
O divórcio mais gay
que meu advogado já fez
A separação aconteceu
da noite de 07 de maio para a manhã de 08 de maio de 2014. Uma maneira nada
tradicional de se comemorar um aniversário. Têm razão os que dizem que a vida supera a ficção.
A separação de um
casal é frequentemente vista como uma guerra entre duas pessoas que trafegaram
do amor ao ódio durante a relação. No nosso caso, muito ao contrário, ela se
deu num momento em que ambos amavam um ao outro – pelo menos foi o que os dois reafirmaram,
mesmo à mesa do divórcio. É claro que para toda separação existe um momento
decisivo, algum ponto no caminho que as duas pessoas avaliam como o fim da
linha. Tivemos esse momento também. Todavia, o que saltou aos olhos de quem nos
acompanhou nesse processo – o advogado (Ricardo) e o escrevente do cartório
(Erichson), além dos familiares geograficamente mais próximos – foi a
tranquilidade, o respeito, a dignidade, o carinho com que tudo foi feito.
Ricardo, que tem sido
um bom amigo há anos, preparou a minuta do divórcio e nos acompanhou nos
procedimentos cartoriais. Graças a uma lei recentemente aprovada, divórcios
podem ser feitos em apenas um dia, bastando a presença do advogado, do casal e
do escrevente. Na verdade, em uma hora, se tudo estiver OK, e pagas despesas
com o cartório (aproximadamente 600 reais), qualquer casal pode sair legalmente
divorciado. A única documentação necessária é: a certidão de casamento, um
comprovante de residência, identidade e CPF dos cônjuges – tudo original. Como Emanuel e eu não temos filhos e nem
chegamos a comprar qualquer bem durável em conjunto, tudo foi muito simples.
O que chamou a atenção
de nossos simpáticos advogado e escrevente foi o clima amigável, até mesmo
carinhoso, com que tudo foi feito. Mas, isso não foi apenas uma cena para os
olhares curiosos dos amigos - definitivamente, não. A atmosfera de respeito e
cumplicidade continua até hoje. Emanuel mandou buscar as coisas dele para transportar
para o novo apartamento. Na noite anterior, eu mesmo havia empacotado cuidadosamente
cada coisa, desmontado uma estante que ele usa para estocar produtos, organizado as
roupas – algumas das quais eu mesmo havia lavado dias antes – e ainda ajudei a
transportar tudo isso até a caminhonete-baú que faria a mudança.
Separar nunca é fácil,
especialmente quando duas pessoas ainda se consideram tanto quanto nós dois um
ao outro.
No dia do divórcio,
dia 23 de maio de 2014, uma sexta-feira, fui assistir Praia do Futuro, um filme
parcialmente gravado na cidade-natal dele, e numa praia onde já estivemos
juntos. Belíssimo filme.
A vida continua, mesmo que sintamos por algumas perdas.
A vida continua, mesmo que sintamos por algumas perdas.
Emanuel me perguntou
se poderia manter o nome de casado. Não fiz qualquer objeção. Nunca tive
fetiche por essa coisa de nome do marido ou nome da esposa, dependendo do
casal. Gente não é gado para ser marcada, e ninguém é dono de ninguém. Tanto
meu advogado quanto o escrevente ficaram surpresos quando eu disse que o nome
foi herdado de uma portuguesada que já virou pó debaixo da terra e, portanto,
não poderia ter a menor noção do que acontece debaixo do sol. Como eles, eu
também me tornarei pó. O que é um sobrenome, então? Fomos pragmáticos: deu um
puto trabalho trocar documentação para agora ter que destrocar tudo de novo. Há
tanto mais para fazer na vida do que pagar taxas e enfrentar filas para se
submeter a mais burocracia ainda! Simplifiquemos a vida.
A única coisa que
deixei claro – e nisso Dr. Ricardo me ajudou bastante – foi que, uma vez
mantido o nome, ele não poderia mais muda-lo, exceto com a abertura de um novo
processo para solicitar a mudança – aí, sim, muito mais burocracia e muitas outras despesas. Emanuel continuou convicto. Eu permaneci indiferente sobre uma ou
outra possibilidade – manter ou mudar. Finalmente, ficou textualmente declarado
que Emanuel continua sendo Viula.
Tanto Dr. Ricardo
quanto Erichson ficaram surpresos com a postura de ambos os ex-cônjuges, e
disseram que nunca viram algo assim em processos de divórcio. Pelo contrário.
Segundo eles, casais heterossexuais arrancam os cabelos só em pensar que o nome
não será removido.
“Deixai os mortos
enterrarem seus próprios mortos.” Nós temos mais o que fazer. E fizemos.
Continuamos amigos. Cada um seguindo seu próprio caminho, mas nutrindo um
carinho especial um pelo outro. Afinal de contas, o que vivemos foi especial e o
foi durante SETE ANOS!
Assim sendo, saibam
todos e todas que estamos legalmente divorciados desde o dia 23 de maio de
2014, sem jamais termos trocado uma só farpa antes, durante ou depois dos
procedimentos cartoriais. Quando digo que foi o divórcio mais gay que meu
advogado já fez, não o digo por se tratar de dois homens, mas por ter sido o
mais alegre (gay=alegre), sem que nenhum dos dois pudesse dizer que estava
feliz por ser livre. Paradoxal? Sim, como quase tudo na vida.
Felicidade é poder
viver livre de scripts. Não precisamos ser macho e fêmea para casar. Quem pensa
que sempre tem que ser assim não passa de mais um reprodutor de tradições que
já nasceram mortas. Também não precisamos esperar até o dia em que pudéssemos
nos odiar para nos separarmos. Isso seria previsível demais; um filme repetido à
exaustão nos cartórios e fóruns. Razão e emoção deram-se as mãos e seguimos
respeitando a dignidade um do outro.
As pessoas continuam
perguntando: Como? Por quê? Pra quê? Mas, o que mais poderíamos dizer. O que
mais precisaríamos dizer? Para que tentar explicar motivos? Isso seria
desenterrar os mortos, mas o que queremos é cultivar a vida. Então, que venham
novas alegrias, novos amores, novos desafios e novas conquistas. Essa história,
porém, nunca deixará de ser uma boa lembrança, sob muitos aspectos.
Além disso, temos
orgulho – sem petulância ou arrogância – de termos agido com a mais pura
decência um para com o outro no momento em que consideramos ser o fim da linha
para nosso casamento. Já me divorciei de uma mulher e agora me divorcio de um
homem. Garanto que o segundo divórcio foi muito mais nobre que o primeiro. Em ambos, eu
agi com nobreza, ou seja, nunca usando de estratagemas que pudessem prejudicar a ex ou o ex. Digo, porém que meu divórcio de Emanuel foi mais nobre pelo
modo como ele agiu o tempo todo – com o mesmo altruísmo que eu. E o que mais
seria necessário?
Aos que nutrem homofobia para com os outros ou para consigo mesmos, um recado sem meias-palavras: seres humanos e suas relações são tudo a mesma merda. Não há garantias de espécie alguma. Tudo se resume em viver e morrer.
Aos que nutrem homofobia para com os outros ou para consigo mesmos, um recado sem meias-palavras: seres humanos e suas relações são tudo a mesma merda. Não há garantias de espécie alguma. Tudo se resume em viver e morrer.
Por isso, é melhor que nos cerquemos daquilo que pode nos dar alegria e
não do que nos imponha tristeza ao longo da vida, porque não há mistério algum na morte. Ela é
apenas o nome que se dá ao fim da vida. E se há um momento em que tudo deixa de
ter qualquer relevância, é exatamente aí quando o corpo definitivamente inerte
já não projeta coisa alguma, nem mesmo aquela noção de si e do outro a que
chamamos consciência – tão complexa que chega a ser capaz de pensar que possa
continuar existindo independentemente do corpo que a projeta.
A morte, que é o fim dessa
ilusão, não nos permite o luxo dessa última desilusão, uma vez que não havendo
mais consciência, é impossível se desiludir. Isso quer dizer que, exceto pelos
que não acreditam na sobrevivência da consciência à morte do corpo, a maioria
morre iludida.
Aí, muita gente se
pergunta: “para que viver se tudo isso é tão ilusório?” Minha resposta é
simples: “quando não há garantias, tudo é risco. Então, por que não correr riscos na
busca pela felicidade?” A vida é essa coisinha teimosa e aparentemente
irracional que insiste em avançar sem qualquer noção de finalidade ou
necessidade. Quem cria essas noções é nossa consciência viciada em construir
relações de causalidade para dar sentido aos estímulos que o corpo recebe das
interações entre suas próprias partes e das interações deste com outros corpos.
Resumindo, viver é o
que há enquanto vida houver. Vivamos! E
vivamos com alegria! Façamos o que estiver ao nosso alcance para a construção
de um mundo no qual as pessoas possam realizar biografias felizes, mesmo que muito tempo depois de termos batido as botas, porque essa é definitivamente a única
transcendência possível. E o que poderia ser mais desejável?
Substantivando uma história de
amor e separação.
Encontro.
Desejo.
Prazer.
Saudade.
Reencontro.
Entrosamento.
Sonho.
Compromisso.
Intimidade.
Comunhão.
Rotina.
Lealdade.
Decepção.
Perplexidade.
Tristeza.
Separação.
Solidão.
Superação.
Recomeço.
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