Tecnologia e Ativismo LGBTQIA+: entre Proteção e Vigilância
Quando a proteção vira vigilância: o dilema das IAs contra o ódio
Por Sergio Viula
No dia 24 de outubro de 2025, foi divulgada a notícia de que o governo brasileiro implementou uma plataforma de inteligência artificial chamada “Aletheia” (em grego: verdade ou desvelamento da verdade), criada para monitorar redes sociais, blogs e sites em busca de discurso de ódio e desinformação contra pessoas LGBTQIA+.
A iniciativa, segundo o governo, está alinhada à legislação que criminaliza a homofobia e a transfobia desde 2019, buscando proteger a comunidade de ataques digitais cada vez mais sofisticados. À primeira vista, é uma medida que soa positiva — afinal, o combate ao ódio online é urgente.
Caso Aletheia: Proteção digital ou vigilância estatal?
Recentemente, a ONG Aliança Nacional LGBTI+ relatou que, em apenas nove dias de testes com a nova plataforma de monitoramento digital do governo, foram identificadas 497 postagens com potencial discurso de ódio e 61 notícias falsas. A ferramenta analisa redes sociais, artigos opinativos e padrões de desinformação, com foco em proteger a comunidade LGBTQIA+.
O jurista Giuliano Miotto alerta para o risco de autocensura e controle de narrativas. Segundo ele, a simples existência de um sistema estatal de monitoramento pode inibir o debate público. Além disso, há perigo de silenciamento seletivo, especialmente de vozes críticas à ideologia de gênero. Para Miotto, a atuação do Estado só é legítima quando há comprovação de crime, como incitação à violência ou desinformação coordenada.
O governo pretende expandir a ferramenta para monitorar outras “ameaças”, sob supervisão de Symmy Larrat, ativista trans e chefe da Secretaria Nacional dos Direitos das Pessoas LGBTQIA+. A proposta é transformar o projeto em política pública permanente, mas a falta de chamamento público para outras entidades e o monitoramento de 1.500 perfis públicos, incluindo autoridades e influenciadores, levantam preocupações sobre transparência, critérios de seleção e responsabilização.
Este caso ilustra o paradoxo entre proteção e vigilância:
Por um lado, existe a necessidade legítima de combater o ódio online e proteger minorias vulneráveis.
Por outro, sem salvaguardas democráticas — como auditoria independente, controle civil e transparência — uma ferramenta de proteção pode se tornar instrumento de repressão.
A questão central não é apenas o que a tecnologia faz, mas quem a controla, com que critérios e com que garantias. Sem isso, o risco de abuso é real — e histórico.
O outro lado da moeda
Apesar do objetivo nobre, especialistas em ética digital e direitos humanos alertam para riscos sérios de uso indevido. Ferramentas de monitoramento, especialmente as baseadas em inteligência artificial, podem ser facilmente reconfiguradas para vigiar, censurar ou perseguir as mesmas pessoas que deveriam proteger — tudo depende de quem controla o sistema.
Imagine um cenário em que um governo autoritário ou de extrema direita redefine o conceito de “discurso de ódio” para incluir críticas legítimas a políticas públicas ou a líderes políticos. O que hoje serve para proteger a comunidade LGBTQIA+ poderia, amanhã, ser usado para mapear ativistas, coletivos, jornalistas e influenciadores, rotulando-os como “subversivos” ou “imorais”.
Não seria a primeira vez: tecnologias de vigilância e ferramentas digitais já foram instrumentalizadas por regimes para reprimir dissenso e atentar contra direitos civis.
O dilema ético
Estamos diante de um paradoxo:
De um lado, a necessidade urgente de combater o ódio online e proteger minorias.
De outro, o perigo de que essa “proteção” sirva de pretexto para a vigilância e repressão digital.
Organizações de direitos digitais e ONGs têm sido explícitas: governos devem adotar princípios de direitos humanos ao projetar, adquirir e usar sistemas de IA governamental — incluindo avaliações de impacto, auditorias independentes e mecanismos de recurso para os afetados.
Sem mecanismos de transparência, auditoria pública e controle civil, qualquer tecnologia estatal de monitoramento pode se tornar um instrumento de autoritarismo.
Relatórios e declarações de organizações de diretos humanos também ressaltam que a implantação de sistemas automáticos de vigilância sem salvaguardas cria um accountability gap — uma lacuna de responsabilização para decisões que afetam vidas.
A luta contra o ódio e a desinformação é fundamental — mas deve ser travada com responsabilidade democrática e garantias de direitos humanos. Do contrário, a mesma IA criada para proteger poderá, no futuro, ser usada para silenciar.
Em tempos de avanços tecnológicos acelerados, é preciso lembrar: não basta confiar na máquina — é preciso questionar quem a programa e com que intenção.
O falso “fim do LGBTQIA+” e a armadilha da divisão
Por Sergio Viula
No dia 28 de setembro de 2025, a Gazeta do Povo publicou uma matéria assinada por Gabriel Sestrem com o título: “Fim do LGBTQIA+: novo movimento global promove união apenas entre LGBs e rompe com trans”. O texto trata da criação da LGB International, uma organização que tenta separar gays, lésbicas e bissexuais das pessoas trans, não binárias e outras identidades de gênero.
À primeira vista, pode parecer apenas mais uma sigla ou mais um debate sobre identidade. Mas, na prática, trata-se de um ataque direto à unidade que sempre foi fundamental para a conquista de direitos da comunidade LGBTQIA+.
A falácia da separação
O argumento central da LGB International é de que seria preciso “voltar às origens”, defendendo apenas a orientação sexual (L, G e B) e deixando de lado questões de identidade de gênero (T, Q, I, A e +). Essa narrativa, no entanto, é contraditória e perigosa.
Pessoas trans também podem ser gays, lésbicas ou bissexuais. Não há como traçar uma linha divisória entre sexualidade e identidade de gênero que não caia em arbitrariedades. Excluir pessoas trans é, portanto, excluir parte de nós mesmos.
A retórica do “sexo biológico”
Outro pilar desse movimento é a defesa de um “sexo biológico imutável”, acompanhado da negação da identidade de gênero. Esse discurso não é novo: ecoa ideias usadas historicamente por setores religiosos fundamentalistas e políticos conservadores para negar a diversidade humana.
A ciência já demonstrou que sexo não se resume a um binarismo rígido entre macho e fêmea. Há variações cromossômicas, hormonais e anatômicas que provam a complexidade biológica. Ignorar isso para impor uma visão simplista é uma escolha política, não científica.
O uso de mentiras e pânicos morais
A LGB International também recorre a falácias que já conhecemos bem. Afirma que a pauta trans “apaga” a pauta LGB, quando, na realidade, pessoas trans também têm orientação sexual e sua luta não anula a de gays, lésbicas e bissexuais. Pelo contrário: nossas bandeiras se complementam.
Outro exemplo é a difusão da mentira de que crianças trans seriam submetidas a cirurgias irreversíveis. Isso não existe. O que há é acompanhamento psicológico e, em alguns casos, bloqueadores de puberdade — que são reversíveis e usados justamente para dar tempo ao jovem de amadurecer sua identidade.
Esse tipo de desinformação não é ingenuidade: é estratégia. Assim como no passado se espalhavam falsas acusações de que gays eram “predadores” ou “ameaças às crianças”, hoje se tenta criar pânicos morais em torno das pessoas trans.
Importando o discurso do ódio
Não é coincidência que esse movimento repita narrativas semelhantes às de figuras como J.K. Rowling na Europa e políticos conservadores nos Estados Unidos. Trata-se de uma importação de discursos transfóbicos que tentam se instalar no Brasil para dividir e enfraquecer nossa luta.
O mais irônico é que, ao tentar se separar, parte desses gays, lésbicas e bissexuais da LGB International esquece que sempre foram alvo da mesma intolerância que agora reproduzem. Para fundamentalistas e extremistas, pouco importa se somos gays “respeitáveis” ou pessoas trans: todos continuamos sendo “viados”, “anormais”, “pecadores”.
A verdadeira luta
Dizer que os direitos das pessoas trans ameaçam os direitos LGB é falso. Nenhum direito conquistado por gays, lésbicas ou bissexuais foi perdido porque pessoas trans avançaram. O que realmente ameaça nossas vidas são a intolerância religiosa, a violência política e a ignorância deliberada.
A luta é pela liberdade plena da expressão sexual e de gênero, desde que não envolva abuso. Dois adultos têm o direito de amar, se identificar e se expressar como quiserem. O que deve nos unir é a busca por respeito, dignidade e cidadania.
Conclusão
A tentativa de fragmentar o movimento LGBTQIA+ com a sigla “LGB” é uma armadilha que só interessa a quem nos quer de volta ao armário. A história mostra que nossa força está na unidade, não na divisão.
Gays, lésbicas, bissexuais, trans, travestis, não binários, intersexuais, assexuais e todas as outras identidades temos algo em comum: a luta pelo direito de ser quem somos. E é juntos que conquistaremos um futuro de liberdade e respeito.
Conheça a cartilha TODAS AS MULHERES - Dignidade, Cidadania e Direitos Humanos para Travestis e Mulheres Trans:
RESUMO Celebrando os 30 anos da Declaração e Plataforma de Ação de Pequim e o ano do 50º aniversário do Dia Internacional da Mulher, marcos globais pelos direitos humanos das mulheres em todo o mundo, o Ministério das Mulheres e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) apresentam o guia “Todas as Mulheres: Dignidade, Cidadania e Direitos Humanos para Travestis e Mulheres Trans”.
O material é decorrência do princípio fundamental da igualdade e da não- discriminação, sinal do reconhecimento, de que travestis e mulheres trans são mulheres e, portanto, devem ter seus direitos humanos plenamente reconhecidos e garantidos. É urgente assegurar participação política, reconhecimento social e acesso às políticas públicas de forma equitativa. Em um cenário marcado pela exclusão e pela violência, valorizar sua presença, ouvir suas vozes e garantir seus direitos é um passo fundamental para uma sociedade mais justa, diversa e verdadeiramente democrática.
Este guia, elaborado com o apoio da Entidade das Nações Unidas para a Igualdade de Gênero e o Empoderamento das Mulheres (ONU Mulheres) e da campanha do Alto Comisssariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos (ONU Direitos Humanos) Livres & Iguais, apresenta os fundamentos legais da proibição da discriminação contra travestis e mulheres trans, delineia parâmetros de direitos humanos para protegê-las dessa discriminação, em diversos âmbitos da vida, e sistematiza algumas das principais conquistas recentes e recomendações de mecanismos internacionais de direitos humanos aplicáveis ao Brasil.
Esperamos que este material possa ser usado como referência para inspirar a produção de uma série de publicações temáticas que discutam e apresentem a diversidade de Mulheres, suas lutas e desafios. Esperamos, também, que este conhecimento influencie empresas, legislativos, o sistema de justiça, movimentos sociais, tomadores e tomadoras de decisão, enfim, todas as pessoas, a agir - e continuar agindo - pelo reconhecimento, proteção e fruição dos direitos humanos das travestis e mulheres trans, em linha com o direito internacional dos direitos humanos e o ordenamento jurídico brasileiro.
Nikolas Ferreira é condenado por transfobia: uma vitória contra o ódio disfarçado de opinião
Nikolas Ferreira achou que
poderia cometer crime de transfobia e escapar ileso porque estava na Câmara dos Deputados. Ledo engano.
Vai pagar caro.
Nesta terça-feira (29), o Tribunal de Justiça do Distrito Federal e dos Territórios (TJDFT) condenou o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG) a pagar R$ 200 mil por dano moral coletivo, após declarações transfóbicas feitas no plenário da Câmara dos Deputados, em 2023. A decisão representa um marco importante na luta contra o discurso de ódio disfarçado de liberdade de expressão.
Durante uma sessão no Dia Internacional da Mulher, o parlamentar usou uma peruca e afirmou que "as mulheres estavam perdendo seu espaço para homens que se sentem mulheres". A encenação e as palavras não foram apenas ofensivas — foram um ataque direto às pessoas trans, especialmente às mulheres trans, já tão marginalizadas e violentadas diariamente no Brasil.
A juíza Priscila Faria da Silva foi clara ao afirmar que o deputado extrapolou os limites da liberdade de expressão. Em sua decisão, escreveu que isso ocorre “quando o discurso é utilizado para praticar ou incitar conduta criminosa, com o único objetivo de ofender, ou mesmo para difundir o ódio contra grupos vulneráveis”. Ela acrescentou que as falas de Nikolas “descredibilizam a identidade de gênero assumida pela população transsexual e insuflam a sociedade a fazer o mesmo”.
A defesa do deputado alegou que suas palavras estavam protegidas pela imunidade parlamentar, um direito constitucional que garante aos parlamentares a liberdade de opinião dentro do exercício do mandato. No entanto, como tem sido cada vez mais reconhecido pela Justiça, a imunidade não é um salvo-conduto para discurso de ódio.
Este não é um caso isolado. Nikolas Ferreira tem um histórico de declarações misóginas, LGBTfóbicas e desinformação deliberada. Ele se elegeu com base no discurso ultraconservador e performático, e segue explorando as redes sociais como palanque para atacar minorias e ganhar engajamento.
A condenação de R$ 200 mil, embora ainda caiba recurso, é uma sinalização importante: o Brasil não pode mais tolerar a transfobia institucionalizada. Quando figuras públicas atacam a dignidade de pessoas trans, o impacto vai muito além de uma fala infeliz — alimenta a violência nas ruas, o abandono familiar, o desemprego e o assassinato em série de pessoas trans no país que mais mata essa população no mundo.
O Blog Fora do Armário celebra essa vitória judicial, mas segue em alerta. Precisamos continuar denunciando, educando e cobrando posicionamentos firmes de instituições e autoridades. A transfobia não é opinião — é crime, é violência, e deve ser combatida com todas as ferramentas do Estado de Direito.
No último domingo (13), a ativista e influenciadora trans Iza Potter, de 39 anos, foi brutalmente agredida no prédio onde mora, na região da Bela Vista, em São Paulo. O caso, registrado por câmeras de segurança, é mais uma expressão cruel da transfobia estrutural que assola o Brasil.
Segundo o relato da própria Iza, tudo começou após ela conhecer o agressor em um evento e convidá-lo para sua casa. Após relações sexuais consentidas, o homem se recusou a ir embora e, diante da insistência da influenciadora para que ele deixasse o local, passou a agredi-la com socos, puxões de cabelo e rasgou suas roupas. Tudo isso foi registrado em vídeo.
“A transfobia não é só sobre não gostar de pessoas trans. É também sobre se relacionar com pessoas trans e depois bater”, desabafou Iza em suas redes sociais. Ela prestou queixa por lesão corporal, passou por atendimento médico e pelo IML. O agressor, de 32 anos, fugiu antes da chegada da polícia e até o momento não foi encontrado. Iza divulgou imagens dele nas redes pedindo ajuda para identificá-lo.
O caso de Iza Potter escancara uma realidade revoltante: o Brasil continua sendo um dos países que mais mata pessoas trans no mundo. E muitas dessas violências acontecem dentro dos lares, entre quatro paredes, e têm como pano de fundo a fetichização, a desumanização e a rejeição à identidade trans — especialmente quando essas mulheres se posicionam com firmeza, como fez Iza.
Estar com uma pessoa trans não é um ato de coragem, nem de rebeldia. É um ato comum de afeto, desejo e escolha. Mas usar o corpo de uma mulher trans para descarregar ódio, frustração ou vergonha é um crime. E deve ser tratado como tal.
O Fora do Armário se solidariza com Iza Potter e reforça: transfobia mata. Seja por espancamento, seja pelo silêncio, seja pela omissão das autoridades. Que a justiça seja feita. E que a visibilidade trans venha acompanhada de respeito e segurança.
Muita gente está abismada com a série Adolescência na Netflix como este crime fosse a exceção, algo novo e surpreendente. Não é. Veja por quê.
Por Sergio Viula
Hoje, vamos conversar sobre uma coisa que está na cabeça de muita gente por causa da série Adolescência, produzida pela Netflix, que fala sobre um jovem considerado um incel.
O que é um incel?
Para começar, incel é o indivíduo que é celibatário involuntariamente. Ele não quer ser celibatário, mas o é por força das circunstâncias. Na verdade, essa palavra foi criada por uma mulher que se sentia frustrada porque não conseguia um parceiro. Pasmem, mas isso foi na década de 90. Ela se dizia, então, uma celibatária contra a vontade. Talvez até de uma forma divertida. Posteriormente, porém, esse termo ganhou os fóruns da Internet – alguns até bastante esquisitos, bem underground mesmo – e passou a caracterizar aqueles homens que se sentem frustrados porque, segundo eles, não conseguem sexo, e culpam as mulheres, dizendo que elas têm expectativas muito altas, que são muito independentes e muito exigentes, e que geralmente querem caras bem-sucedidos. Na visão deles, bem-sucedidos seriam os caras bonitos e cheios de dinheiro.
Bom, para começar, quem não quer um marido desses, né? Mas não é sobre homens desejáveis que eu quero falar. Na realidade, o que acontece é que os incels geralmente apresentam essa tendência para a autovitimização. Eles acreditam que são vítimas do sistema – um sistema, segundo eles, corrompido por causa do feminismo, ou seja, da luta das mulheres por direitos iguais. Eles também têm uma visão fatalista da realidade, uma vez que acreditam que há coisas fora do controle deles que determinam a solidão na qual estão mergulhados. Esses fatores alheios à sua vontade seriam sua própria genética e sua aparência física. Outro fator fora do controle deles seria a superficialidade das mulheres, que, segundo eles, é uma das características femininas que dificultam a interação deles com o sexo feminino e a com a obtenção de relações sexuais. Lembrando que sexo é o verdadeiro objetivo final de um incel. Eles não querem manter com as mulheres uma relação multifacetada e profunda entre indivíduos em posição de igualdade; eles querem dominá-las.
Quando um incel vê uma mulher, o que ele mais quer é transar com ela. E o que ele mais odeia é justamente o fato de não conseguir transar com ela.
A terminologia incel
Os incels usam terminologias inglesas tanto para falar sobre os homens que têm vantagem como para se referir às mulheres que supostamente não dão a mínima para a existência deles. São termos como, por exemplo, "Chad". Estes são os homens considerados geneticamente privilegiados e altamente desejáveis. Por outro lado, "Stacy" seriam as mulheres que só pensam em se relacionar com os "Chads" – os homens de cuja aparência elas gostam e em cujo sucesso elas têm interesse.
Os incels acreditam também que os homens com essa aparência têm mais chances de sucesso e, consequentemente, também têm mais chances de conquistar mulheres. Afinal, eles são belos e por isso acabam sendo bem-sucedidos.
"Black pill" seria essa visão extremamente negativa, pessimista, de que a aparência é o único valor para a escolha de um parceiro. E aí, vocês podem pensar logo em "red pill", não é? Esse termo agora anda bem famosinho também. “Red pill” é essa ideia de que alguns homens "acordaram" para o fato de que estão vivendo num mundo invertido, ou seja, um mundo em que as mulheres dominam e humilham os homens em vez do contrário.
Pare e pense sobre isso. Essa premissa é estúpida por dois motivos: Primeiro, a mulher não está dominando o homem nem o humilhando quando apenas busca emancipação e autonomia. Segundo, o homem não é naturalmente - ou por ordem divina - superior à mulher em nada. Tudo isso é mito.
A verdade é que os homens sempre se sentiram muito “garanhões”, verdadeiros reprodutores. Mas as mulheres hoje em dia não precisam deles nem mesmo para isso. Elas podem ter filhos sem precisar se deitar com quem quer que seja. Elas podem ter filhos por inseminação artificial, ou por acordos com homens da confiança delas, que podem fazer um filho e deixar a criação deste por conta delas, justamente porque elas optaram por isso. Elas também podem adotar. Enfim, existem mil métodos para que uma mulher tenha filhos, se quiser, sem precisar se casar com quem quer que seja. E ela tem todo o direito de ter ou não ter filhos, com ou sem sexo.
Religião como produtora e mantenedora do machismo
A frustação maior desses caras é que eles acham que a mulher existe para servi-los. Isso também é um reflexo dessa cultura judaico-cristã e até islâmica, que é desgraçadamente misógina, que coloca a mulher como serva do homem. O homem seria o cabeça do lar, o senhor da mulher. E existem passagens absurdas, inclusive no Novo Testamento, que falam sobre isso - que o homem é a cabeça da mulher, assim como Cristo é a cabeça da igreja.
Ora, se Jesus pode mandar na igreja como ele bem entender, então o homem pode mandar também na mulher. E se a igreja deve ficar submissa a Cristo, a mulher deve permanecer submissa ao homem. Quem nunca ouviu isso que me atire a primeira pedra?
Icels precisam de ajuda, mas não os subestime
Um incel que ainda não chegou às vias de fato no crime, pode e deve receber atendimento psicossocial em liberdade, é claro. Mas existem incels que já violentaram e até mataram mulheres. Estes devem receber esse tratamento já encarcerados, porque cometeram crimes. Não podem ficar inseridos no meio social e nem ter acesso algum à Internet. Vale ressaltar que a violência cometida por esses caras pode ser de vários tipos: violência verbal, simbólica, sexual, chegando à tortura e ao assassinato, como foi o caso do garoto que, lá na série da Netflix, mata a colega de escola a facadas. Ainda que isso possa parecer a exceção, isso é, na verdade, o resultado final de um longo processo de desumanização da mulher e da redução de sua existência a servir o homem em tudo, inclusive sexualmente, querendo ela ou não.
Os estereótipos criados pelo machismo são o estopim
O machista gosta de pensar que as mulheres têm que ser servas submissas, e que toda mulher que não se encaixa nesse perfil é fútil, interesseira, vulgar, e assim vai: "Não se dá o respeito", como eles adoram dizer por aí. E, pior, algumas mulheres, imbecilmente, repetem isso.
Não! Isso está estupidamente errado. Toda mulher merece respeito, e nenhuma mulher é obrigada a fazer seja lá o que for para ter o seu direito à dignidade garantido. Ela pode tomar as decisões que bem entender. E se essas decisões implicarem em quebra da lei, ela será punida nas bases da lei, assim como o homem. Ela terá oportunidades idênticas ao homem na sociedade, desde que essa sociedade seja saudável. Se não for saudável, equilibrada e justa, então essas mulheres não terão as mesmas oportunidades e sua luta por emancipação estará mais do que justificada. Isso é o que vemos em sua pior configuração no Afeganistão, mas não sew enganem: O Brasil ainda está muito aquém do que devia ser nesse quesito.
Os homens em geral, mas os incels, principalmente, muitas vezes, reduzem as mulheres à categoria de um prêmio. Isso fica muito claro quando homens com dinheiro e poder oferecem coisas muito boas e caras a certas mulheres interesseiras. Assim que elas aceitam essa barganha, elas se tornam seus troféus. Aliás, se você está preocupado em ter uma boa relação, devia ficar feliz que mulheres assim já sejam eliminadas do seu leque de opções, porque elas vão atrás desses trastes imprestáveis, geralmente por interesse “comercial”. Você devia ficar feliz por não cair nessa armadilha, pois essa mulher que não está disponível para você significa, na verdade, menos um problema na sua vida, meu caro.
Todavia, isso não dá direito a um incel ou qualquer outro homem de cometer um crime contra essa mulher nem de atacar aquele que a tem como parceira, simplesmente por não ter conseguido o que este agora exibe orgulhosamente por onde passa. De um modo geral, nenhum ato de violência que não seja em legítima defesa e com força proporcional pode ser justificado.
Vale ressaltar que toda essa neurose incel começa com a cultura da masculinidade tóxica. E aí eu quero colocar a palavra machismo bem grande aqui: MACHISMO MATA. Isso não é novidade. Sempre foi assim com os machistas. Machistas são homens que acham que as mulheres estão a seu serviço e, portanto, têm que fazer o que eles querem.
Vocês estão muito impressionados com adolescentes numa série, mas os homens estão matando mulheres que não querem namorar com eles faz tempo. Eles as matam só porque elas terminaram um relacionamento ou porque se recusaram a começar. Por tudo e por nada, elas se tornam alvos da misógina desses machos escrotos. A torto e a direito, esses caras estão entrando em lojas e matando; em shoppings e matando; em estacionamentos e matando; na casa delas e matando; envenenando mulheres que nem imaginam que uma gentileza aparente esconde um plano macabro. Teve um que deixou o gás ligado para que a mulher morresse intoxicada, enquanto ele tinha tempo de escapar da cena do crime. E para que um bandido desses faça isso com a própria companheira, basta que ela esteja dormindo ou tenha sido dopada. Assim, quando o “incidente” for investigado, ainda vai ter gente achando que se trata de um acidente causado pela própria mulher por descuido. O azar desses homens é que, às vezes, há dispositivos de segurança que eles ignoram e que podem gravar o que eles estão fazendo, como foi o caso desse cara, desse imbecil inútil, que foi preso depois de matar a mulher intoxicada por gás doméstico.
Mas tudo isso vem da cultura machista, do ressentimento contra a mulher como pessoa autônoma. Por isso, o ódio desses homens contra o feminismo. Eles desprezam o direito da mulher à viver emancipada, de ser dona de si mesma. A igualdade de gênero no sentido de que tanto o macho quanto a fêmea devem ter as mesmas oportunidades, e que não há motivo para se fazer distinção entre eles é algo que esses machistas odeiam.
O machismo, que é a ideia de que o homem é superior à mulher, gera a misoginia, que é o ódio à mulher e a tudo o que é feminino. Essa misoginia pode se tornar o gatilho para o crime. Em poucas palavras: O machismo pensa a mulher como inferior, mas a mulher não se submete. Então, ele passa a odiá-la, e para se livrar do objeto do seu ódio, ele pode chegar a matá-la.
Se a mulher não se submete a esse tipo de homem, ele a ameaça e até assassina. Se ela se submete, passa a viver numa relação tóxica - o que não a ajuda, de modo algum, a escapar da opressão e dos maus tratos domésticos.
O macho heterossexual e o macho homossexual
Agora, uma coisa que é muito curiosa é a diferença entre esse tipo de homem heterossexual e os homens que não o são. Vamos recortar aqui esses machistas misóginos que acham que a heterossexualidade é a norma e que, por isso, toda mulher tem que ser dele.
Mas, antes, vale abrir um parêntese aqui: A mulher lésbica.
Esses machos misóginos são lesbofóbicos. Eles acreditam que a mulher lésbica é assim por falta de macho que a dobre. A partir daí, basta que ele dê mais um passo nessa neurose para concluir que ele próprio poderia ser o “remédio para o problema dela” - problema que ele inventou, porque ser lésbica não é problema algum, exceto na cabeça doentia dele e de outros imbecis como ele. Esse macho adoecido pelo machismo pode inclusive violentá-la na expectativa de que depois de conseguir o que ele verdadeiramente deseja - a gratificação sexual -, ela passe a gostar da “fruta” que ele tem para oferecer, mas não é isso que acontece: A mulher lésbica violentada é uma mulher traumatizada, assim como qualquer mulher. Pode, inclusive, sofrer mais por nunca ter desejado homem algum, para começo de conversa.
Retomando a questão do homem heterossexual machista em contrayst com o homem homossexual, note que quando um gay quer um homem para chamar de seu, ele o conquista por outros meios. Ele recorre à sedução, a um papo legal, a uma troca de fotos, ou a alguma coisa que vai fazer com que esse homem deseje ficar com ele. Até mesmo uma passada de mão aqui ou ali porque o cara está dando mole para ele. Tipo, o cara está olhando, está fazendo gestos como “pega aqui, pega ali”. Aí, ele vai lá e pega, e aí as coisas acontecem. Nunca é algo como o que um incel e outros machistas fazem com as mulheres. Um gay não vai pensar algo do tipo: "Este homem me deve isso porque ele foi feito para esse propósito. Ele foi criado para mim". E isso se dá porque não existe essa cultura na cabeça do homossexual. Não existe essa ideia de que um homem foi feito com o propósito de ser dele, ou que ele foi feito com o propósito de pertencer ao outro. Não. Ele entende que as pessoas vão ser o que são: Podem ser amantes dele, podem não ser, podem nem sequer gostar daquilo que ele tem para oferecer, e não tem nada de errado com isso. Ele sabe disso e, mesmo sendo vilipendiado, humilhado, pisado desde pequenininho, às vezes já dentro de casa pelos familiares, ele não cresce para se tornar um frustrado ao ponto de querer matar alguém porque não lhe correspondeu aqui ou ali. Isso é curioso, porque se tudo se resumisse a uma relação entre violência/rejeição e produção de mais violência, os homens gays seriam os maiores assassinos do mundo. E não o são!
O que poderia ser a razão para essa diferença, então?
Uma possível razão para isso, e que pode ser uma forma de explicar por que as coisas costumam acontecer assim, é que muitos gays aprendem a lidar com a frustração oriunda da rejeição desde pequenos. Assim, eles são obrigados a encontrar caminhos de sobrevivência que não passem pelo extermínio do outro, mas, sim, que passem pela emancipação de si mesmos. Eles pensam em ser independentes, ter um bom emprego, conseguir sua casa - um canto onde possam viver suas vidas sozinhos ou com aquelas pessoas que gostam deles e vice-versa.
Então, é muito curioso como a cultura do machismo faz mal a mulheres heterossexuais, a homens gays, bissexuais e por aí vai. Faz mal, especialmente, às mulheres trans, porque esses homens, muitas vezes, acham que uma mulher trans é um homem querendo enganá-los. Eles se fixam nessa ideia ridícula do engano o tempo todo, como se essa mulher trans quisesse ludibriá-los. Porém, a verdade é que uma mulher trans é apenas uma mulher trans - se você gosta dela, fique com ela, se ela quiser ficar com você, é claro. Se você não gosta, não fique com ela. E se ela não quer ficar com você, respeite a decisão dela e não faça nada. Apenas pegue o caminho da roça e vá embora.
Ah, e não se esqueça: transexualidade não tem nada a ver com orientação sexual. Pessoas trans podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, etc. em seu desejo/afetividade. Então, tem mulher trans que não gosta de transar com homem e também tem homem trans que não gosta de transar com mulher. Não se precipite em sua conclusões baseadas em estereótipos hetero-cisnormativos.
Plantado em solo religioso
A verdade é que tanto graças ao cristianismo como também ao judaísmo e ao islamismo, só para citar os três maiores monoteísmos, o machismo e a misoginia se tornaram insuportáveis. Em outras religiões, o machismo também existe, mas nenhuma é tão meticulosamente descarada nessa estrutura infame quanto essas três vertentes.
Então, quer assistir à série? Assiste à série! Mas não pense que isso é alguma novidade. E não pense que porque esse garoto fez isso mais cedo, ele é pior do que os homens que vão fazer isso mais tarde. Alguns homens vão fazer isso aos 25 ou 30 anos. Esse garoto fez ainda na adolescência. Porém, todos eles estão fazendo pelo mesmo motivo: machismo patriarcal, misógino, antifeminista, homo-transfóbico, que não consegue entender que não há nada de superior num homem por ele ser homem cisgênero e hétero. Por isso mesmo, a mulher não é inferior em nada, e um homem sexodiverso também não. Uma pessoa transgênera, seja ela quem for, também não é inferior a esses supostos machos alfa. Essa hierarquia só existe na cabeça dessa gente adoecida por tais ideologias sexistas alimentadas pela igreja, a família e a escola - para ficar em três aqui. Quando o imbecil compra esse discurso e o alimenta com coleguinhas idiotas como ele, isso não tem como acabar bem.
Então, fica aqui minha contribuição para esse debate. Meu pensamento é direto e simples. Você pode até pensar que é uma análise rasa. Eu não dou a mínima, porque o que acabo de expor é perfeitamente verificável, e não tenho visto as pessoas falarem sobre isso do modo que eu acabo de falar aqui, inclusive com esse viés que dialoga com a sexodiversidade e com a transgeneridade.
Internet e pornografia
Abram o olho! Entendam que a Internet ajudou a piorar isso tudo, justamente por causa desses fóruns.
A pornografia também pode ser uma ferramenta para a produção dessas neuroses. Antes de concluir, deixe-me falar sobre isso.
Por que digo que a pornografia pode estimular isso?
Antes de mais nada, já está completamente errado que uma criança pequena ou adolescente seja exposto à pornografia, mas pode ser muito pior quando não se trata apenas da relação entre duas pessoas no sentido mais comum dessa transa. Existem coisas, muitas vezes, absurdas, incluindo estupros, ainda que sejam apenas simulados. E é claro que tudo pode ser apenas encenação, mas o impacto disso sobre uma mente infanto-juvenil é desastroso.
Tem todo o tipo de coisa: Estupros, sadismo, submissão extremamente humilhante, etc. Não se trata sequer de uma relação sexual nos moldes mais tranquilos - o que já seria ruim, porque crianças e adolescentes não deveriam ter acesso a isso. Mas, a coisa é bem pior, porque são comportamentos abjetos, tipo homem e mulher transando e comendo bosta ou homem mijando em cima da mulher ou a mulher mijando em cima do homem. E aí, cá entre nós, se você tem esse fetiche, o problema é seu. Faça o que você quiser com quem aceitar, mas é inaceitável que uma criança ou adolescente veja isso.
Portanto, abra o olho com seu adolescente e com você mesmo. Não alimente o monstro que pode haver em você sem que você sequer imagine. E não alimente os monstros que podem existir na sua família e ao seu redor. Não estou dizendo que eles são monstros ainda, mas podem se tornar. Qualquer pessoa pode! Se não agimos assim é porque desenvolvemos barreiras que têm suas raízes na empatia. E baseados na empatia, nós construímos um sistema moral maior, mais elevado, que inclui o respeito a essas diferenças. A diferença está juntando em nos colocamos em pé de igualdade com o outro. É isso que machistas e misóginos de todos os tipos não fazem. Podemos ser diferentes em muitos sentidos, mas não em grau de importância, valor ou dignidade.
Homem, mulher, hétero, LGBT, cisgênero ou transgênero, branco, preto, seja qual for a cor, não existe diferença na hierarquia de valores. Quem criou isso foi algum neurótico, algum tipo de ser humano, provavelmente macho inseguro e ambicioso por poder, que foi pervertido por pensamentos religiosos absurdos e viveu para propagá-los.
Não compre esse lixo discursivo, seja ele machista, misógino, anti-feminista, homofóbico e transfóbico em separado ou tudo junto! Você pode ser melhor do que isso.
Hoje, dia 30/06/21, recebi da All Out um convite para ler um relatório de pesquisa sobre as chamadas "terapias de conversão" (a famigerada "cura gay"). Esse trabalho é de um valor imenso, pois essas terapias são uma verdadeira violência contra a psiquê das vítimas.
O relatório completo pode ser acessado aqui: https://s3.amazonaws.com/s3.allout.org/images/All_Out_Instituto_Matizes_Relatorio_Completo_Entre_Curas_E_Terapias.pdf
Também na data de hoje, foi feito um painel com as pessoas que organizaram o relatório. Esse painel pode ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DvGhjGrVKyE
Não deixe de acessar essas informações. Elas são fundamentais para que a nossa capacitação e empoderamento contra essa série de violências contra a pessoa LGBT+, especialmente na infância e na adolescência.
É sabido que a sociedade castiga aqueles que desafiam suas regras de alguma maneira, especialmente aquelas relacionadas normas de controle da sexualiade e do gênero. As travestis são as que pagam mais caro por sua ‘transgressão de gênero’. Elas são punidas com ostracismo, isto é, com sua segregação de áreas quase sempre acessíveis às pesssoas que não desafiam as normas binárias de gênero. Entenda-se por ‘normas binárias de gênero’ aquilo que geralmente se diz através do famoso mantra ‘isso é coisa de menina’ e ‘isso é coisa de menino’. Por causa desse apartheid de gênero, as travestis deixam de ter acesso a uma série de coisas. Destaco aqui a educação, os cuidados médicos e a moradia.
Mas, como dizia Luana Muniz, famosa travesti que atuava na Lapa, no Rio de Janeiro: Travesti não é banguça! O jargão, que se tornou símbolo de resistência, viralizou na Internet, e Luana se tornou alvo do interesse de programas de TV e até de diretores de cinema.
Luana faleceu em 06/05/2017, aos 56 anos, devido a uma parada cardio-respiratória, conforme atestato pelo Hospital Municipal Ronaldo Gazolla, no Rio de Janeiro.
Travestis e acesso à educação
O acesso à educação é restrito por meio de vários mecanismos de controle social mantidos pela própria 'comunidade escolar', isto é, alunos, pais, professores, coordenadores pedagógicos e administradores, que vão da direção à zeladoria e portaria. Os mecanismos de controle incluem a manutenção de rígido controle sobre as vestimentas, inclusive com o uso de uniformes geralmente caracterizados por distinções arbitrariamente estabelecidas e já cristalizadas sobre o feminino e o masculino e atribuídas ao sexo anatômico (macho e fêmea), como se essa anatomia fosse sempre dicotômica, binária, dual. Existem inúmeras variações nessa anatomia que muitos ignoram e tantos outros escondem. As pessoas intersexuais saem cada vez mais de seus armários e são a prova de que há diversidade até nisso. Se as escolas lidam mal com alunos, pais, professores (etc) que não se encaixam nas normas continuamente reforçadas de gênero sem serem intersexuais, imaginem como seria a vida de uma pessoa que apresentasse características dos dois sexos! Mas, meu foco hoje é a pessoa travesti, não a intersexual.
A travestilidade pode ser percebida em muitos indivíduos desde bem cedo. E a reação dos transfóbicos de plantão, especialmente nas escolas, pode ser desastrosa. As crianças e adolescentes que transgridem as normas para se expressarem no gênero com o qual se identificam acabam sendo ridicularizados, coibidos e punidos administrativamente nesses ambientes transfobicamente sufocantes.
Além desse mecanismo de controle sobre o que se deve vestir, existe também um dispositivo reforçador de gênero que pode provocar muito sofrimento. Ele pode parecer simples e inofensivo à primeira vista, mas causa dores emocionais profundas sobre a estudante travesti. Trata-se da chamada. Chamar Tábata, que se expressa visualmente toda no feminino, de Teobaldo é uma violência contra a aluna travesti. Mas a chamada não é o único momento em que o prenome se torna um tormento. A identificação pessoal será necessária em trabalhos, boletins e comunicados escolares. Cada vez que Tábata tiver seu nome riscado para dar lugar a Teobaldo, o sofrimento será renovado.
A pessoa travesti, seja qual for a sua idade, deve ser chamada pelo nome social de sua escolha, mesmo que ainda não tenha conseguido fazer a mudança legal de seu nome nos documentos oficiais. Isso é o que chamamos de 'nome social'. Entretanto, escolas transfobicamente sufocantes se recusam a respeitar o nome social de alunas travestis até que uma ação seja impetrada contra elas ou alguma manifestação pública as constranja a agir como deveriam de fato. Infelizmente, em muitos casos, porém, essas escolas contam com a conivência de pais transfóbicos, inclusive das próprias crianças e adolescentes travestis. Quando isso acontece, elas ficam impotentes, tendo que esperar pela maioridade para tomarem providências. Acontece que uma pessoa pode passar de 12 ou 13 anos na escola para chegar ao final do ensino médio - isso se não repetir nenhum ano. A vida da aluna travesti pode ser atormentada por muitos anos se a escola não for acolhedora e proativa em garantir seu acolhimento e bem-estar. O ‘bullying’, ou seja, o assédio moral em forma de ataque verbal ou físico por parte de outros alunos, quando não por parte de professores também, agrava o sofrimento dessa aluna. O resultado de tanto sofrimento psíquico em ambientes escolares tóxicos é que a criança ou adolescente travesti acaba abandonando a escola.
O resultado disso é que ela dificilmente conseguirá uma colocação no mercado de trabalho formal, sendo empurrada para a informalidade do subemprego ou do cinicamente chamado ‘empreendedorismo’, que muitas vezes nada mais é do que um recurso eufemístico para substituir o termo ‘camelô’. Mas será que essa possiblidade está realmente disponível para a travesti tanto quanto está acessível a pessoas cisgêneras (aquelas que não são transgêneras)? Estará a travesti segura naquele ambiente?
Quem já entrou num camelódromo ou em outros ambientes de comércio popular informal sabe como as pessoas pode ser cruelmente preconceituosas naqueles espaços de trabalho e convivência. Muitos homens camelôs são extremamente abusivos no modo como lidam com as mulheres à sua volta. As mulheres, por sua vez, podem ser extremamente cruéis com simples rivais cisgêneras. Agora, imaginem o que passaria uma travesti que, como uma indefesa capivara, se aventurasse por aquelas águas cheias de piranhas e jacarés, considerando-se o potencial destrutivo das interações nesses ambientes profundamente transfóbicos.
Não me entendam mal. Travestis são muito fortes. Elas se defendem bem muitas das vezes. Porém, não detém superpoderes e nem são mutantes ao estilo X-Men. Um grupo enfurecido ou um único indivíduo sorrateiro, armado com uma simples lâmina, pode dar cabo de qualquer pessoa que esteja vulnerável em algum momento de sua vida. E quem seria a pessoa travesti (ou não) que poderia lidar com esse tipo de angústia 24 horas por dia, todos os dias, sem ser apanhada de surpresa ou sem considerar, no final das contas, o suicídio como a saída menos dolorosa?
Não deveria causar estranheza, portanto, que o número de suicídios entre pessoas transgêneras de um modo geral seja altíssimo. Vale lembrar que 'pessoas transgêneras' incluem travestis, transexuais e muitas outras. Porém, as travestis são, sem sombra de dúvida, as que mais causam frisson quando saem as ruas para trabalhar, se divertir ou fazer compras como qualquer outro cidadão.
Apesar de tudo disso, muitas travestis resistem bravamente e dão curso às próprias vidas. Entretanto, não é raro que muitas desenvolvam algum tipo de dependência química. O álcool, assim como outras substâncias, pode se apresentar como um paliativo para as dores písiquicas causadas pela transfobia, mas logo provarão ser uma doença difícil de ser curada. Contudo, as travestis poderiam ter sido poupadas de todas essas dores se fossem respeitadas em seus direitos e valorizadas em seu potencial criativo e produtivo, como qualquer outra cidadã ou cidadão que nunca questionou as ‘normas de gênero’.
Travestis e atendimento de saúde
O acesso aos cuidados de saúde são outra questão. Muitos médicos, enfermeiros e outros profissionais da área de saúde física e mental ignoram as peculiaridades e necessidades das travestis quando estas buscam atendimento.
Por temerem ser desrespeitadas até mesmo na hora de serem chamadas ao consultório. De novo, Tábata poderá acabar sendo chamada de Teobaldo, causando burburinho na sala de espera, muitas travestis nem sequer marcam uma consulta ou entram numa fila de espera para atendimento. Além disso, elas temem ser atendidas com má vontade por médicos cuja transfobia não foi curada pelos 9 anos de curso e residência, até porque as universidades não promovem esse tipo de reflexão. Esse despreparo e má vontade por parte dos profissionais de saúde resulta em grandes riscos para muitas travestis jovens, que acabam fazendo procedimentos de feminilização por conta própria ou contratando aventureiras ou aventureiros que se dizem capazes de dar a elas o corpo que elas desejam. Isso pode gerar problemas sérios de saúde, pois os produtos não são adequados e a falta de supervisão por parte de um profissional treinado e licenciado na área de saúde pode levar a resultados desastrosos.
Se as travestis jovens carecem de atendimento preventivo, as travestis idosas sentem falta de atendimento terapêutico, pois muitas delas já fizeram o que deveria ter sido evitado, caso tivessem sido devidamente orientadas, e agora precisam de tratamento para os efeitos colaterais. À medida que mais pessoas assumem sua travestilidade e transexualidade, mais mulheres travestis e transexuais tendem a chegar à terceira idade. Elas precisam de atendimento de acordo com suas especificidades. Algumas nunca foram atendidas por um médico que saiba lidar com suas peculiaridades. Travestis são pessoas transgêneras que não buscam operação de transgenitalização. Transexuais, por sua vez, podem buscá-la ou não. Médicos, portanto, precisarão lidar com mulheres com pênis alguma vezes e com mulheres com vaginas em outras – todas sem útero ou glândulas mamárias com potencial para aleitamento materno; todas elas com próstatas, independentemente de terem vagina ou pênis; nenhuma delas com menstruação ou menopausa, mas também não perfeitamente enquadradas no que seria a andropausa se passaram por hormonização para feminilização. São diversas as questões. E para todas essas partes do corpo da pessoa transgênera existem demandas que precisam ser atendidas por um profissional de saúde, assim como acontece com o corpo de qualquer pessoa cisgênera. Cada corpo tem suas demandas. E os profissionais de saúde precisam estar preparados para lidar com todas elas.
Mas não são apenas as travestis jovens que precisam ser orientadas quanto ao atingimento de seus alvos em relação ao corpo que desejam ter. Há também travestis com mais idade que não se assumiram na juventude, mas querem fazê-lo agora. Estas também precisam de orientação sobre como proceder para atingirem seus objetivos sem prejudicarem sua saúde ou agravarem quadros patológicos já existentes, tais como: Problemas cardíacos, respiratórios, circulatórios, etc.
Para que nunca ouviu o que as travestis pensam sobre envelhecimento, isso pode parecer muito estranho, mas existem travestis que não querem mais manter o silicone ou sua rotina de hormonização por diversos motivos diferentes. No livro Velhice Transviada, de João W. Nery, Sissy Kelly Lopes fala sobre isso. Veja o trecho abaixo.
Quando decidem 'destransicionar', algumas delas ganham feições não-binárias, ou de gênero indefinido, ou seja, acabam não se enquadrando mais no visual de mulher nem no visual de homem, conforme imaginado pela sociedade. Essas pessoas devem ser respeitadas em suas decisões, mas bom seria que recebessem apoio psicológico ou psicanalítico, pois esse súbito desejo de se desconstruir pode ter algo a ver com a transfobia circundante ou até mesmo internalizada. Ela pode estar precisando de ajuda para entender quais são suas possibilidades como travesti que entra na terceira idade ou que já idosa mesmo. O ideário de travesti sedutora e sempre sexualmente disposta pode ser um fantasma assombrando as pessoas que já não se enquadram nesse estereótipo. De novo, é preciso que profissionais de saúde, nesse caso especialmente psicólogos e psicanalistas, estejam preparados para lidar com essas questões em relação ao ser e ao devir da pessoa travesti.
Travestis e moradia
Sobre moradia, o problema mais conhecido pela maioria das pessoas quando se trata de jovens travestis é o da expulsão de casa. Muitas famílias, querendo se livrar dos comentários de vizinhos, amigos e parentes sobre a sexualidade e a transgeneridade do 'filho' - e por se recusarem a pensar 'nele' como ela, acabam tornando a vida da jovem travesti insuportável dentro de casa. Isso pode levar à fuga na tentativa de obter vida melhor. Em outros casos, a própria família expulsa a travesti de casa com todas as letras. Da noite para o dia, ela se encontra sem pai nem mãe, sem irmãos, sem suas coisas, sem seu lugar de repouso. A fofoca, porém, não deixará de acontecer, pois os vizinhos, amigos e parentes falarão do mesmo jeito, ainda que finjam acreditar que ‘fulaninho’ foi para outra cidade estudar ou trabalhar, como alegado pelos pais.
A travesti jovem, agora sem casa e sem idade para trabalhar, ou sem renda porque não tem emprego, acaba ficando vulnerável a todo tipo de violência nas ruas das grandes e pequenas cidades. Não faltarão traficantes querendo usá-la como ‘aviãozinho’. Logo, ela mesma gastará o dinheiro obtido com a venda de drogas para comprar suas próprias drogas. Depois disso, a pessoa fica presa nesse círculo vicioso.
O envolvimento com tráfico ou com o uso abusivo de drogas pode culminar em encarceramento, caso a pessoa travesti seja flagrada pela polícia. O cárcere é outro local onde a transfobia já se manifesta na pessoa do agente da lei, seja o policial, o delegado, o carcereiro ou outros.
O caso Verônica Bolina não pode ser esquecido. Acusada de agredir uma senhora durante um surto psicótico, ela foi desfigurada pelos policiais que a detiveram, teve suas roupas rasgadas, os seios expostos e seus lindos cabelos raspados. Do local da prisão até o presídio, eles fizeram tudo o que puderam para transformar o visual de uma princesa na face de um monstro coberto de hematomas. Só mesmo um negador da realidade diria que isso não foi motivado por transfobia. Veja fotos abaixo.
Verônica foi violada de várias formas pelos agentes que deveriam apenas detê-la.
Não faltarão cafetões ou cafetinas dispostos a oferecer um quarto para a travesti expulsa de casa ou que não suportou as humilhações e saiu. Só que o quarto dificilmente será só dela. Ela conviverá com pessoas cujos hábitos e vícios podem criar constrangimentos de todos os tipos a novata. E se ela quiser continuar morando ali, vai ter que fazer o papel de escrava sexual dos clientes que 'consomem' o que a casa oferece. Não confundir o crime de exploração sexual que a cafetinagem faz com essa travesti com o trabalho autônomo de uma profissional do sexo. No caso da cafetinagem, ela será obrigada a vender o que tem de melhor (seu corpo) para enriquecer os que a exploram sem piedade em troca de um cárcere falsamente chamado de residência. E como não existe reconhecimento legal do trabalho das pessoas que atuam como profissionais do sexo, a travesti que decidir trabalhar por conta própria dessa maneira correrá o risco de ser esfaqueada ou até morta por mafiosos que se consideram os ‘donos’ da rua. Era isso que o projeto de lei que ficou conhecido como "Lei Gabriela Leite", de autoria do Deputado Jean Wyllys, em 2012, queria evitar. A hipocrisia da sociedade, refletida no Câmara dos Deputados, inviabilizou o trâmite do projeto.
Atualmente, Amara Moira (foto acima) não trabalha mais como profissional do sexo, mas é uma defensora da regulamentação da prostituição no Brasil. Além disso, ela acredita que a literatura é fonte de transformação social.
Quando a travesti consegue alugar um lugar só seu, depois de batalhar muito para ganhar dinheiro, seja em ofícios mais respeitados como os de cabelereira, manicure, etc., seja através da renegada – mas sempre procurada pelos ‘homens de bem’ – prostituição, ela ainda poderá sofrer assédio transfóbico por parte de síndicos e condôminos. Em muitos casos, a pessoa travesti não conseguirá sequer alugar casa ou apartamento simplesmente porque o dono do imóvel rejeita terminantemente a ideia de ter uma travesti como inquilina, geralmente achando que a casa se transformaria num ‘puteiro’. Senhorios e imobiliárias costumam agir como se travestis fossem encrenca. Ignoram que muitas delas mantém excelente ambiente familiar em casa, inclusive cuidadando de mães ou pais idosos, educando sobrinhos cujos pais são incapazes de cuidar deles, entre outros. Algumas são casadas e mantêm excelente relacionamento com seus parceiros. Existem, sim, travestis que não se comportam de acordo com as boas regras de convivência, mas essa também é a realidade de muita gente não travesti que nunca teria sua proposta de aluguel negada apenas por uma passada d’olhos sobre sua figura.
O pior dos mundos para uma travesti
Com problemas para permanecer na escola, entrar no mercado de trabalho, acessar atendimento médico, viver em paz na casa dos próprios pais, assinar contrato de aluguel para viver em paz, além de ter que lidar com vários outros fatores decorrentes dessas violências, como o uso excessivo de álcool e outras drogas, a travesti que não trabalha sua autoestima e fracassa em estabelecer um pacto perpétuo de amor próprio e considera a possibilidade de abrir mão de direito à autoexpressão, pode acabar se tornando alvo fácil para outro grupo de predadores além dos já conhecidos cafetões e traficantes, os quais são reconhecidamente perigosos e maléficos. A classe de canalhas a que passo a me referir aqui são ainda mais nocivos por não parecer tão venenosos, mas são extremamente peçonhentos.
Refiro-me a um tipo específico de patife, geralmente disfarçado de amigo muito interessado no bem-estar das pessoas. Ele chega à pessoa travesti todo trabalhado na verborragia do amor incondicional. Algumas desavisadas pensam que esse papo de amor incondicional é sério. Não percebem que trata-se apenas de uma isca que camufla o mortífero anzol. O pilantra diz: “Jesus te ama, mas você tem que deixar de ser travesti.” Peraaaaaaaaaaaaaaaí! Atenção aqui! Se a travesti não se negar a ouvi-lo a partir daí mesmo, ela quase certamente será fisgada por esse farsante. Trata-se do pastor evangélico metido a ‘curandeiro’ de travestis e de outros membros da comunidade LGBT+.
Algumas travestis depois de terem conhecido o pior da vida, graças a esses mesmos canalhas que a demonizam e a outros tantos que ouvem suas doutrinações transfóbicas, fica desarmada ao ser abraçada e ouvir alguém dizer que a ama. Ela acredita que seu valor foi finalmente reconhecido, mas não percebe que está sendo seduzida por artimanha. A pessoa que lhe fala com ares de bondade é um transfóbico representando um deus transfóbico que, de acordo com sua mitologia, tem o poder de lançá-la no fogo eterno se ela simplesmente se atrever a continuar passando batom e andando de salto alto. São duas fabricações imaginativas: o suposto ungido de deus e o suposto deus que o ungiu.
Uma vez fisgada por esses patifes que juram saber exatamente o que ela precisa, garantindo que ela só encontrará felicidade naquela igreja, com aquele pastor, dando seu dízimo fielmente, é claro, essa travesti chegará ao cúmulo de se ‘desmontar’ toda para se enquadrar no lugar onde sempre tentaram enfiá-la de todos os modos possíveis. Ela lutou bravamente, mas agora, desarmada por falsas promessas em nome de deus, ela cai numa das armadilhas mais eficazes para capturar pessoas frustradas – a da religião.
Tais religiões, seitas e cultos se constituem no mais cruel, mesquinho e dissimulado de todos os mecanismos de controle e sujeição às normas do patriarcado – todas elas carregadas, em maior ou menor grau, de machismo, misoginia, transfobia e homofobia. A travesti, uma vez domada, será devassada e manipulada em toda a sua intimidade.
O pastor patife, promotor de ‘cura’ para a travestilidade, é pior, repito, do que o cafetão e do que o traficante, pois destes a travesti sabe que precisa se desvincular o mais rápido possível, mas do suposto mensageiro do suposto deus, ela temerá se afastar sob pena de condenação eterna. Algumas nem acreditarão em castigos ou recompensas pós-mundanos, mas se sujeitarão a esses manipuladores para não perderem sua mais nova 'conquista': Ser parte desse simulacro de família de deus que parece poder substituir outro simulacro – o da família biológica que a rejeitou ou que adoraria que Tábata voltasse a ser Teobaldo.
Para usufruir do respeito e da admiração de sua nova ‘fraternidade’ (leia-se alcateia transfóbica devoradora de ovelhas travestis desavisadas), a recém-cooptada travesti deixará de tomar seus hormônios ou fará a retirada do silicone tanto quanto possível e o mais rápido que puder. Logo que entrar para aquela colônia de desequilibrados sexualmente mal resolvidos, ela será obrigada a colocar roupas masculinas, deixará crescer pelos em partes geralmente destinadas a isso pelos machistas de plantão, tentará falar em ‘voz masculina super masculinizada’ (geralmente sem sucesso) e pedirá que o fictício deus transfóbico, fingidamente amante de travestis arrependidas e dipostas a renunciarem sua própria travestilidade, elimine quaisquer trejeitos femininos em sua postura e gestual. Nasce, então, a figura nada miraculosa ‘do’ ex-travesti.
Ex-travestis: Seria divertido se não fosse trágico
Talita Oliveira, a A travesti-propaganda de Feliciano diz que não existe "cura gay"
Ex-travestis tentam se comportar como homens cisgêneros heterossexuais à luz dos holofotes. Alguns deles até se casam com mulheres cisgêneras e têm filhos para comprovar sua hiper-cisgeneridade heterossexual. Juram que amam suas mulheres e que estão plenamente satisfeitos com elas. A igreja dá glória a deus, e o ‘ex-travesti’ se sente tomado pelo fogo do deus transfóbico que jura existir. Quando já ia sapatear no fogo santo, ele pensa: “É melhor não. E se o meu sapatear no espírito santo parecer mais com o rebolado de uma das passistas do Sargenteli sambando sobre o altar?" Segura a onda, Tábata. Você agora é Teobaldo (#sqn).
De fato, a Tábata dentro dele se recusa a morrer.
Durante a noite, Teobaldo sonha com aquele macho gostoso que ele viu no culto. Nada diferente do que acontece com muitas 'irmãzinhas' santíssima, trabalhadas no jejum, na vigília e na batalha espiritual. Algumas delas sonham em "dar o seu melhor" ao pastor. Mas, voltando à Tábata, pode ser que ela relembre algum momento áureo de relacionamento de seu passado com algum cabra-macho que sabia fazê-la feliz como ninguém mais faz. O desejo bate à porta. Tábata nem precisava lembrar o caminho de volta. Ela nunca foi embora. A gloriosa travesti sempre esteve ali, apesar de recalcada sob todo aquele escombro machista-heterossexista que Teobaldo foi acumulando na igreja ao som gospel de “entra na minha casa, entra na minha vida” e com toda aquela babaquice "evangexcêntrica" que vocês já conhecem.
Teobaldo tem duas opções basicamente:
1. Continuar fingindo que Tábata nunca existiu, ou que morreu sem jamais poder ser ressuscitada de novo, enquanto entrega-se à imaginação carregada de erotismo com outros homens e vai aliviando seu tesão naquele jogo de ‘cinco contra um’, mesmo se sentindo culpado a cada ejaculação;
2. Ou sair do armário de uma vez e assumir que é travesti mesmo, que nada mudou de fato, e que tudo não passou de um grande engano.
Nada disso, porém, teria acontecido se Tábata tivesse sido respeitada e aceita nos espaços de convivência, assistência, produtividade e recreação aos quais as pessoas têm livre acesso quando ninguém encontra nelas qualquer vestígio de transgressão das regras binárias de gênero. Em outras palavras, quando a pessoa em questão não é travesti ou outro transgênero.
Se escolher a primeira opção, Teobaldo continuará trabalhando de graça para a igreja e fazendo contribuições expressivas na esperança de se livrar da culpa pós-masturbação com desejo por outro homem. Mas vale lembrar que muitas dessas travestis enfiadas em ternos e gravatas na escola dominical estão transando com outros 'servos de deus' que, como elas, estão no armário e não se aguentam mais. Enquanto isso, Teobaldo mantém seu casamento ‘heterossexual’ a duras penas e sem contar para sua mulher que ela transa todos os dias com um simulacro de ‘mensageiro do deus trasfóbico’ que é apenas Tábata recalcada no fundo de uma psiquê adoecida pela transfobia, mas nunca morta de fato. O melhor para as duas era que Tábata saísse logo do armário e elas pudessem ir ao cabelereiro juntas ou viverem (felizes) separadas para sempre.
Às queridas travestis
Amiga travesti, não existe maior equívoco do que sacrificar sua própria identidade ou expressão de gênero para se submeter a alguém ou alguma coisa em troca de reconhecimento ou acolhimento. Há outras maneiras de se construir redes de apoio mútuo. E para quem não dispensa religião de alguma maneira, existem lugares ‘sagrados’ menos tóxicos do ponto de vista da transfobia dogmática.
Faça escolhas melhores. Nenhuma escolha jamais será boa o suficiente se em vez de te empoderar como a pessoa que você é, isso te enfraquecer e te conduzir a se sujeitar a enquadramentos baseados em auto-ódio ou em ‘amores condicionais’ que não passam de cantos de sereia. E não me refiro de modo algum à bela Ariel, princesa da Disney. Refiro-me às carnívoras sereias que povoam o imaginário mitológico greco-romano.
Diante desses pastores-sereias-carnívoras-devoradoras-de-travestis, faça como Ulysses que pediu para ser amarrado ao mastro do navio e tampou os ouvidos de seus companheiros com cera quando estavam para cruzar o mar infestado por essas perigosas criaturas mitológicas, a fim de não serem atraídos e devorados por elas. Tampe seus ouvidos para pregação mortífera desses fundamentalistas religiosos mal resolvidos com sua própria sexualidade e autoproclamados representantes de um deus pior do que eles e tão fake quanto eles. Se não o fizer, você será devorada pela transfobia desses canalhas.
A comunidade LGBT sob governos destros e canhotos A queda de Morales e outras esquisitices latino-americanas
Por Sergio Viula
A direita e a esquerda, bem como tudo que fica em algum ponto entre elas, têm modos diferentes de pensar economia. Esse é ponto nevrálgico de suas disputas. Para além disso, cada uma delas tem sua própria versão de pragmatismo político, especialmente quando se trata do que todos os que experimentam o poder desejam - perpetuar-se no comando. Há quem abra mão de um cargo poderoso por motivos estratégicos, mas dificilmente deixa de participar do jogo. Para justificar a aquisição de novos poderes no mesmo cargo, especialmente quando se trata do mais alto cargo do Executivo - o da presidência -, o discurso pode incluir frases de efeito como "precisamos proteger a democracia", "é preciso defender o país de ameaças externas", "o povo fará prevalecer sua vontade", entre outras. A primeira geralmente justifica ações truculentas contra a oposição da parte de outros políticos ou atores da sociedade civil. A segunda é pretexto para reforçar o aparato militar, aumentar a vigilância sobre os cidadãos e as instituições civis, e até mesmo suspender direitos fundamentais. A terceira é muito usada para desviar a atenção de fraudes no processo eleitoral. As frases de efeito podem variar, mas o objetivo desses governantes costuma ser o de se perpetuar no poder custe o que custar. Isso, porém, não seria possível sem o estabelecimento de alianças que geralmente põem em risco a liberdade e a dignidade da população e das organizações que representam os anseios da sociedade civil. Essas alianças são geralmente cobertas por duas camadas discursivas - uma que agrada aos algozes do povo nos bastidores e outra que distrai esse mesmo povo na ribalta. Um dos mais sagazes e perigosos desses poderes é o religioso. Em nome de seus dogmas e da manutenção do controle mental de seus seguidores, lideres católicos, protestantes, muçulmanos, budistas, hindus, etc, a depender do país em questão, são capazes de apoiar governos aberta ou veladamente violentos, desde que estes continuem transferindo dinheiro do Estado para suas organizações a título de investimento em hospitais, creches e outras iniciativas aparentemente beneficentes. Restauração de templos e obras de arte consideradas como patrimônio da humanidade ou de interesse da população também são ótimas "laranjas" para esse repasse de verbas milionárias. Além do ganho financeiro, essas organizações exigem fidelidade a uma agenda mínima de acordo com os interesses delas. Essa agenda tem muitas facetas, sendo a mais visível, no caso da América Latina escravizada por crenças católicas e evangélicas, aquela que esses religiosos costumam chamar de 'agenda moral'. Do alto de sua hipocrisia, caracterizada por apelos à moralidade ao mesmo tempo em que cometem os mais sórdidos atos de corrupção dentro e fora de suas instituições, esses líderes religiosos geralmente exigem dos governantes sob seu comando ou influência o impedimento de qualquer avanço no campo dos direitos femininos, dos direitos LGBT e da efetiva separação entre Estado e religião - só para citar três. Eles também trabalham bastante para impedir o avanço da ciência. Outro poder extremamente perigoso é o dos militares. Ora, os mesmos cães de guarda que impedem a entrada de estranhos podem se tornar um perigo quando decidem atacar o próprio "dono". Apesar de nenhum presidente ser dono das Forças Armadas, a analogia se aplica. Ele é reconhecido pela Constituição (no caso do Brasil e de outros países) como o chefe das Forças Armadas. Isso deveria se traduzir em proteção para o Estado de Direito, não em subversão do mesmo por causa de interesses espúrios de líderes de alta patente, sempre prontos a exercer pressão sobre presidentes eleitos. Um governo torna-se totalmente inviável quando generais, brigadeiros e almirantes se vendem aos interesses de quem pode pagar bilhões pela sua traição. E tendo em vista que governos como os dos EUA, da Rússia, da China, da Arábia Saudita, entre outros, têm esse cacife, não é difícil entender porque tantos golpes acontecem em locais onde seus interesses políticos e econômicos se concentram. Mas engana-se que pensa que agem sozinhos os governos externos que subsidiam golpes na América Latina, África e Ásia. Na verdade, eles contam com a conivência de muitas autoridades e figuras públicas dentro dos países que são alvos de sua cobiça. Muitos desses colaboradores internos juram que são patriotas e que estão comprometido com o bem de suas nações. Além disso, esses governos de potências imperialistas têm por trás de si corporações empresariais que acumulam receitas maiores que o PIB de vários países. O poder econômico constituído por essas corporações pode ser usado para chantagear políticos e partidos, transformando os espaços onde são exercidos os poderes Legislativo, Judiciário e Executivo em balcão de compra e venda. Já vimos muito disso por aqui. E é dessa maneira que o futuro do nosso país e de nossos vizinhos latino-americanos é garantido ou comprometido, a depender dos interesses dos que detêm o capital. Porém, ninguém se apresse em pensar que o capital só domina sociedades autoproclamadas capitalistas. De modo algum! Na verdade, o capital manda tanto em sociedades consideradas capitalistas como em sociedades consideradas socialistas, principalmente nos tempos atuais, quando o comércio vence fronteiras de todos os tipos todos os dias. O capital dá as cartas tanto em nações dominadas por poderes religiosos como em nações profundamente secularizadas. O que difere é a extensão de seu poder. Esta vai depender de que tipos de dispositivos cada uma dessas nações conseguiu consolidar para evitar a violação dos direitos fundamentais dos indivíduos e para promover o progresso civilizatório, que não será efetivado sem o respeito à liberdade e à dignidade humana numa perspectiva pluralista e inclusiva que não apenas tolere, mas celebre a diversidade. A América Latina encontra-se em polvorosa no momento em que escrevo esse post. O Chile de Sebastián Piñera acaba de passar por semanas de convulsão social depois de ser assolado por políticas neo-liberais extremas que lançaram milhões na miséria. A Argentina, idem, mas com a diferença de que o povo argentino decidiu através do voto não renovar o mandato do presidente Maurício Macri. O Equador foi palco de revoltas populares contra a corrupção do governo do presidente Lenín Moreno. O saldo foi de 500 feridos e mais de mil presos. Mas, o governo recuou. Primeiro, o presidente decretou toque de recolher (13 de outubro), e, um dia depois, cedeu às pressões populares. Em seguida, anunciou a suspensão do decreto que liberava o preço dos combustíveis, cujo efeito imediato foi um aumento de mais de 120% da gasolina e do diesel, motivo central das revoltas que paralisaram o país por 11 dias. De novo, a quem interessa um aumento desses - aos donos do capital ou ao povo? A Bolívia, por sua vez, se tornou palco de confrontos depois que o resultado favorável a Evo Morales nas urnas foi contestado nas eleições deste ano. A crise instalada culminou em sua renúncia. O agora ex-presidente da Bolívia, primeiro indígena eleito no país, foi o chefe do Executivo que ocupou o cargo por mais tempo - um total de treze anos. A renúncia de Evo foi anunciado pelo próprio neste domingo, 9/11. Ele deixou o cargo logo depois que as Forças Armadas e a Polícia pediram que ele considerasse a renúncia para evitar mais violência no país. O que muitos se perguntam é se esse posicionamento das forças de segurança bolivianas expressava mera incapacidade de conter os tumultos ou uma ameaça velada ao presidente. De qualquer modo, Morales decidiu renunciar. Tristemente, o vácuo gerado por essa renúncia abre espaço para todo tipo de articulação entre setores sedentos pelo sangue do trabalhador boliviano e ansiosos por vampirizar as riquezas naturais daquele estratégico país. Vale ressaltar que nenhuma dessas "crises" aconteceram sem a ingerência de agentes americanos, tanto por parte do governo como de mega corporações. Aqui no Brasil, Bolsonaro, um político que sempre se valeu do Estado Democrático de Direito tão-somente para garantir sua presença no cenário político, além da inclusão de seus filhos e de outros parentes em espaços de poder, despreza esse mesmo Estado Democrático de Direito que permite sua emergência ao fazer declarações estapafúrdias em apoio a ditadores como Ustra. Não bastasse isso para criar repugnância em qualquer pessoa minimamente moral, ele se curva descaradamente a Donald Trump e aos interesses imperialistas americanos, tão claramente incompatíveis com o desejo de aproximadamente 200 milhões de brasileiros por crescimento e a autonomia. Sem titubear, nem mesmo por um segundo, Bolsonaro elogiou os mecanismos que levaram à inviabilização do governo de Morales. Segundo a Folha de São Paulo (https://www1.folha.uol.com.br/mundo/2019/11/apos-renuncia-de-morales-bolsonaro-comemora-grande-dia.shtml), ele voltou a usar a expressão "grande dia" com a qual debochou da decisão do ex-deputado Jean Wyllys ao deixar seu mandato por causa de ameaças de morte que culminaram em sua saída do país. Na realidade, Bolsonaro provavelmente viu no golpe cívico-militar contra Evo Morales uma forma de espetar os milhões de brasileiros e outros latino-americanos que celebravam a saída de Lula da cadeia pela porta da frente. Soa quase como uma autopropaganda, algo como o seguinte: Na Bolívia, os militares inviabilizaram o governo de Morales com sua recusa em sair dos quartéis para garantir a ordem, mas aqui o militar sou eu. E para se blindar, Bolsonaro já concedeu cargos a mais de 2.500 membros das Forças Armadas em ministérios, cargos de chefia e postos de assessoramento, como diz a Folha de São Paulo. (https://www1.folha.uol.com.br/poder/2019/10/bolsonaro-amplia-presenca-de-militares-em-30-orgaos-federais.shtml) As Forças Armadas bolivianas não agiram sozinhas. O golpe lá Bolívia teve ampla influência de fundamentalistas. Eles chegaram a dizer descaradamente que vão "devolver deus ao palácio do governo". Houve também forte mobilização do discurso racista por parte da ressentida aristocracia e oligarcas bolivianos. Há relatos de pessoas de origem indígena, como é o caso do ex-presidente da Bolívia, dizendo que todos os civis de origem indígena que ainda tem algum cargo no governo ou no serviço público estão sendo perseguidos por gente ligada a oligarcas e fundamentalistas religiosos. Ora, que sujeira existe e se perpetua nos partidos de direita, esquerda e outros não é novidade, mas é lamentável ver que muita gente permanece capturada por essa cortina de fumaça produzida por personagens que se dizem de uma ala ou de outra, deixando de perceber que os princípios democráticos e o Estado de Direito têm sido continuamente violados, seja de forma explícita ou velada, nos governos de todos esses partidos. O grande erro desses governantes populistas, sejam quais forem seus partidos, é o culto a si mesmos como "pais insubstituíveis". Enquanto se recusam a pensar em como poderiam se reproduzir e se renovar na pessoa de novos líderes, esses 'mitos', 'libertadores' e 'messias' se entrincheiram cada vez mais nas liteiras do poder, incensados por fiéis que os adulam ao mesmo tempo em que ignoram o fato de que as estruturas sócio-político-econômicas permanecem praticamente as mesmas, apesar dos muitos anos de mandato que esses mesmos ídolos já acumularam em suas carreiras políticas. Aliás, no que depender do Messias Bolsonaro e do Donald Trump, nós, os cidadãos que se identificam como gays, lésbicas, bissexuais e transgêneros, continuaremos sendo ignorados em nossas demandas, correndo o risco de termos nossas conquistas reduzidas ou suprimidas, caso isso esteja ao alcance deles. Na verdade, dificilmente encontramos presidentes mais vis do que esses dois nos 36 países e 18 territórios dependentes de alguma metrópole externa que compõem as Américas. Trump e Bolsonaro só não fazem tudo o que desejam, porque não podem. Felizmente, ainda existem instituições democráticas estatais e da sociedade civil para detê-los, mas todos os dias, eles as submetem a pressões que podem colaborar para sua corrosão e colapso. Em setembro desse ano, por exemplo, Donald Trump acionou a Suprema Corte do país para questionar se pessoas LGBT deveriam estar protegidas por leis trabalhistas que impeçam discriminação por orientação sexual e identidade de gênero. Na prática, ele está pedindo que a Suprema Corte permita que empresas tenham o poder de demitir pessoas por serem gays ou transexuais. Este tem sido apontado como o maior ataque da administração de Trump contra a comunidade LGBT até o presente momento. (https://www.redebrasilatual.com.br/mundo/2019/09/governo-trump-segue-no-ataque-a-comunidade-lgbt/) Enquanto a Suprema Corte americana discute o assunto, vários estados e cidades americanos têm agido para proibir a discriminação por orientação sexual e de gênero em seu território.
Por aqui, a Justiça ordenou que o governo federal retome os editais de séries LGBT que a Ancine vinha rejeitando por discriminação preconceituosa na administração Bolsonaro. E este é só um exemplo das muitas maneiras que o atual presidente do Brasil tem utilizado para atacar a comunidade LGBT. (https://www.cartacapital.com.br/diversidade/ancine-tera-que-retomar-editais-de-series-lgbts-decreta-justica/)
Outro exemplo é a decisão do STF de que famílias homoafetivas não podem ser excluídas de políticas públicas. Bolsonaro, com sua incurável homofobia, sempre tratou essas famílias como se não fossem famílias de fato. Ele não hesita em deixar claro que faz isso em consonância com setores fundamentalistas da ala católica e da ala evangélica no Congresso e na sociedade. Porém, graças ao STF, essas decisões inconstitucionais foram coibidas em alguma medida.
Mas engana-se quem pensa que Trump, Bolsonaro e essa direita ridícula que eles representam são os nossos únicos problemas. A esquerda pode ser ridícula de muitas maneiras também quando se trata de garantir os direitos da população LGBT.
Retomemos a Bolívia e vejamos a quantas andavam os direitos LGBT durante a administração de Morales. Apesar de ter permanecido por 13 anos no poder, Evo não produziu avanço que se refletisse em ganho real para a vida cotidiana da comunidade LGBT boliviana.
É fato que Evo Morales criou alguma proteção contra a discriminação por orientação sexual na letra da lei, mas essa suposta proteção não se reflete nas ruas. As pessoas LGBT ainda vivem nas sombras por receio de serem atacadas, mesmo em cidades como La Paz e Santa Cruz de la Sierra. Agora que o presidente boliviano renunciou e que fundamentalistas religiosos e milicianos estão agindo livremente no país com a conivência das forças de segurança, isso deve piorar.
Sem dúvida alguma, esse é um dos muitos prejuízos causados pela colonização católica espanhola. Infelizmente, não se transforma uma mentalidade excludente e perversa como essa sem políticas inclusivas. Isso foi exatamente o que o governo boliviano não fez. Apesar de seus 13 anos de poder e do massivo apoio popular, Evo Morales não atuou para criar mecanismos de combate à homofobia e transfobia no país, efetivamente.
Vale destacar que a homofobia e a transfobia não faziam parte das culturas indígenas andinas. Era bem o contrário. Antes da colonização, a homossexualidade e as expressões de gênero que se aproximam da transgeneridade como entendida hoje eram terreno pacífico entre as tribos no território que hoje é chamado de boliviano. Foi a catequização, com seu terrível desprezo por tudo o que tem a ver com a sexualidade, especialmente quando se trata de diversidade sexual, que perverteu a mentalidade dos povos indígenas, pavimentando o terreno para muita violência e morte motivadas por homofobia e transfobia - dois elementos estranhos àquelas culturas, originalmente.
Podem dizer que a Bolívia incluiu a discriminação por orientação sexual em sua Constituição, mas esta é a mesma Bolívia cuja Carta Magna veta expressamente o casamento entre pessoas do mesmo sexo, perpetuando a noção de que duas pessoas do mesmo gênero não podem constituir conjugalidade e, consequentemente, formar um núcleo familiar.
Outra contradição diz respeito à transexualidade na Bolívia. Ao mesmo tempo em que a nação de Evo Morales permitiu que homens e mulheres transexuais tivessem o direito de mudar de documentos, ela também impediu que essas pessoas pudessem se casar ou adotar filhos. Ora, se a cidadania não é plena, o que ela é, afinal? Uma cortina de fumaça? Um cala-boca? Uma estratégia para agradar a dois senhores - tanto os donos do poder religioso produtor de neuroses encapsuladas em dogmas quanto os cínicos que se contentam em fazer de conta que o país avançou?
A Venezuela governada por Maduro, e anteriormente por Chavéz, segue na mesma trilha. Nicolás Maduro chegou a deplorar seu adversário Henrique Capriles na campanha de 2017, dizendo: "Eu, sim, tenho mulher. Escutaram? Eu gosto de mulheres". Na sequência, beijou sua mulher, que também é alta dirigente chavista, a senhora Cília Flores. (https://brasil.elpais.com/brasil/2017/04/10/opinion/1491860659_262989.html)
Caprilles respondeu de modo civilizado: “Quero enviar uma palavra de rechaço às declarações homofóbicas de Maduro. Não é a primeira vez. Creio numa sociedade sem exclusão, na qual ninguém se sinta excluído por sua forma de pensar, seu credo, sua orientação sexual”.
Bem diferente de Morales, Chavéz e Maduro, o ex-presidente uruguaio Pepe Mujica disse que não legalizar o casamento homoafetivo seria "torturar pessoas desnecessariamente". (http://brasil.elpais.com/tag/jose_mujica/a)
Outra líder de esquerda que fez bonito foi a ex-presidente Cristina Kirchner, que aceitou ser madrinha do filho de duas lésbicas. E não apenas isso, tanto Pepe Mujica como Cristina Kirchner se posicionaram e trabalharam para o reconhecimento do casamento homoafetivo durante seus governos como presidentes da república.
No Equador, quem fez história recentemente foi a Corte Constitucional, que reconheceu o casamento homoafetivo em 13 de junho deste ano. A decisão é válida em todo o país.
Agora, Equador, Brasil, Colômbia e Argentina são os quatro países que reconhecem o casamento homoafetivo em todo o território nacional. Mas, antes de concluir precipitadamente que já conseguimos o suficiente, lembre-se que a América Latina é composta por 20 países independentes. Isso quer dizer que o casamento igualitário só uma realidade nacional em 1/5 dos países latinoamericanos.
É preciso que tanto a direita como a esquerda brasileiras repensem suas atitudes para com a população LGBT. Mais do que isso, é fundamental que os cidadãos LGBT se posicionem, exijam seus direitos, e não votem em candidatos homofóbicos e transfóbicos. Caso se eleja para algum cargo, é preciso que esse cidadão ou essa cidadã LGBT trabalhe em favor da comunidade sexodiversa e transgênera, rejeitando alianças que possam transformar esses direitos em moedas de troca para capitalizar junto a setores retrógrados e obscurantistas, sejam eles quais forem.
Como disse meu amigo Julio Marinho no Twitter anteontem (9 de novembro), "Nós, os gays, apanhamos de tudo q é lado. Tenho memória, ñ esqueço a piadinha 'Pelotas exportadora de viados', 'filho gay é falta de porrada', 'no meu governo ñ faremos propaganda de opções sexuais'."
Só para não deixar dúvidas, a primeira frase foi dita pelo ex-presidente Lula; a segunda pelo atual presidente Jair Bolsonaro quando ainda era deputado federal; e a terceira foi proferida pela ex-presidenta Dilma ao se render à chantagem da ala fundamentalista liderada por Jair Bolsonaro numa manobra que ainda seria usada para elegê-lo mais tarde - a do famigerado e inexistente 'kit gay'.
Já ouvi gente de liderança LGBT dizer em defesa da inércia de governos petistas e aliados em face das demandas da comunidade LGBT o seguinte: "Não podemos pensar só na causa LGBT."
Como assim?
É justamente o contrário! Pensa-se em tudo, menos na causa LGBT. Quando pessoas que se identificam como lideranças LGBT colocam a própria agenda que dizem defender em segundo plano, alguma coisa muito patológica deve estar em andamento no tecido social, inclusive em seu núcleo de atuação. E por isso, digo claramente que está na hora de cobrar dos governos a efetivação plena da cidadania da população LGBT. Não nos interessa demagogia, Queremos oportunidades iguais, respeito aos nossos direitos fundamentais e a todos os outros que deles derivam. Cabe a nós mostrar que eles NÃO PODEM nos ignorar e NÃO VÃO nos enganar com medidas que maquiam mal e porcamente a homofobia e a transfobia que esses mesmos indivíduos (governantes, militares ou civis) se recusam a combater, seja de modo franco ou velado.
Não basta declarar a homofobia e a transfobia como crime de racismo se delegados se recusam a lavrar os boletins de ocorrência especificando que foi crime homofóbico ou transfóbico.
Não basta fazer congressos para saber quais são as demandas da população LGBT se depois o governo que os convocou diz que "não fará propaganda de 'opção' sexual".
Não basta criar secretarias ou departamentos pretensamente voltados para a inclusão da população LGBT se esta não consegue sequer orientação jurídica gratuita quando se vê agredida física, psicológica e moralmente por membros da sociedade civil ou até mesmo agentes do governo.
Não basta reconhecer o casamento entre pessoas do mesmo sexo se depois se permite discriminá-las em programas de habitação, educação e saúde financiados pelo poder federal, estadual ou municipal.
Não basta criar oportunidades de emprego se não houver conscientização pró-LGBT entre empregadores e dispositivos que garantam a empregabilidade dessa população, especialmente de pessoas trans e de pessoas cis gays ou lésbicas que não se enquadram no que essa sociedade homofóbica e transfóbica diz que é 'jeito de homem' e 'jeito de mulher'.
Não basta reconhecer o direito à adoção por casais cis homoafetivos ou por casais transgêneros se o governo não executa políticas de inclusão e respeito à diversidade sexual e de gênero nas escolas para onde os filhos desses casais serão enviados.
E isso é só a ponta do iceberg.
Enquanto, a população LGBT continua sendo discriminada e morta às dezenas e centenas, a maioria dos políticos não se incomoda com as bandeiras do arco-íris tremulando em seus comícios, desde que ninguém, em suas fileiras, exija que eles façam algo de concreto para efetivamente promoverem os direitos da comunidade que essas mesmas bandeiras representam.
É hora de dizer BASTA a esses canalhas, sejam do norte, do sul do leste ou do oeste. Nenhuma condescendência para com o fascismo ou para com o fundamentalismo religioso, não importa o rótulo.