É preciso amar







"É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, 
porque se você parar pra pensar, na verdade, não há." 
(Renato Russo)



Como é fácil nos perdermos no ontem ou no amanhã. A dor de ontem não dói mais, exceto quando se trata de alguma experiência que deixou impressões muito profundas na memória. A dor de amanhã é só uma probabilidade na qual não pensamos muito, porque geralmente queremos crer que o amanhã será melhor. A isso costumamos dar o nome de esperança. Entretanto, o ontem já era e o amanhã pode nem vir a ser, existindo ambos apenas em retrospectiva ou perspectiva. Tudo o que sabemos ter é o agora.

O que faríamos se este fosse sabidamente nosso último dia de vida? Uma resposta sincera a essa pergunta revelaria muito a nosso respeito e a respeito do que consideramos realmente importante - o que novamente remete a nós mesmos.

O poeta que cantava que é preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã não está mais entre nós. Na verdade, não está em lugar nenhum, exceto em nossa memória alimentada por sua obra. Esse privilégio, porém, não é de todos. Muitos há que serão esquecidos. Outros serão somente lembrados por razões que não os tornam menos miseráveis do que o foram em vida, como é o caso dos ditadores, golpistas e assassinos que povoam a história humana.

O que interessa de fato para a vida, então?

Renato Russo sugere a melhor resposta a essa pergunta: Amar!

Tudo o que não presta é - de alguma forma - filho do ódio ou, pelo menos, da falta de amor.

Fico me perguntando o que será das pessoas que não aprenderam a amar. Em condições ideais, nosso primeiro contato com o amor se dá ainda no útero, mas ganha proporções imensas no encontro pós-parto entre bebê e mamãe, com a deliciosa surpresa da primeira mamada. Esta se torna ainda mais especial quando a mãe pode amamentar de imediato. Entretanto, quando por alguma razão, a mãe não pode dar o peito, a mamadeira no colo, com todo aconchego faz as vezes do peito materno e o amor que a mãe transmite naquele momento de doação é o primeiro passo (não o único) para a formação de um ser humano emocionalmente saudável.

Mas o que esperar de seres humanos que não receberam esse afeto e que, ao longo da vida, foram abandonados, maltratados, humilhados por aqueles que deveriam protegê-los?

Algumas dessas pessoas são donas de uma resistência moral e intelectual incomum e superam esses traumas, escapando daquele ciclo vicioso de infeliz que gera infeliz. Outras têm oportunidades inesperadas e sabem aproveitá-las no melhor sentido do termo, e emergem do "limbo" social onde foram atiradas desde cedo.

Há, porém, aqueles que não conseguem fazer essa travessia. Muitas vezes não têm nem o que calçar ou vestir; ficam ao léu, parecendo zumbis, como os que vemos nas cracolândias desse país.

Contudo, o mais intrigante é ver que muita gente que vive com conforto, podendo desfrutar do melhor que o dinheiro pode comprar, não consiga superar a ideia de a vida não presta, e que se ele não consegue ser feliz, ninguém mais será.

No meio desse turbilhão de sentimentos que acometem essas pessoas, aparecem todos os tipos de oportunistas: líderes de gangs, partidos com ideologias de supremacia, traficantes, gigolôs, líderes de seitas, entre outros. Muitos destes fizeram caminhos existenciais semelhantes e agora recrutam e discipulam esses desesperados, sem amor, e muitas vezes carregados de ódio, e dominados por um desejo irracional de vingança contra toda e qualquer pessoa. Exemplos desse tipo de gente são os skinheads, os neonazistas, as quadrilhas do crime organizado, os exploradores de menores, os traficantes de pessoas, sacerdotes e pastores de várias seitas totalizantes que exploram seus seguidores, ao mesmo tempo em que discriminam e excluem pessoas, promovendo divisões muitas vezes dentro da própria casa do seguidor - todos eles capitalizando em cima da ignorância, do rancor, do ódio, da vingança, da baixa autoestima que deseja se provar grande a partir da dominação, humilhação, destruição do outro. São pessoas que se submetem a lideranças desejando fazer parte de um projeto de dominação. Não percebem a contradição.

Solução para tantos problemas nascidos de uma mesma matriz, talvez ninguém tenha. Algumas coisas, porém, podem minimizar esses efeitos nocivos da carência de afeto, da falta de sentimento de pertencimento à família e à sociedade, da falta de perspectivas pessoais, ou da total ou parcial ausência daquela noção de que se é parte de um todo que não existe por si só, mas que depende da participação de cada um.

O que seriam essas "coisas" que poderiam minimizar esses efeitos?

Primeiro, firmeza para coibir as ações de ódio: Contra o malfeito, a lei. Depois, a inclusão por meio do acolhimento, da nutrição, da educação, do tratamento médico, da profissionalização, do contato com a cultura, com o esporte, com o lazer. Isso para aqueles cujos transtornos de personalidade foram provocados ou alimentados pela carência dessas coisas.

Mas, e aqueles que cresceram cercados de conforto e com todas as oportunidades de desenvolvimento pessoal? Aqui, principalmente, mas não exclusivamente, cabe a análise do profissional de saúde mental, tanto do analista, como do psicólogo, quanto do psiquiatra. Esses profissionais poderão identificar razões que olho não treinado é incapaz de identificar. Só então será possível (não garantido) ajudar esse indivíduo.

Contudo, por mais pensadas e bem organizadas que sejam as ações de recuperação da saúde mental desses indivíduos, não há garantias prévias de que estas funcionarão conforme o esperado. O melhor remédio continua sendo a prevenção, que era exatamente o que Renato Russo nos instava a fazer através de seu canto: "É preciso amar as pessoas como se não houvesse amanhã, porque se você parar pra pensar, na verdade, não há."

Amar é a mais essencial e urgente de todas as virtudes. E talvez a única que aprendemos antes mesmo de pronunciarmos a primeira palavra na língua materna. Também é a que nos acompanha até a hora final, quando nosso maior consolo é o amor que nutrimos por nossos amados e o amor que recebemos de nossos amantes.

Sim, porque para nos tornarmos seres amantes, precisamos ser primeiramente amados. Não se ama por mandamento. Uma das maiores tolices bíblicas é, também, a mais admirada, graças a simples falta de reflexão. Não se ama por mandamento. O mandamento supostamente dado por Jesus, "amarás o teu próximo como a ti mesmo", não faz sentido. Não amamos porque alguém mandou. Podemos não fazer mal a alguém por força da lei, mas não somos capazes de amar alguém por força de mandamento. Nenhuma lei no mundo manda amar. Amor é algo que aprendemos a dar à medida que recebemos. E a primeira lição prática que recebemos acontece logo depois do parto, durante a amamentação e precisa ser seguida de muitas outras ao longo da infância e adolescência.

Por falta de amor, sofrem tanto o próprio indivíduo quanto toda a sociedade ao seu redor.


Com tão pouco amor presente no mundo hoje, tomara que os indivíduos sejam capazes de amar por saberem, a partir da própria experiência, como o amor faz falta! Essa rara e improvável irrupção de amor como reação ao seu contrário torna-se ainda mais necessária, dadas as circunstâncias em que vive nossa sociedade. De outra maneira, as relações sociais se tornarão insuportáveis e as boas interações, impraticáveis.

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