mas recrimina os que têm um comportamento mais “afetado”.
E sabe qual é o problema? É o desejo de parecer “normal”.
Qual o problema de ser diferente? Qual o problema de desmunhecar, de falar macio, de não gostar de futebol, de amar a coleção da Barbie, de ouvir “Macho, Macho Men”, “I Will Survive” ou “It’s Raining Men” no volume do pagode do vizinho no churrasco de domingo? É claro que gays têm gostos musicais variados como qualquer outro ser humano. Mas não há quem curta mais divas dos anos 70 e 80 do que os gays. Isso é fato.
Muitos homossexuais desprezam os “afetados”, os gays passivos, os transgêneros, os transformistas, os travestis, as lésbicas (especialmente as mais masculinas). Isso mostra o quanto ainda estão presos ao modelo heterossexual e machista. Por que o homem gay não pode ter um comportamento mais feminino? E por que a mulher gay não pode ter um estilo mais masculino? Não que isso seja necessário — mas por que deveria ser visto como indesejável?
Eu acho ótimo que existam essas variações de comportamento. Isso desmonta o pensamento binário de que tudo no comportamento humano tem que estar dividido entre macho e fêmea. Como se gênero fosse o divisor universal de águas na conduta do homo sapiens. Mas, infelizmente, é isso que ainda define, na cabeça de muita gente, o que é “normal”. Bem disse Pepeu Gomes: “Se Deus é menino e menina, sou o masculino-feminino...” — e olha que, até onde se sabe, o cara é heterossexual.
Mas o quão seguro é esse conceito de “normalidade” que o ser humano inventou como referência e que acabou se tornando sua própria armadilha de urso? (Ai... como dói!)
Tem gay votando em candidato homofóbico só para tentar se diferenciar dos outros gays pela sórdida via da homofobia (ou auto-homofobia, nesse caso). A gente precisa ver além dos estereótipos se quiser ser, no mínimo, justo — para não dizer inteligente.
O que você diria se eu alegasse que não é normal uma mulher saber ler e escrever? Ou trabalhar fora? Ou dar sua opinião quando homens estão discutindo? Ou votar? — Tudo isso era considerado anormal até bem pouco tempo. Imagine se as mulheres tivessem sucumbido à pressão machista em nome da tal “normalidade”...
O que falta a muitos homossexuais é exatamente isso: brio, orgulho de ser quem são. Ser quem se é — será que é pedir muito? Respeitar o jeito do outro — é demais?
É curioso como o machismo contamina até os lençóis. Tem viado doido pra dar a bunda, mas com vergonha do que o outro vai pensar: “E se ele achar que sou só uma bichinha passiva?” — pensam muitos (passivos!!!) até hoje. Besteira! É bem possível que o viado que banca o machão ativo seja justamente o que mais deseja ser passivo, mas nem se dá a chance. Vai logo pegando por trás para não deixar dúvidas.
É tragicômico ver o número de gays que não assumem que são passivos quando uma drag sacana provoca a plateia da boate:
“Cadê o grito das passivas?” — ela grita.
Meia dúzia responde timidamente: “Uuuuh...”
“E das ativas?” — ela insiste.
Alguns respondem.
A boate está lotada e quase ninguém se manifesta?!?! Como assim? Será que a maioria ali é hétero? Claro que não! Isso só mostra que muita gente ainda tem medo de assumir o próprio desejo. E por quê? Porque “homem que é homem não dá o cu” — dizem os machistas, desde o berçário até o túmulo.
E a bicha passa a vida toda se sentindo diminuída porque gosta de dar, mas não tem coragem de assumir isso com orgulho. Ou acha que, para dar, tem que colocar peruca. Kkkkk! Já vi caras com tanta testosterona que dava medo só de olhar — e na hora H, me deram as costas. Buniiiitaaas! E daí? Deixa de ser homem só porque curte preencher esse generoso buraco negro? Kkkkk!
Mas não pensem os apressadinhos que estou indo contra o que eu mesmo defendi, só porque, nesse exemplo, fui ativo. Alguém pode dizer:
“Ah, ele fala que vale tudo, mas só contou caso em que comeu alguém.”
Ahahahaha... Como são bobinhos esses meus leitores precipitados e intérpretes do inexistente... Ahahahaha...
Já passei por outra situação também. Lógico. Já fui pra cama com alguém que, pra ser mulher, só faltava a xereca. Eu achando que ia pegar de tudo quanto é jeito, mas o viado me disse que só fazia a ativa — podia ser verdade, ou só aquele medinho que comentei no início. Não importa. O que importa é que eu dei... e não recebi de volta. Ahahahaha...
Pra ser sincero, não conseguiria viver feliz casado com alguém que quisesse ser ativo o tempo todo comigo. Isso não escondo. É uma questão de preferência. Deve acontecer o mesmo ao contrário com outras pessoas. Tudo bem. Mas daí a dizer que nunca dei ou que nunca darei de novo? Ahahahaha... me poupe! Eu sou maior que meu cú e que meu pau. Estou além de qualquer restrição dessas. Tenho preferências, sim — mas camisa de força para o desejo, não. Preferência é só um desejo que se repete mais vezes que os outros, só isso.
Alguém pode dizer:
“Ih, igualzinho a mim... ‘Total Flex’!”
E os machistas, de novo:
“Ah, esses caras ‘bipolares’ na cama dizem que fazem as duas coisas só pra não serem tachados de passivos.”
De novo o preconceito contra o passivo. Qual o problema de o viado ser “total flex”? Deixa ele explorar seu potencial plenamente. Por que não? Inveja das ativas que não costumam dar a bunda, mas se ressentem disso? Ou despeito da passiva que tem medo de estar dando pra outra passiva? — uma que, como camaleão, se adapta: dá quando comem, e come quando dão. Kkkkk!
Sabe o que parece? Que as pessoas têm necessidade desesperada de rótulos, classificações, categorias. E, enquanto isso, perdem as melhores oportunidades de viver plenamente seus corpos e os corpos oferecidos na hora do amor. Não há certo ou errado, normal ou anormal no desejo entre duas pessoas de comum acordo e em pé de igualdade.
Não precisamos de agremiações do tipo “As Dadeiras Incansáveis” ou “As Comedoras Inflexíveis”. Precisamos entender, de uma vez por todas, que nossas diferenças não são excludentes — são complementares.
Parafraseando certo texto “sagrado”:
“Como darão, se não houver quem coma? E como comerão, se não forem convidados? Como está escrito: quão formosos os pênis que não se sentem acanhados e as bundas que não se fazem de rogadas.” (Epístola de São Sergio aos Humanos)
ola. . .olha achei seu blog na comunidade e simplismente o que que voce disse é verdade as pessoas tem medo de assumir o que se é. Eu por exemplo sou travesti e sou casada copm uma mulher e gosto de mulher, gosto de ser ativa e passiva com ela e não escondo de ninguem a minha preferencia, já provei fazer com homem e não gostei, me encontrei com e sinto prazer com mulher e como voce eu tambem acho que se as pessoas se aceitassem mais viveriam melhor.
ResponderExcluirbjs
Alê
Oi Sergio,
ResponderExcluirque bom que vc ainda lembra dessa louca que é alucinada pelos seus textos (kkkkkkkkk) e o mais legal é reler alguns de seus artigos - repaginados - e ter o prazer de assimilar mais cultura !
Vc é demais !
Bjos no edi das Bunitas
Leo
PS - to mais pra pintosa do que pro caubói (fazer o que . . . sem medo de ser feliz!)
Ja q to tão pintosa, mando o vídeo desse artista - infelizmente falecido: ERICK Barreto , Lembra ??????
http://www.youtube.com/watch?v=N3j6ITlUsys
e esse
http://www.youtube.com/watch?v=Xa5dKbjAiP0&feature=related
Alessandra, adorei teu comentário. Vc falou sobre algo que eu já havia concebido. A possibilidade de um travesti amar uma mulher. Já vi até outra situação: uma trans (mulher-homem) que casou com outra (homem-mulher). Fantástico!!!
ResponderExcluirDeixo um beijo carinhoso pra ti e tua esposa.
Sergio Viula
Leozinho, você maravilhoso!!! Estava com saudades dos teus comentários. Que bom que vc escreveu. Que bom que continua pintosa!!! Adooorooo!!!
ResponderExcluirUm beijo carinhoso,
Sergio Viula
Olá!!!
ResponderExcluirFiquei muito comovida com seu texto. Parabéns por colocar de forma tão humana essa parte da nossa sociedade que é tão hipócrita, e tão mal discutida.
Abraços!
Obrigado pela visita e pelo comentário, Urbaninha. Gostei muito de saber que vc passou por aqui. Volte sempre. ;)
ResponderExcluirBeijo grande,
Sergio Viula
amei ter encontrado seu blog! incrível!
ResponderExcluirQue bom, Gilbef! Seja sempre bem-vindo!!! ^^
ResponderExcluirAbraço grande,
Sergio Viula
Gostaria de pontuar duas coisas. Primeiro acho inteiramente válido boa parte do que você falou e concordo plenamente com sua revolta.
ResponderExcluirSegundo, achei que apesar do seu discurso você acabou utilizando expressões que dão a entender que você está sendo muito contraditório, tais como bichinha, viado, viada Termos totalmente pejorativos e utilizados pelos homofóbicos. Além de termos como passiva e ativa, quando deveriam ser passivO e ativO, já que como você mesmo disse ninguem deixa de ser homem por se deitar com outro homem, por mais afeminado que seja.
Texto muito pertinente. A atual tendência de alguns setores da comunidade gay virarem as costas aos seus iguais, praticando uma espécie de bullying interno com os menos "palatáveis" à cultura heterossexual dominante é o armário se manifestando.
ResponderExcluirRicardo, você captou perfeitamente o "espírito" do texto! ^^
ResponderExcluirMarcelo, você caiu na armadilha. hehehe O uso dos termos "pejorativos" e do gênero feminino nos substantivos "ativo" e "passivo" foi aplicado de propósito.
Quando isso incomoda muito um gay, especialmente vindo da boca de outro gay que não tem mais problemas com as questões de gênero e de orientação sexual, isso sinaliza que esse gay que ficou incomodado ainda se enquadra no público-alvo desse texto. Não foi contradição. Foi provocação. ;)Procure entender porque essa transgressão e embaralhamento dos limites masculino-feminino incomodam tanto. Uma coisa é ser biologicamente macho e fêmea (existem os intersexos também), outra coisa é ser masculino e feminino (existe a androginia), outra coisa é ser gay ou hetero (existe o bi), e por aí vai. Nada é só binômio na natureza. Por que deveria sê-lo na cultura? Inverter para fazer pensar, embaralhar para acabar com o engessamento de ideias, transgredir limites para abrir novas possibilidades ou reconhecer aquelas há muito ignoradas. Foi proposital, menino. ^^
Obrigado pelos comentários, meninos!!! :)
Abraço,
Sergio Viula
Muito bom...
ResponderExcluirValeu, querido.
ExcluirAbração,
Viula