X-Men: Dias de um Futuro Esquecido - coisas que não podemos esquecer.

X-Men: Dias de um Futuro Esquecido
Por Sergio Viula
Demorei a ver o lançamento desse ano, mas dei sorte de ainda estar em cartaz no Largo do Machado. Finalmente, assisti “X-Men: Dias de um Futuro Esquecido”. Sou fã incondicional da obra criada por Stan Lee e Jack Kirby, mesmo não tendo o capital de conhecimento que os fantásticos nerds (ou geeks) já acumularam sobre personagens e enredos desde sua estreia nos Estados Unidos em setembro e 1963, graças à Marvel.
Entendo que o cinema pode simplificar e até modificar bastante o original, mas é preciso reconhecer também que a telona conseguiu elevar a turma de Xavier e de Magneto a um patamar absolutamente novo.
A rivalidade entre o grupo do Professor Xavier e o grupo de Magneto em boa parte da história serve para mostrar modos totalmente diferentes de lidar com os humanos não-mutantes e suas neuroses ameaçadoras de perseguição, experimentação e extermínio.
Pois bem. X-Men: Dias de Um Futuro Esquecido (no original, X-Men: Days of Future Past) apresenta questões extremamente relevantes: “o futuro não é garantido” (ou numa outra tradução ‘não está determinado); não podemos combater a violência gerada por extremistas com violência e discursos semelhantes; uma simples decisão pode desencadear ações e reações totalmente diferentes dependendo de qual seja ela; autopiedade e conformismo não mudam nada, e por aí vai.
Não vou tecer detalhes sobre o enredo, porque estes podem ser encontrados magistralmente dispostos aqui: https://pt.wikipedia.org/wiki/X-Men:_Dias_de_um_Futuro_Esquecido
Porém, gostaria de fazer alguns paralelos entre os pontos que destaquei no terceiro parágrafo e as lutas das minorias, especialmente das pessoas LGBT. Claro que essas ponderações podem ser aplicadas a quaisquer minorias aspirando ao direito de cidade.
1. “O futuro não é garantido” (ou numa outra tradução ‘não está determinado).
Tomando a tradução como ponto de partida, gostaria de chamar atenção para o fato de que direitos conquistados não podem ser descuidados. Eles precisam ser fortalecidos através da aplicação prática e da demanda por direitos que se desdobrem a partir deles.
Por exemplo, se o casamento entre pessoas do mesmo sexo já está garantido, que seja aplicado. Pelo menos 1.000 casais já o fizeram ao longo do primeiro ano da decisão do STF e da regulamentação do CNJ. Mas para que esse número cresça - o IBGE já identificou 60 mil casais de pessoas do mesmo sexo no censo - é preciso que os casais tenham orgulho próprio e coragem suficientes para assumirem sua relação pública e juridicamente. Casais que vivem no armário deixam de desfrutar desse direito e acabam não colaborando para traduzi-lo em biografia ou seja práxis.
Agora, tomando a tradução “o futuro não está determinado”, podemos fazer as seguintes inferências:
a) Não está determinado, portanto podemos construí-lo a partir de agora.
b) Seremos responsáveis pelo que fizermos dele. Que façamos o melhor, então. E o melhor será criar todas as condições necessárias para que as pessoas, sejam quais forem suas especificidades subjetivas, possam realizar biografias felizes e livres de qualquer tipo de coerção, desde que seus atos não impeçam terceiros de fazerem o mesmo.
2. Não podemos combater a violência gerada por extremistas com outras formas de violência e discursos semelhantes.
Pode até dar vontade de vez em quando. Muita gente LGBT já deve ter sentido vontade de esmurrar a cara de um propagador de discurso de ódio ou perpetrador de violência física ou simbólica. Vontade desse tipo pode até dar, mas tem que passar. O caminho que dará frutos saudáveis e duradouros é o do diálogo, tanto no nível do dia a dia - o nível pessoal, o que se materializa no círculo mais íntimo de familiares, amigos e conhecidos - como também no nível institucional, inclusive no Parlamento, às mesas de planejamento do Executivo e nos tribunais do Judiciário, nas universidades, bem como nos órgãos reguladores e representativos de profissionais especializados e dos trabalhadores em geral, etc.
E é bom que se diga que o diálogo travado nesse nível, com as ferramentas disponíveis, não impede – pelo contrário, inclui – as manifestações pacíficas, sejam enérgicas ou festivas, que celebrem a diversidade dos sujeitos e a igualdade de reconhecimento social, político e jurídico dos mesmos.
3. Uma simples decisão pode desencadear ações e reações totalmente diferentes dependendo de qual seja ela.
Sem dúvida, essa máxima pode e deve ser aplicada às nossas ações diárias - desde a escolha por alimentos mais saudáveis em detrimento de outros mais nocivos; até com quem desejamos compartilhar momentos de prazer ou mesmo uma vida inteira de compromisso; se queremos ser pais/mães ou não; a carreira que pretendemos seguir; e especialmente nossos votos que escolhem nas urnas os candidatos que ocuparão os cargos que compõem o cenário político brasileiro.
Esse ano é ano de eleições. Nosso voto poderá mudar para melhor ou para pior o que vemos aí, seja qual for a instância: federal, estadual, municipal, ou a esfera de poder – Executiva, Legislativa ou Judiciária. Mas não basta votar, tem que fiscalizar, pressionar, exigir aquilo que é direito nosso.
As decisões tomadas pelas organizações representativas da luta dos cidadãos LGBT por direitos iguais também podem mudar bastante o tabuleiro do jogo - para melhor ou para pior. Há que se perguntar que tipo de alianças elas fazem, com quem as fazem, por que as fazem. Se devem se alinhar a partidos específicos ou a pessoas que abraçam de verdade a causa da igualdade? Quando um partido sai, o que fazer se tudo se pautava de modo partidarista? Ignorar os partidos não é totalmente possível, mas trabalhar com eles pensando para além deles, sim. Pensar em políticas de Estado mais do que em meras políticas de governo - sempre transitório - é fundamental.
Até mesmo a decisão entre sair ou ficar no armário fará uma grande diferença para mais ou para menos, inevitavelmente. Aliás, essa também é uma questão posta no filme. Em mais de um momento da trama - especialmente no final - fica muito claro que os mutantes querem sair de seus esconderijos, deixar seus disfarces e terem o direito de viver autentica e harmoniosamente entre os não-mutantes: mais uma metáfora perfeita para a reflexão que coloco aqui.
Tem muita gente que ainda pensa e age como o Dr. Bolivar Trask (Peter Dinklage), dono das Indústrias Trask, gente que só consegue pensar em ‘nós versus eles’, que acha que não haverá paz enquanto houver diversidade, que o diferente tem que ser estudado para ser ‘curado’ ou exterminado. É desse material que são feitos preconceitos como a homofobia e a transfobia, dentre tantos outros em nossa sociedade.
É gente assim que usa os meios de comunicação em horários pagos para disseminar discursos de ódio e faturar alto a partir deles.
É gente assim que cria legislação anti-gay em países como Uganda, Rússia, Índia, e quer fazer o mesmo por aqui.
É gente assim que propõe terapias de cura para o que não é doença e quer usar pseudociência para corroborar suas próprias neuroses, muitas vezes motivadas por extremismo religioso, positivista, ou de outros ramos do conservadorismo. Aliás, foi esse conservadorismo que chegou ao ápice durante a ditadura militar, mas que infelizmente não se extinguiu com a abertura do país e sua redemocratização. Pelo contrário, permeia muito do pensamento de direita e de esquerda nesse país. Aqui, os liberais são liberais economicamente, mas no campo da moral são extremamente conservadores, retrógrados mesmo. E com isso quero dizer que aplicam uma moral enraizada em pressupostos religiosos em vez de adotarem uma moral crítica e uma ética do reconhecimento, da afirmação e da celebração das diferenças que, quando vivenciadas sem a sombra de ameaças de qualquer espécie, são a própria liberdade em ato. Afinal, liberdade que somente se aspira não é liberdade, é sonho. A liberdade de fato é aquela que se materializa no direito de ser como se é ou como se deseja ser, com tudo o que isso significa.
4. Autopiedade e conformismo não mudam nada.
Reclamar que as pessoas não nos entendem, não nos querem por perto, não nos respeitam não vai mudar nada. Dizer que vai ser sempre assim só ajuda a engessar as coisas que deveriam ser transformadas.
Na verdade, diferente do que foi colocado acima, muita gente nos entende; nos quer por perto, sim; e nos respeita de fato.
Além disso, muita coisa já mudou. E só mudou por causa dos esforços de pessoas LGBT e não-LGBT que entendem que nossas subjetividades, com toda a diversidade que lhes é característica, enriquecem a experiência da vida, e que toda tentativa de uniformização, padronização, normatização de nossa subjetividade empobrece e mata.
Nos últimos 40 ou 50 anos, a comunidade gay internacional fez avanços nunca antes experimentados em tantos campos e em tão diferentes culturas. Diversos fatores colaboraram para isso, mas nenhum deles poderia substituir a decisão de não mais nos escondermos, de não mais tentarmos nos adequar a padrões arbitrariamente impostos, mas exigirmos o respeito que nos devido, bem como a todo ser humano, independentemente de suas diferenças incidentais ou subjetivas. E esse ‘independentemente’ não significa que elas estejam de fora. Não é respeito, apesar de... É respeito e ponto.
Os X-Men sempre fecundam minha imaginação e me instigam a fazer conexões com o mundo ao meu redor. Espero que você também se sinta desafiado a ser a mudança que você quer ver no mundo, e que essa mudança seja do tipo que amplia as condições de existência, e não do tipo que as reduz.
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