Quinze vezes em que moralistas morderam a própria língua
Os moralistas e seus esqueletos no armário
Por Sergio Viula
É curioso — e ao mesmo tempo profundamente revelador — observar como alguns dos mais barulhentos fiscais da sexualidade alheia acabam tropeçando nos próprios discursos moralistas. São políticos, padres, pastores e líderes espirituais que ergueram bandeiras de “defesa da família tradicional”, que demonizaram a população LGBT+, que tentaram ditar regras sobre quem pode amar quem, mas que, quando as cortinas caíram, mostraram uma realidade de abusos, mentiras, exploração, crimes e contradições.
Há um padrão. E ele se repete com uma frequência que não pode mais ser ignorada.
Nesta postagem, reunimos 15 casos documentados, brasileiros e internacionais, envolvendo figuras públicas que se posicionaram contra os direitos LGBT+ — e que depois foram acusadas, flagradas ou condenadas em escândalos sexuais, muitos deles violentos. O objetivo não é sensacionalismo; é deixar evidente a hipocrisia de quem tenta restringir direitos enquanto comete, nas sombras, exatamente aquilo que condena publicamente ou algo ainda pior.
Porque, felizmente, a verdade sempre encontra uma brecha para sair do armário.
1) Pastor Marco Feliciano (Brasil)
Deputado federal e pastor, conhecido nacionalmente por declarações contra pessoas LGBT+. Em agosto de 2016, foi denunciado pela estudante Patrícia Lélis, que o acusou de tentativa de estupro e cárcere privado. A denúncia rendeu investigação policial e enorme repercussão. O caso gerou disputas judiciais, versões conflitantes e novos episódios em 2022, quando a denunciante voltou a falar sobre o episódio nas redes. Apesar das controvérsias processuais, o episódio marcou profundamente sua imagem e expôs contradições dentro do discurso moralista que sempre adotou.
2) Padre Frederico Cunha (Brasil/Portugal)
Condenado em Portugal em 10 de março de 1993 pelo homicídio do adolescente Luís Miguel, de 15 anos, em um caso permeado por relatos de abuso sexual. Após fugir da justiça portuguesa, viveu por anos no Brasil. Em 29 de fevereiro de 2024, o Vaticano publicou sua demissão do estado clerical. Seu caso é um dos mais emblemáticos da combinação entre violência sexual, abuso de poder religioso e um longo histórico de impunidade.
3) Pastor Marcos Pereira da Silva (Brasil)
Pastor e fundador da Assembleia de Deus dos Últimos Dias, famoso por discursos “contra o pecado” e por pregar supostas “curas espirituais”. Em 7 de maio de 2013, foi preso preventivamente após ser acusado por múltiplas fiéis de estupro e coerção espiritual. Em 12 de setembro de 2013, foi condenado em primeira instância a 15 anos de prisão. Seu ministério ficou marcado por denúncias de cárcere privado, agressões, ameaças e manipulação emocional.
4) João Batista dos Santos (Brasil)
Líder religioso condenado por praticar estupro contra uma adolescente de 13 anos sob justificativa de “cura” da sexualidade da vítima. Em 15 de setembro de 2020, recebeu pena de 20 anos e 6 meses pelo crime. O caso é particularmente chocante por envolver ideologia de “cura gay” como ferramenta de violência.
5) Pastor Ted Haggard (EUA)
Pastor influente e abertamente contrário aos direitos LGBT+. Em novembro de 2006, envolveu-se em um escândalo após o massagista Mike Jones revelar encontros pagos com ele, envolvendo sexo e metanfetamina. Haggard admitiu parte das acusações, renunciou ao ministério e se afastou temporariamente da vida pública.
6) Pastor Jimmy Swaggart (EUA)
Televangelista e crítico feroz de minorias sexuais. Em fevereiro de 1988, foi flagrado em um escândalo envolvendo uma trabalhadora do sexo. Ao vivo, chorou diante das câmeras pedindo perdão — apenas para, em 1991, se envolver em novo episódio semelhante. Continuou pregando em escala reduzida, mas jamais recuperou a credibilidade.
7) Televangelista Jim Bakker (EUA)
Fundador do PTL Club e figura moralista da TV cristã norte-americana. Em 1987, explodiu o escândalo envolvendo pagamento secreto para silenciar Jessica Hahn, que o acusava de abuso. Em 1988, foi indiciado por fraude, e em 1989, condenado a 45 anos de prisão, posteriormente reduzidos. Apesar de a condenação principal ter sido financeira, o caso sexual desencadeou toda a queda pública.
8) Pastor Bill Hybels (EUA)
Fundador da megachurch Willow Creek e líder global de pastores. Em 2018, várias mulheres denunciaram assédio e comportamento sexual inapropriado. Hybels renunciou imediatamente. Em fevereiro de 2019, uma investigação independente concluiu que as denúncias eram “credíveis e consistentes”. O caso abalou profundamente o movimento evangélico progressista norte-americano.
9) Líder evangélico Jerry Falwell Jr. (EUA)
Presidente da Liberty University e defensor público de agendas anti-LGBT+. Em agosto de 2020, o caso que tornou público o relacionamento extraconjugal da esposa com Giancarlo Granda — e sua própria participação indireta — levou à renúncia explosiva do líder conservador. A hipocrisia de quem pressionava alunos a seguir códigos de conduta rígidos ficou evidente.
10) Deputado Wes Goodman (EUA)
Deputado estadual de Ohio e ativista “pró-família”, com discurso explicitamente anti-LGBT+. Em novembro de 2017, foi flagrado mantendo relações sexuais com um homem em seu próprio gabinete legislativo. Renunciou imediatamente. Investigações posteriores mostraram outros casos de assédio e conduta sexual imprópria.
11) Evangelista Ravi Zacharias (Internacional)
Apologista cristão conservador com grande influência global. Após sua morte em maio de 2020, denúncias começaram a surgir. A RZIM encomendou uma investigação independente, cujo relatório, divulgado em fevereiro de 2021, confirmou múltiplos casos de abuso sexual, exploração e manipulação espiritual. O escândalo implodiu o ministério internacional.
12) Líder espírita Kléber Aran Ferreira da Silva (Brasil)
Líder espiritual brasileiro condenado por agressões e abuso sexual de seguidoras. Em 7 de novembro de 2024, foi condenado pela Justiça da Bahia a 20 anos e 5 meses de prisão. O caso ganhou destaque nacional pela estrutura hierárquica coercitiva criada em torno de seu nome, típica de líderes manipuladores que exploram vulneráveis.
13) Médium João de Deus — João Teixeira de Faria (Brasil)
Médium internacionalmente famoso, atraía multidões à cidade de Abadiânia. Em dezembro de 2018, dezenas de mulheres o denunciaram por estupro e abuso sexual. Foi preso em 16 de dezembro de 2018. Nos anos seguintes, acumulou diversas condenações, totalizando centenas de anos de pena em primeira instância. Seu caso se tornou um dos maiores escândalos de abuso espiritual e sexual da história do Brasil.
14) Pastor Sérgio Amaral Brito (Brasil)
Pastor, autodeclarado psicanalista e terapeuta. Preso em 16/12/2021, teve prisão preventiva decretada em 14/01/2022 por abusar sexualmente de ao menos oito mulheres durante supostas sessões terapêuticas. Utilizava o chamado “abraço terapêutico”, além de pedir fotos íntimas, lingerie e contato físico invasivo como suposto “tratamento”.
15) Ryan J. Muehlhauser (Estados Unidos)
Pastor de Minnesota ligado a organização cristã anti-gay. Preso em novembro de 2012, responde a oito acusações criminais por abusar sexualmente de dois homens durante sessões de suposta “cura gay”. Os abusos ocorreram entre 2010 e 2012. Casado e pai de dois filhos, usava seu papel religioso para manipular as vítimas, que acreditavam estar recebendo aconselhamento espiritual legítimo.
Conclusão: A máscara sempre cai — e o amor sempre vence
Cada um desses casos expõe algo profundo: não é sobre moral, nem sobre fé, nem sobre família. É sobre controle. É sobre usar a religião e a política como ferramentas para perseguir, humilhar e restringir direitos — enquanto, por trás das cortinas, esses mesmos “guardiões da moral” cometem abusos, mentem para seus seguidores e violam exatamente aquilo que dizem defender, mas o que defendem de fato é a exclusão de pessoas honestas que apenas querem viver suas vidas autenticamente, sejam elas lésbicas, gays, bissexuais, transgêneras, intersexuais, assexuais, etc. (LGBTQIA+).
A boa notícia?
Eles estão caindo.
Um por um.
Enquanto isso, a comunidade LGBT+ segue avançando, ocupando espaços, conquistando direitos, vivendo amores reais, construindo famílias reais — sem precisar esconder nada, sem mentir para ninguém, sem destruir vidas para preservar aparências.
No fim das contas, quem vive no armário da hipocrisia sempre será vencido pela luz da verdade.
E essa luz hoje se chama diversidade, igualdade, justiça e democracia.
Continuemos firmes contra o fascismo, contra o fundamentalismo — e sempre ao lado do amor em todas as suas formas. E contra os abusadores de qualquer espécie, a Lei!
Os Versículos Que a Religião Não Quer Que Você Leia
Por Sergio Viula
A Bíblia costuma ser apresentada como fonte absoluta de moralidade, orientação e consolo. Mas uma leitura completa — sem seleções convenientes, sem sermões intermediando e sem o filtro emocional da devoção — revela algo muito diferente: um documento profundamente humano, marcado por medo, violência, perversidades, contradições e estruturas sociais que nada têm a ver com nossos valores éticos atuais.
E é justamente nos versículos menos citados, aqueles que raramente aparecem em cultos ou catequeses, que essa humanidade imperfeita se mostra com mais clareza. Eles não estão escondidos: estão ali, no coração do texto. Mas a maioria das tradições religiosas aprendeu a fingir que não existem.
Lê-los é desconfortável, mas essencial — especialmente quando o mesmo livro é usado até hoje para condenar pessoas LGBTQIA+, mulheres, descrentes e qualquer um que fuja do padrão idealizado por sociedades antigas.
O objetivo desta postagem não é atacar quem tem fé, mas examinar com honestidade aquilo que muitas instituições insistem em ignorar.
I. A Leitura Completa: Quando a Alfabetização Revelou o que a Tradição Omitia
Durante séculos, pouquíssimas pessoas sabiam ler. A Bíblia era ouvida, não lida — e sempre com interpretação mediada por líderes religiosos. Quando a alfabetização se expandiu, especialmente a partir do século XVIII, algo inevitável aconteceu: as pessoas começaram a notar o que antes passava despercebido.
Contradições claras como:
Duas histórias da criação (Gênesis 1 e Gênesis 2).
Duas genealogias de Jesus, incompatíveis entre si (Mateus 1 e Lucas 3).
Duas versões dos Dez Mandamentos (Êxodo 20 e Deuteronômio 5).
Deus que “não muda nunca” (Malaquias 3:6) versus Deus que “se arrepende” de suas decisões (Gênesis 6:6 e Jonas 3:10).
Essas tensões internas começaram a gerar perguntas legítimas. Mas foi quando olharam para os versículos mais difíceis que a fachada de perfeição começou a ruir por completo.
II. Quando a Moralidade Sagrada Reflete Violência Humana
1. Escravidão como prática aceitável
Em várias partes da Bíblia, a escravidão é normalizada — não apenas tolerada, mas regulamentada.
Êxodo 21 permite vender a própria filha como escrava.
Êxodo 21:20–21 permite espancar escravos desde que não morram rapidamente, “pois são propriedade”.
Não há metáfora aqui. São leis.
2. Controle sobre mulheres como propriedade masculina
Textos como:
Números 5 — o ritual da “água amarga”, usado para humilhar mulheres suspeitas de infidelidade.
Deuteronômio 22:28–29 — se um homem estupra uma moça não-noiva, deve pagar ao pai dela e casar-se com ela. O agressor não é punido; a vítima é condenada à convivência perpétua.
3. Mutilação e punição extrema
Deuteronômio 25:11–12 — se uma mulher toca os genitais de um homem para defender o marido numa briga, sua mão deve ser cortada. Sem julgamento, sem alternativa.
4. Genocídio sancionado
Deuteronômio 20:16–17 — ordem explícita para exterminar povos inteiros, sem poupar crianças.
1 Samuel 15:3 — comando para matar homens, mulheres, crianças e até animais.
Se esses versículos fossem descobertos hoje em algum grupo extremista, seriam considerados expressão de fundamentalismo violento.
III. Narrativas que Revelam um Deus de Vergonha, Medo e Testes Cruéis
1. O massacre ordenado por Moisés
Em Números 31, Moisés fica indignado porque os soldados pouparam mulheres e ordena que matem todos os meninos e todas as mulheres que não fossem virgens. Apenas as virgens deveriam ser poupadas para uso posterior. É uma das passagens mais violentas da Bíblia.
2. O “teste” de Jó
O livro de Jó mostra Deus permitindo que Satanás destrua a vida de um homem justo: mata seus filhos, arruína seus bens e sua saúde — tudo para ganhar uma disputa. No final, Deus “compensa” Jó com novos filhos, como se vidas humanas fossem intercambiáveis. É tratado como lição de fé.
3. O dilúvio como punição total
Em Gênesis 7, Deus decide destruir toda a vida na Terra por causa da maldade humana. Isso inclui bebês, crianças, pessoas comuns que nunca apareceram na história. O episódio é infantilizado em histórias para crianças — mas é um genocídio global.
4. A história de Ló
Em Gênesis 19, Ló oferece suas filhas para uma multidão violenta para proteger visitantes desconhecidos. Depois, embriagado por elas, torna-se pai de seus próprios netos. E, apesar disso, é chamado de “justo”.
IV. Quando Deus é Apresentado Como Extremamente Punitivo
O episódio das ursas: Em 2 Reis 2:23–24, crianças zombam de Eliseu por ele ser careca. Ele as amaldiçoa, e duas ursas saem da floresta e despedaçam 42 delas. Um episódio brutal tratado como “lição de respeito”.
Salmo 137:9 — "Feliz o que pegar os teus filhos e esmagá-los contra a rocha.”
Versículo citado raramente — e nunca em cultos de domingo.
V. Que Moralidade é Essa? Por Que Esses Versos Importam Hoje?
A existência desses versículos revela algo essencial: a Bíblia não é um manual ético perfeito. É um documento da antiguidade, refletindo sociedades patriarcais, violentas, tribais e regidas pelo medo. Não é “ruim” por isso — é apenas humano.
Mas o problema surge quando:
Usam versos seletivos para condenar LGBTQIA+, mulheres, ateus ou dissidentes.
Ignoram os versos cruéis que contradizem a moral moderna.
Afirmam perfeição textual onde há contradição e violência.
É aqui que a hipocrisia religiosa aparece:
Citam Levítico para atacar LGBTQIA+, mas ignoram que o mesmo livro proíbe roupas de tecido misto, corte de cabelo, tatuagem e comer camarão.
Chamam a Bíblia de “base da moral”, mas rejeitam a esmagadora maioria das leis que ela realmente contém.
VI. A Evolução Ética: O Ser Humano Foi Adiante — o Texto, Não
A escravidão acabou não porque a Bíblia mandou, mas porque a humanidade percebeu que era moralmente indefensável.
O mesmo vale para:
direitos das mulheres,
democracia,
liberdade religiosa,
direitos LGBTQIA+,
proibição de tortura e violência ritual.
O que mudou não foram os textos — foi a humanidade.
As sociedades menos religiosas do mundo hoje são — estatisticamente — mais pacíficas, igualitárias, democráticas e prósperas. Não porque rejeitaram a espiritualidade, mas porque abraçaram a ética baseada em compaixão, direitos humanos e razão.
VII. O Papel dos Versículos Esquecidos na Luta LGBTQIA+
É impossível ignorar que textos usados para oprimir pessoas LGBTQIA+ vêm do mesmo conjunto de leis que:
justificam escravidão,
legitimam violência contra mulheres,
punem blasfêmia com morte,
ordenam genocídios.
A pergunta honesta é:
Por que alguns versos valem ainda hoje, enquanto outros são descartados como “cultura da época”?
A resposta é simples: conveniência.
VIII. Conclusão: A Coragem de Olhar o Texto Sem Medo
Ler esses versículos não é perder a fé — é abandonar a ilusão de perfeição.
E abrir espaço para algo melhor:
uma ética baseada em empatia,
um compromisso com a dignidade humana,
um entendimento maduro da história,
e a certeza de que podemos — e devemos — fazer melhor do que sociedades que viveram antes de ciência, direitos civis e democracia.
Os versículos mais desconfortáveis da Bíblia não mostram o fracasso da humanidade. Eles mostram sua evolução. São lembretes poderosos de que o progresso moral não veio de revelações, mas da coragem humana de dizer:
“Isso não está certo — e nós podemos fazer melhor.”
Pastor dos EUA leva rifle AR-15 ao púlpito e transforma sermão em culto armado
Por Sergio Viula
Um vídeo que vem circulando nas redes mostra o pastor Philp Thornton, da Legacy Faith Church, em Harrisburg, Pensilvânia (EUA), conduzindo um sermão com um rifle semiautomático AR-15 nas mãos — o mesmo tipo de arma usada em inúmeros massacres escolares e ataques em massa nos Estados Unidos.
Durante a pregação, Thornton fala sobre “fé, liberdade e autodefesa”, associando o armamento à “proteção divina” e à “responsabilidade do homem cristão de defender sua família”. O pastor chega a erguer a arma diante da congregação, dizendo que “Deus não chamou o Seu povo para ser fraco”. O gesto foi aplaudido por fiéis, muitos dos quais também exibiam símbolos cristãos e bandeiras norte-americanas.
O episódio reacende o debate sobre o nacionalismo cristão armado — uma ideologia que mistura fé evangélica, patriotismo extremo e o culto às armas. Essa corrente vem crescendo especialmente entre grupos ligados à direita cristã nos Estados Unidos, que enxergam o porte de armas não apenas como direito constitucional, mas também como um “mandato divino”.
Especialistas alertam que esse tipo de discurso representa uma ameaça tanto à segurança pública quanto à própria integridade da fé cristã, ao distorcer princípios religiosos em nome da violência. Em um país que enfrenta tiroteios quase diários, o uso de um fuzil de guerra em um púlpito simboliza a perigosa fusão entre fundamentalismo religioso e cultura das armas.
O vídeo do sermão de Philp Thornton — disponível no YouTube — rapidamente se espalhou, gerando indignação e preocupação. Muitos internautas apontaram o contraste entre a mensagem de Jesus, baseada na não violência, e o ato de empunhar uma arma de guerra em nome de Deus.
Esse tipo de cena reforça a necessidade de discutir com urgência o papel das igrejas e líderes religiosos na propagação de ideologias extremistas. Quando a fé se torna veículo de intolerância e violência, ela deixa de ser libertadora para se tornar instrumento de opressão.
Reflexão final – por Sergio Viula
Ver um pastor pregar com uma AR-15 nas mãos é testemunhar o exato oposto do que qualquer mensagem de paz deveria inspirar. É o retrato de uma espiritualidade sequestrada pela paranoia e pela idolatria da força. Essa fusão entre fé e violência não é um acidente: é o resultado de anos de manipulação religiosa, usada para alimentar o medo e justificar o ódio.
Enquanto líderes religiosos transformam armas em símbolos sagrados, o mundo precisa urgentemente de vozes que reafirmem a humanidade, a empatia e a convivência pacífica — valores que transcendem religiões. A fé, se quiser continuar sendo relevante, deve ser ponte e não gatilho.
Trecho de entrevista com Judith Butler publicada em vídeo em 30 de março de 2025
Eu entendo que essas pessoas estão sofrendo, eu entendo. Elas têm uma sensação de falta de direito, de que não têm um lugar no mundo. Talvez haja uma explicação social e econômica para o que aconteceu com elas. Como chegaram a esse ponto de alienação? Por que não têm empregos que lhes deem satisfação? Por que não fazem parte de comunidades que lhes mostrem outros valores? Acho que precisamos de uma análise histórica disso, o que significa suspender o julgamento. Não é só dizer: “Oh meu Deus, são pessoas terríveis.” Estamos perguntando: “Como essa coisa terrível aconteceu?” Na medida em que a extrema-direita radical é evangélica ou participa de uma forma de nacionalismo cristão, como ocorre não apenas nos Estados Unidos, mas também em lugares como a Hungria, o gênero passa a ser entendido como algo que desafia a primazia da família heterossexual e das diferenças distintas entre homens e mulheres — a suposta natureza divina do sexo e todas as ordens sociais que se baseiam nisso, inclusive a própria civilização.
Oli Dugmore: Judith Butler, bem-vinda de volta ao Politics.
Judith Butler: Joe, obrigada. Estou feliz por estar aqui, é um grande prazer.
Oli Dugmore: Para quem não está familiarizado com você ou não viu sua última entrevista, como você se apresentaria?
Judith Butler: Sou Judith Butler. Sou professora titular na pós-graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley e autora de diversos livros, mais recentemente Who’s Afraid of Gender, publicado pela Penguin, agora disponível em versão de bolso — acessível para estudantes, eu acho.
Oli Dugmore: Acho que, como da última vez, é útil começar com uma breve definição de termos. Você poderia explicar o que a palavra "gênero" significa para você? Talvez fosse útil indicar onde seu uso do termo pode ser um pouco diferente da forma como outras pessoas o usam.
Judith Butler: Essa é uma ótima pergunta. Nos meus primeiros anos — talvez há 35 anos — eu tinha uma teoria de gênero. Publiquei e defendi essa teoria. Mas agora estou fazendo outra coisa, que não é oferecer uma definição de gênero, e sim acompanhar a forma como o termo se tornou um tema altamente inflamado na vida pública. Algumas pessoas usam “gênero” para se referir à identidade de gênero — como a pessoa se identifica: você é homem, mulher, ou se identifica de outro modo? Na história do feminismo, “gênero” era uma categoria de análise — uma forma de rastrear relações de poder, de pensar desigualdades sistêmicas, exclusões. Era uma estrutura para compreender como o poder é distribuído com base em ideias de masculinidade e feminilidade. Pode parecer estranho, mas eu não tenho uma definição única de gênero. Acho que estou mais interessada em como as pessoas se aproximam desse conceito e no que elas fazem com ele. Hoje, o termo tem tantos significados que é difícil acompanhar. Então, em vez de ser alguém que defende uma teoria de gênero específica, sou mais uma crítica que acompanha o que tem acontecido com esse termo. E isso é significativo, no sentido de que sim, acredito que muitas pessoas têm uma ideia falsa sobre o que é ou pode ser o gênero — mas eu não as retorno a uma definição única. Sugiro que considerem a variedade de abordagens que encontramos, por exemplo, nos programas de estudos de gênero. Não posso resolver esses debates. Mas é importante ver que existem os materialistas, os interseccionais, os pós-estruturalistas, os historiadores — e entre eles há diferenças profundas entre historiadores culturais e econômicos. Devemos manter essas abordagens abertas e valorizar a complexidade desses debates. Mas estamos vivendo uma época em que tudo isso está sendo silenciado — ou quando uma caricatura única do que é gênero substitui um campo de estudo realmente complexo, representado em toda universidade de pesquisa importante no mundo.
Oli Dugmore: Isso talvez não responda diretamente à pergunta, mas foi uma ótima resposta, para ser honesto.
Judith Butler: Obrigada.
Oli Dugmore: Sem falar especificamente sobre gênero, você me fez pensar se isso não faz parte de uma tendência acadêmica ou discursiva mais ampla de tentar reduzir e simplificar as coisas. Pode ser sobre gênero, economia, política — escolha o tema... pode ser política, economia, gênero — qualquer um desses temas está sendo simplificado.
Judith Butler: Sim, isso é parte de uma tendência anti-intelectual, onde se desconfia do pensamento crítico, da complexidade, da dúvida. As pessoas querem respostas simples. Mas vivemos em um mundo complexo, com histórias e estruturas complexas. E quando você simplifica demais, você também apaga vozes, histórias e experiências. Você não só fecha a porta para o pensamento crítico, como também exclui pessoas. É isso que está em jogo — uma luta sobre quem tem o direito de existir, de ser reconhecido, de ser ouvido. E isso não se limita ao gênero, mas é evidente no modo como gênero tem sido atacado. Pessoas trans, por exemplo, são colocadas como ameaças simbólicas a uma ordem tradicional. E isso serve a projetos políticos autoritários que se alimentam do medo.
Oli Dugmore: Então estamos vendo uma reação não só contra ideias, mas contra pessoas reais.
Judith Butler: Exatamente. E a retórica contra o “gênero” — entre aspas — tem servido como catalisador para movimentos reacionários em vários países. Isso aconteceu na Hungria, na Polônia, no Brasil, na Itália. Eles usam o termo “ideologia de gênero” como uma forma de nomear o inimigo — mas é um inimigo inventado. É uma forma de demonizar qualquer coisa que desafie a autoridade patriarcal ou nacionalista. E, ao fazer isso, colocam em risco a vida de pessoas que já são vulneráveis.
Oli Dugmore: O que você diria para quem tem medo dessas mudanças ou sente que está “perdendo seu lugar” no mundo?
Judith Butler: Acho que o medo é real. Há sofrimento real — pessoas se sentem deixadas para trás, sem oportunidades, sem sentido. Mas culpar minorias por isso é um desvio. Devemos olhar para as estruturas econômicas e sociais que criam esse sentimento de abandono. E precisamos construir solidariedade — não mais exclusão.
Judith Butler: Há um esforço, hoje, de simplificar conceitos complexos para transformá-los em armas políticas. “Gênero”, por exemplo, foi transformado em uma caricatura, esvaziado de sua riqueza teórica e empírica. As pessoas usam a palavra como se fosse uma ameaça, sem entender ou querer entender o que ela significa de fato. Isso é parte de uma campanha global de desinformação. E, frequentemente, isso vem acompanhado de ataques contra universidades, pesquisadores, professores e programas de estudos de gênero. A ideia é deslegitimar o saber crítico, especialmente aquele que desafia normas tradicionais de poder. Então, quando perguntam o que “gênero” significa para mim, eu respondo com mais perguntas do que definições. Porque é justamente o espaço do debate, da dúvida, da investigação que está sendo atacado. E eu quero defender esse espaço. Quero defender o direito de pensar criticamente sobre gênero, sobre identidade, sobre poder. Quero defender o direito das pessoas trans, não binárias, queer, de existirem sem serem demonizadas. Quero defender o direito de todos nós a uma linguagem mais ampla, mais justa, mais aberta. Porque sem isso, o que nos resta é o autoritarismo — a imposição de uma única verdade, de uma única forma de viver.
E esse autoritarismo não é apenas político. Ele invade o cotidiano das pessoas — nas escolas, nas famílias, nos espaços públicos. Quando alguém é impedido de usar seu nome, de vestir-se como deseja, de ser reconhecido em sua identidade, isso é violência. É uma forma de dizer: “Você não pertence.” E isso não deveria ser aceitável em nenhuma sociedade que se diga democrática. Muitas vezes me perguntam: “Por que gênero importa tanto?” E eu respondo: porque é através do gênero que se controlam corpos, desejos, futuros. É através do gênero que se impõem normas sobre quem pode amar, trabalhar, andar na rua, viver com dignidade. E quando essas normas são questionadas, aqueles que detêm o poder reagem. Eles dizem que estão defendendo a “família”, a “moral”, a “civilização”. Mas o que estão realmente defendendo é o seu lugar exclusivo nesse mundo — um lugar construído sobre a exclusão dos outros.
É por isso que precisamos de solidariedade. Não apenas entre pessoas LGBTQIA+, mas entre todas as pessoas que querem viver em um mundo mais justo. A luta pelo reconhecimento de gênero é também uma luta contra o racismo, contra o classismo, contra o colonialismo. Não podemos separar essas lutas. O que está em jogo é o tipo de sociedade que queremos construir. Será uma sociedade que escuta as pessoas, que acolhe a diversidade, que protege os mais vulneráveis? Ou será uma sociedade que reforça fronteiras, normas rígidas, hierarquias violentas? Essa escolha está diante de nós todos os dias — nas leis, nas escolas, nas redes sociais, nas conversas em família. E cada um de nós tem um papel. Não se trata apenas de teoria. Trata-se de vida vivida. Trata-se de sobrevivência. Trata-se de dignidade.
Por isso escrevi Who’s Afraid of Gender? — para mostrar que o medo em torno do gênero é fabricado, e que ele serve a propósitos políticos muito claros. Querem que tenhamos medo uns dos outros. Querem que as pessoas sintam que seus filhos estão em perigo porque alguém usou o banheiro errado. Querem distrair as pessoas da verdadeira desigualdade: a econômica, a racial, a estrutural. Mas nós não precisamos aceitar essa lógica do medo. Podemos responder com cuidado, com escuta, com pensamento. Podemos reconstruir laços, comunidades, sentidos de pertencimento. E isso começa com reconhecer que gênero não é uma ameaça. Gênero é uma parte da vida humana. Uma parte que pode ser vivida de muitas maneiras, com alegria, com dignidade, com liberdade.
Oli Dugmore: Judith Butler, muito obrigado por esta conversa. Foi um enorme privilégio poder ouvi-la.
Judith Butler: Obrigada a você. Foi um prazer. E espero que sigamos todos pensando — e sentindo — juntos.
Muita gente está abismada com a série Adolescência na Netflix como este crime fosse a exceção, algo novo e surpreendente. Não é. Veja por quê.
Por Sergio Viula
Hoje, vamos conversar sobre uma coisa que está na cabeça de muita gente por causa da série Adolescência, produzida pela Netflix, que fala sobre um jovem considerado um incel.
O que é um incel?
Para começar, incel é o indivíduo que é celibatário involuntariamente. Ele não quer ser celibatário, mas o é por força das circunstâncias. Na verdade, essa palavra foi criada por uma mulher que se sentia frustrada porque não conseguia um parceiro. Pasmem, mas isso foi na década de 90. Ela se dizia, então, uma celibatária contra a vontade. Talvez até de uma forma divertida. Posteriormente, porém, esse termo ganhou os fóruns da Internet – alguns até bastante esquisitos, bem underground mesmo – e passou a caracterizar aqueles homens que se sentem frustrados porque, segundo eles, não conseguem sexo, e culpam as mulheres, dizendo que elas têm expectativas muito altas, que são muito independentes e muito exigentes, e que geralmente querem caras bem-sucedidos. Na visão deles, bem-sucedidos seriam os caras bonitos e cheios de dinheiro.
Bom, para começar, quem não quer um marido desses, né? Mas não é sobre homens desejáveis que eu quero falar. Na realidade, o que acontece é que os incels geralmente apresentam essa tendência para a autovitimização. Eles acreditam que são vítimas do sistema – um sistema, segundo eles, corrompido por causa do feminismo, ou seja, da luta das mulheres por direitos iguais. Eles também têm uma visão fatalista da realidade, uma vez que acreditam que há coisas fora do controle deles que determinam a solidão na qual estão mergulhados. Esses fatores alheios à sua vontade seriam sua própria genética e sua aparência física. Outro fator fora do controle deles seria a superficialidade das mulheres, que, segundo eles, é uma das características femininas que dificultam a interação deles com o sexo feminino e a com a obtenção de relações sexuais. Lembrando que sexo é o verdadeiro objetivo final de um incel. Eles não querem manter com as mulheres uma relação multifacetada e profunda entre indivíduos em posição de igualdade; eles querem dominá-las.
Quando um incel vê uma mulher, o que ele mais quer é transar com ela. E o que ele mais odeia é justamente o fato de não conseguir transar com ela.
A terminologia incel
Os incels usam terminologias inglesas tanto para falar sobre os homens que têm vantagem como para se referir às mulheres que supostamente não dão a mínima para a existência deles. São termos como, por exemplo, "Chad". Estes são os homens considerados geneticamente privilegiados e altamente desejáveis. Por outro lado, "Stacy" seriam as mulheres que só pensam em se relacionar com os "Chads" – os homens de cuja aparência elas gostam e em cujo sucesso elas têm interesse.
Os incels acreditam também que os homens com essa aparência têm mais chances de sucesso e, consequentemente, também têm mais chances de conquistar mulheres. Afinal, eles são belos e por isso acabam sendo bem-sucedidos.
"Black pill" seria essa visão extremamente negativa, pessimista, de que a aparência é o único valor para a escolha de um parceiro. E aí, vocês podem pensar logo em "red pill", não é? Esse termo agora anda bem famosinho também. “Red pill” é essa ideia de que alguns homens "acordaram" para o fato de que estão vivendo num mundo invertido, ou seja, um mundo em que as mulheres dominam e humilham os homens em vez do contrário.
Pare e pense sobre isso. Essa premissa é estúpida por dois motivos: Primeiro, a mulher não está dominando o homem nem o humilhando quando apenas busca emancipação e autonomia. Segundo, o homem não é naturalmente - ou por ordem divina - superior à mulher em nada. Tudo isso é mito.
A verdade é que os homens sempre se sentiram muito “garanhões”, verdadeiros reprodutores. Mas as mulheres hoje em dia não precisam deles nem mesmo para isso. Elas podem ter filhos sem precisar se deitar com quem quer que seja. Elas podem ter filhos por inseminação artificial, ou por acordos com homens da confiança delas, que podem fazer um filho e deixar a criação deste por conta delas, justamente porque elas optaram por isso. Elas também podem adotar. Enfim, existem mil métodos para que uma mulher tenha filhos, se quiser, sem precisar se casar com quem quer que seja. E ela tem todo o direito de ter ou não ter filhos, com ou sem sexo.
Religião como produtora e mantenedora do machismo
A frustação maior desses caras é que eles acham que a mulher existe para servi-los. Isso também é um reflexo dessa cultura judaico-cristã e até islâmica, que é desgraçadamente misógina, que coloca a mulher como serva do homem. O homem seria o cabeça do lar, o senhor da mulher. E existem passagens absurdas, inclusive no Novo Testamento, que falam sobre isso - que o homem é a cabeça da mulher, assim como Cristo é a cabeça da igreja.
Ora, se Jesus pode mandar na igreja como ele bem entender, então o homem pode mandar também na mulher. E se a igreja deve ficar submissa a Cristo, a mulher deve permanecer submissa ao homem. Quem nunca ouviu isso que me atire a primeira pedra?
Icels precisam de ajuda, mas não os subestime
Um incel que ainda não chegou às vias de fato no crime, pode e deve receber atendimento psicossocial em liberdade, é claro. Mas existem incels que já violentaram e até mataram mulheres. Estes devem receber esse tratamento já encarcerados, porque cometeram crimes. Não podem ficar inseridos no meio social e nem ter acesso algum à Internet. Vale ressaltar que a violência cometida por esses caras pode ser de vários tipos: violência verbal, simbólica, sexual, chegando à tortura e ao assassinato, como foi o caso do garoto que, lá na série da Netflix, mata a colega de escola a facadas. Ainda que isso possa parecer a exceção, isso é, na verdade, o resultado final de um longo processo de desumanização da mulher e da redução de sua existência a servir o homem em tudo, inclusive sexualmente, querendo ela ou não.
Os estereótipos criados pelo machismo são o estopim
O machista gosta de pensar que as mulheres têm que ser servas submissas, e que toda mulher que não se encaixa nesse perfil é fútil, interesseira, vulgar, e assim vai: "Não se dá o respeito", como eles adoram dizer por aí. E, pior, algumas mulheres, imbecilmente, repetem isso.
Não! Isso está estupidamente errado. Toda mulher merece respeito, e nenhuma mulher é obrigada a fazer seja lá o que for para ter o seu direito à dignidade garantido. Ela pode tomar as decisões que bem entender. E se essas decisões implicarem em quebra da lei, ela será punida nas bases da lei, assim como o homem. Ela terá oportunidades idênticas ao homem na sociedade, desde que essa sociedade seja saudável. Se não for saudável, equilibrada e justa, então essas mulheres não terão as mesmas oportunidades e sua luta por emancipação estará mais do que justificada. Isso é o que vemos em sua pior configuração no Afeganistão, mas não sew enganem: O Brasil ainda está muito aquém do que devia ser nesse quesito.
Os homens em geral, mas os incels, principalmente, muitas vezes, reduzem as mulheres à categoria de um prêmio. Isso fica muito claro quando homens com dinheiro e poder oferecem coisas muito boas e caras a certas mulheres interesseiras. Assim que elas aceitam essa barganha, elas se tornam seus troféus. Aliás, se você está preocupado em ter uma boa relação, devia ficar feliz que mulheres assim já sejam eliminadas do seu leque de opções, porque elas vão atrás desses trastes imprestáveis, geralmente por interesse “comercial”. Você devia ficar feliz por não cair nessa armadilha, pois essa mulher que não está disponível para você significa, na verdade, menos um problema na sua vida, meu caro.
Todavia, isso não dá direito a um incel ou qualquer outro homem de cometer um crime contra essa mulher nem de atacar aquele que a tem como parceira, simplesmente por não ter conseguido o que este agora exibe orgulhosamente por onde passa. De um modo geral, nenhum ato de violência que não seja em legítima defesa e com força proporcional pode ser justificado.
Vale ressaltar que toda essa neurose incel começa com a cultura da masculinidade tóxica. E aí eu quero colocar a palavra machismo bem grande aqui: MACHISMO MATA. Isso não é novidade. Sempre foi assim com os machistas. Machistas são homens que acham que as mulheres estão a seu serviço e, portanto, têm que fazer o que eles querem.
Vocês estão muito impressionados com adolescentes numa série, mas os homens estão matando mulheres que não querem namorar com eles faz tempo. Eles as matam só porque elas terminaram um relacionamento ou porque se recusaram a começar. Por tudo e por nada, elas se tornam alvos da misógina desses machos escrotos. A torto e a direito, esses caras estão entrando em lojas e matando; em shoppings e matando; em estacionamentos e matando; na casa delas e matando; envenenando mulheres que nem imaginam que uma gentileza aparente esconde um plano macabro. Teve um que deixou o gás ligado para que a mulher morresse intoxicada, enquanto ele tinha tempo de escapar da cena do crime. E para que um bandido desses faça isso com a própria companheira, basta que ela esteja dormindo ou tenha sido dopada. Assim, quando o “incidente” for investigado, ainda vai ter gente achando que se trata de um acidente causado pela própria mulher por descuido. O azar desses homens é que, às vezes, há dispositivos de segurança que eles ignoram e que podem gravar o que eles estão fazendo, como foi o caso desse cara, desse imbecil inútil, que foi preso depois de matar a mulher intoxicada por gás doméstico.
Mas tudo isso vem da cultura machista, do ressentimento contra a mulher como pessoa autônoma. Por isso, o ódio desses homens contra o feminismo. Eles desprezam o direito da mulher à viver emancipada, de ser dona de si mesma. A igualdade de gênero no sentido de que tanto o macho quanto a fêmea devem ter as mesmas oportunidades, e que não há motivo para se fazer distinção entre eles é algo que esses machistas odeiam.
O machismo, que é a ideia de que o homem é superior à mulher, gera a misoginia, que é o ódio à mulher e a tudo o que é feminino. Essa misoginia pode se tornar o gatilho para o crime. Em poucas palavras: O machismo pensa a mulher como inferior, mas a mulher não se submete. Então, ele passa a odiá-la, e para se livrar do objeto do seu ódio, ele pode chegar a matá-la.
Se a mulher não se submete a esse tipo de homem, ele a ameaça e até assassina. Se ela se submete, passa a viver numa relação tóxica - o que não a ajuda, de modo algum, a escapar da opressão e dos maus tratos domésticos.
O macho heterossexual e o macho homossexual
Agora, uma coisa que é muito curiosa é a diferença entre esse tipo de homem heterossexual e os homens que não o são. Vamos recortar aqui esses machistas misóginos que acham que a heterossexualidade é a norma e que, por isso, toda mulher tem que ser dele.
Mas, antes, vale abrir um parêntese aqui: A mulher lésbica.
Esses machos misóginos são lesbofóbicos. Eles acreditam que a mulher lésbica é assim por falta de macho que a dobre. A partir daí, basta que ele dê mais um passo nessa neurose para concluir que ele próprio poderia ser o “remédio para o problema dela” - problema que ele inventou, porque ser lésbica não é problema algum, exceto na cabeça doentia dele e de outros imbecis como ele. Esse macho adoecido pelo machismo pode inclusive violentá-la na expectativa de que depois de conseguir o que ele verdadeiramente deseja - a gratificação sexual -, ela passe a gostar da “fruta” que ele tem para oferecer, mas não é isso que acontece: A mulher lésbica violentada é uma mulher traumatizada, assim como qualquer mulher. Pode, inclusive, sofrer mais por nunca ter desejado homem algum, para começo de conversa.
Retomando a questão do homem heterossexual machista em contrayst com o homem homossexual, note que quando um gay quer um homem para chamar de seu, ele o conquista por outros meios. Ele recorre à sedução, a um papo legal, a uma troca de fotos, ou a alguma coisa que vai fazer com que esse homem deseje ficar com ele. Até mesmo uma passada de mão aqui ou ali porque o cara está dando mole para ele. Tipo, o cara está olhando, está fazendo gestos como “pega aqui, pega ali”. Aí, ele vai lá e pega, e aí as coisas acontecem. Nunca é algo como o que um incel e outros machistas fazem com as mulheres. Um gay não vai pensar algo do tipo: "Este homem me deve isso porque ele foi feito para esse propósito. Ele foi criado para mim". E isso se dá porque não existe essa cultura na cabeça do homossexual. Não existe essa ideia de que um homem foi feito com o propósito de ser dele, ou que ele foi feito com o propósito de pertencer ao outro. Não. Ele entende que as pessoas vão ser o que são: Podem ser amantes dele, podem não ser, podem nem sequer gostar daquilo que ele tem para oferecer, e não tem nada de errado com isso. Ele sabe disso e, mesmo sendo vilipendiado, humilhado, pisado desde pequenininho, às vezes já dentro de casa pelos familiares, ele não cresce para se tornar um frustrado ao ponto de querer matar alguém porque não lhe correspondeu aqui ou ali. Isso é curioso, porque se tudo se resumisse a uma relação entre violência/rejeição e produção de mais violência, os homens gays seriam os maiores assassinos do mundo. E não o são!
O que poderia ser a razão para essa diferença, então?
Uma possível razão para isso, e que pode ser uma forma de explicar por que as coisas costumam acontecer assim, é que muitos gays aprendem a lidar com a frustração oriunda da rejeição desde pequenos. Assim, eles são obrigados a encontrar caminhos de sobrevivência que não passem pelo extermínio do outro, mas, sim, que passem pela emancipação de si mesmos. Eles pensam em ser independentes, ter um bom emprego, conseguir sua casa - um canto onde possam viver suas vidas sozinhos ou com aquelas pessoas que gostam deles e vice-versa.
Então, é muito curioso como a cultura do machismo faz mal a mulheres heterossexuais, a homens gays, bissexuais e por aí vai. Faz mal, especialmente, às mulheres trans, porque esses homens, muitas vezes, acham que uma mulher trans é um homem querendo enganá-los. Eles se fixam nessa ideia ridícula do engano o tempo todo, como se essa mulher trans quisesse ludibriá-los. Porém, a verdade é que uma mulher trans é apenas uma mulher trans - se você gosta dela, fique com ela, se ela quiser ficar com você, é claro. Se você não gosta, não fique com ela. E se ela não quer ficar com você, respeite a decisão dela e não faça nada. Apenas pegue o caminho da roça e vá embora.
Ah, e não se esqueça: transexualidade não tem nada a ver com orientação sexual. Pessoas trans podem ser heterossexuais, homossexuais, bissexuais, etc. em seu desejo/afetividade. Então, tem mulher trans que não gosta de transar com homem e também tem homem trans que não gosta de transar com mulher. Não se precipite em sua conclusões baseadas em estereótipos hetero-cisnormativos.
Plantado em solo religioso
A verdade é que tanto graças ao cristianismo como também ao judaísmo e ao islamismo, só para citar os três maiores monoteísmos, o machismo e a misoginia se tornaram insuportáveis. Em outras religiões, o machismo também existe, mas nenhuma é tão meticulosamente descarada nessa estrutura infame quanto essas três vertentes.
Então, quer assistir à série? Assiste à série! Mas não pense que isso é alguma novidade. E não pense que porque esse garoto fez isso mais cedo, ele é pior do que os homens que vão fazer isso mais tarde. Alguns homens vão fazer isso aos 25 ou 30 anos. Esse garoto fez ainda na adolescência. Porém, todos eles estão fazendo pelo mesmo motivo: machismo patriarcal, misógino, antifeminista, homo-transfóbico, que não consegue entender que não há nada de superior num homem por ele ser homem cisgênero e hétero. Por isso mesmo, a mulher não é inferior em nada, e um homem sexodiverso também não. Uma pessoa transgênera, seja ela quem for, também não é inferior a esses supostos machos alfa. Essa hierarquia só existe na cabeça dessa gente adoecida por tais ideologias sexistas alimentadas pela igreja, a família e a escola - para ficar em três aqui. Quando o imbecil compra esse discurso e o alimenta com coleguinhas idiotas como ele, isso não tem como acabar bem.
Então, fica aqui minha contribuição para esse debate. Meu pensamento é direto e simples. Você pode até pensar que é uma análise rasa. Eu não dou a mínima, porque o que acabo de expor é perfeitamente verificável, e não tenho visto as pessoas falarem sobre isso do modo que eu acabo de falar aqui, inclusive com esse viés que dialoga com a sexodiversidade e com a transgeneridade.
Internet e pornografia
Abram o olho! Entendam que a Internet ajudou a piorar isso tudo, justamente por causa desses fóruns.
A pornografia também pode ser uma ferramenta para a produção dessas neuroses. Antes de concluir, deixe-me falar sobre isso.
Por que digo que a pornografia pode estimular isso?
Antes de mais nada, já está completamente errado que uma criança pequena ou adolescente seja exposto à pornografia, mas pode ser muito pior quando não se trata apenas da relação entre duas pessoas no sentido mais comum dessa transa. Existem coisas, muitas vezes, absurdas, incluindo estupros, ainda que sejam apenas simulados. E é claro que tudo pode ser apenas encenação, mas o impacto disso sobre uma mente infanto-juvenil é desastroso.
Tem todo o tipo de coisa: Estupros, sadismo, submissão extremamente humilhante, etc. Não se trata sequer de uma relação sexual nos moldes mais tranquilos - o que já seria ruim, porque crianças e adolescentes não deveriam ter acesso a isso. Mas, a coisa é bem pior, porque são comportamentos abjetos, tipo homem e mulher transando e comendo bosta ou homem mijando em cima da mulher ou a mulher mijando em cima do homem. E aí, cá entre nós, se você tem esse fetiche, o problema é seu. Faça o que você quiser com quem aceitar, mas é inaceitável que uma criança ou adolescente veja isso.
Portanto, abra o olho com seu adolescente e com você mesmo. Não alimente o monstro que pode haver em você sem que você sequer imagine. E não alimente os monstros que podem existir na sua família e ao seu redor. Não estou dizendo que eles são monstros ainda, mas podem se tornar. Qualquer pessoa pode! Se não agimos assim é porque desenvolvemos barreiras que têm suas raízes na empatia. E baseados na empatia, nós construímos um sistema moral maior, mais elevado, que inclui o respeito a essas diferenças. A diferença está juntando em nos colocamos em pé de igualdade com o outro. É isso que machistas e misóginos de todos os tipos não fazem. Podemos ser diferentes em muitos sentidos, mas não em grau de importância, valor ou dignidade.
Homem, mulher, hétero, LGBT, cisgênero ou transgênero, branco, preto, seja qual for a cor, não existe diferença na hierarquia de valores. Quem criou isso foi algum neurótico, algum tipo de ser humano, provavelmente macho inseguro e ambicioso por poder, que foi pervertido por pensamentos religiosos absurdos e viveu para propagá-los.
Não compre esse lixo discursivo, seja ele machista, misógino, anti-feminista, homofóbico e transfóbico em separado ou tudo junto! Você pode ser melhor do que isso.
Hoje, dia 30/06/21, recebi da All Out um convite para ler um relatório de pesquisa sobre as chamadas "terapias de conversão" (a famigerada "cura gay"). Esse trabalho é de um valor imenso, pois essas terapias são uma verdadeira violência contra a psiquê das vítimas.
O relatório completo pode ser acessado aqui: https://s3.amazonaws.com/s3.allout.org/images/All_Out_Instituto_Matizes_Relatorio_Completo_Entre_Curas_E_Terapias.pdf
Também na data de hoje, foi feito um painel com as pessoas que organizaram o relatório. Esse painel pode ser assistido aqui: https://www.youtube.com/watch?v=DvGhjGrVKyE
Não deixe de acessar essas informações. Elas são fundamentais para que a nossa capacitação e empoderamento contra essa série de violências contra a pessoa LGBT+, especialmente na infância e na adolescência.
Pasmem, mas ainda existe muita
gente que fica no armário por medo da opinião de fulano ou de sicrano.
Ao mesmo tempo que as pessoas
falam sobre sua sexualidade cada vez mais cedo, é impressionante ver como
existem outras que ainda hesitam, mesmo sendo maduras e financeiramente
autossuficientes. Algumas moram sozinhas ou têm condições de viver em seu
próprio canto se preciso for, mas mesmo assim ainda relutam em tomar as rédeas
de sua própria vida. A troco de quê? – pergunto eu.
Ao longo desses 19 anos fora do
armário (completos em 2022), já pude ouvir muitos relatos de pessoas na condição
de “armarizadas”. Já encorajei muitas dessas pessoas, especialmente homens, a
tomarem as devidas providências para que possam finalmente dizer “I am what I
am, and what I am needs no excuses” (Sou o que sou, e o que eu sou não precisa
de desculpas).
Curiosamente, mulheres parecem
não ficar tão à vontade para conversar com um homem sobre seus problemas nessa
área, mas um número considerável de homens já me procurou por causa de alguma
entrevista publicada comigo ou alguma postagem feita por mim a respeito da
minha trajetória para fora do armário. Muitos deles são pessoas com algum
background religioso, principalmente evangélico. Ouvi-los falar sobre seus
dramas existenciais por causa da crença religiosa é algo que me comove e
enfurece ao mesmo tempo, mas vê-los desprenderem-se de tudo isso provoca em mim
uma sensação deliciosa de triunfo e de alívio!
Você pode ler mais sobre minha
jornada rumo à emancipação sexual aqui: EM BUSCA DE MIM MESMO (https://www.amazon.com.br/Busca-Mim-Mesmo-Sergio-Viula-ebook/dp/B00ATT2VRM).
Para a minha alegria e para a
felicidade desses homens, muitos deles fizeram seu próprio trajeto para fora do
armário e voltaram para me contar. Alguns se tornaram amigos e me
proporcionaram a oportunidade de ver seu crescimento e amadurecimento emocional
e afetivo, inclusive, assumindo relacionamentos estáveis publicamente.
Viver autenticamente o seu amor
tem um sabor totalmente diferente de viver entre as sombras das masmorras da
homofobia internalizada através da instilação continua de preconceito por parte
da família, da igreja e de vários outros dispositivos de controle social,
inclusive a escola.
Faz 19 anos que eu me livrei
desse lixo tóxico produzido por homofóbicos de todos os tipos, sendo o pior
deles aquele que utiliza pretextos de cunho religioso. Ano que vem, farei duas
décadas fora do armário - uma data que há de ser devidamente comemorada. Alegro-me
em dizer que já ultrapassei o tempo que passei dentro do sistema religioso
fundamentalista. Foram 18 anos de evangelicalismo atropelados por 19 anos de
liberdade cognitivo-afetiva, emocional, sexual e financeira. Não escondo o
orgulho que sinto por ter feito esse movimento não só para fora do armário, mas
também para fora de toda e qualquer crendice, sem a ajuda de um único ser humano.
Pelo contrário, as pessoas ligadas
à igreja e à família me desestimulavam de seguir adiante. As pessoas que faziam
parte da comunidade LGBT ou do movimento que leva o seu nome achavam que isso
era bom demais para ser verdade. A única pessoa que se aproximou de mim para ouvir
o que eu tinha a dizer (depois da minha entrevista à revista Época no final de
2004) foi Toni Reis. Ele me permitiu expor o que eu pensava e pretendia dali em
diante para ele sua equipe de trabalho. Foi um encontro agradável, mas isso foi
tudo. Ele também comprou dois exemplares do meu livro. Dali em diante, eu
continuava travando minhas próprias batalhas para me estabilizar
financeiramente e emocionalmente, mesmo cercado por um turbilhão de gente do
contra.
Da minha família, as únicas
exceções em termos de acolhimento na prática foram a minha avó Maria Jerônima
(falecida anos depois da minha saída do armário) e minha tia Maria Eliza (filha
dela). Essas duas pessoas queridas foram minhas parceiras e me apoiaram na
prática, não apenas com palavras ao vento. Era amor de verdade em ação.
Minha avó Maria Jerônima
e meu avô João Viula,
imigrantes portugueses.
Ele faleceu com 57 anos
e ela com quase 90.
Quem hoje vê minha família
unida comigo e com meu amor Andre não imagina o que eu passei até que eles
finalmente entendessem o que tudo isso significava. Eles não conseguiam pensar
para além do que foram doutrinados. Durante quatro anos, eu não troquei uma
palavra com eles e nem os visitei ou recebi a visita deles. Somente depois que
eles reconheceram que estavam errados em seu modo preconceituoso de agir comigo,
e me disseram isso face a face, e com todas as letras, é que eu voltei a me
relacionar com eles. Desde então, as coisas só melhoraram.
Andre, meu filho, eu, minha mãe e meu pai.
31 de dezembro de 2021 (réveillion 2022)
Meus pais cresceram muito, mas
muito mesmo. Isso não teria acontecido se eu ficasse, como muitos fazem,
mendigando amor e atenção, apesar de ser tratado com pessoa de terceira categoria.
E detalhe: eu pegava meus filhos toda semana para passar o sábado comigo, e nem
assim baixei a cabeça para a homofobia deles ou de quem quer que fosse. Eu jamais
deitaria para ser pisado por babacas de qualquer espécie, principalmente se
fossem do meu sangue.
Hoje, meus filhos são adultos. Até
neta, eu já tenho (Veja o Diário de um avô colorido - https://www.xn--foradoarmrio-kbb.com/2021/04/bebe-bordo-diario-de-um-avo-colorido.html). E quando lembro de alguns daqueles idiotas evangélicos
dizendo "Como é que vai ficar a cabeça dos filhos dele?", eu só
penso: A deles vai muito bem, obrigado, já a de vocês continua a mesma bosta
que sempre foi.
Foto que eu publiquei em 2020.
E daí? A vida seguiu em frente!
Apesar de todos os obstáculos que eu tive que enfrentar, eu fiz exatamente o
que eu queria, e o fiz com ética e honra, ensinando meus filhos, por palavras e
atos, a serem honestos, corajosos e autênticos. O resultado é esse aí que vocês
veem se me acompanham por aqui ou pelas redes sociais.
Será que a gente pode fazer tudo
certo e tudo dar errado? Claro que sim. É besteira pensar que controlamos o
fluxo do devir. Se tivesse dado tudo errado, apesar de eu ter feito a coisa
certa, eu ainda poderia me alegrar por ter feito justamente isso: A coisa certa.
Mas, olhando ao redor, a pergunta
que fica é a seguinte: Posso dizer que estou colhendo bons frutos da minha
semeadura? Sem dúvida alguma que sim. E quero viver para desfrutar cada um
desses momentos especiais. Por isso, faço o possível para me manter saudável e
viver tudo o que puder viver hoje e daqui em diante – tudo com tranquilidade, nada
de correria como se mundo acabasse amanhã para mim. Se acabar, terei feito tudo
o que eu queria hoje, inclusive NADA. Como é bom fazer simplesmente NADA! Claro
que não é possível fazer nada o tempo todo, e nem seria saudável, mas quando a
gente pode se dar a esse luxo, para que inventar problema?
Réveillon 2022 em nossa casa.
Quando alguém me pergunta se eu
sinto saudade dos meus tempos na igreja, eu respondo com uma pergunta:
"Que peixe, em bom estado mental, sentiria saudade do anzol, ainda que o
tenha mordido por engano, seduzido por uma isca que lhe parecesse absolutamente
suculenta?"
A ficção de um deus que cuida de
tudo e que está muito interessado em mim não dá nem para a saída. Ela pode
parecer uma isca imperdível, mas não passa de um pretexto para fisgar a mente dos
que nunca conseguem se tornar donos de si mesmos. Essas pessoas estão sempre
procurando alguém a quem possam se submeter. Tolice maquiada de piedade.
Agora, imaginem as ficções sobre
uma suposta vida eterna ou castigo eterno... Imaginem as primitivas e precárias
ideias de pecado e salvação... Nada disso passaria pelo mais superficial exame
racional. Se as pessoas usassem sua capacidade crítico-analítica para averiguar
essas coisas, elas se sentiriam ridículas por terem crido nelas um dia.
Além disso, esse sistema de
crenças, assim como muitos outros, acaba funcionando como o peso de um cadáver
a ser carregado pela vida a fora por gente que poderia investir sua energia em
coisas que realmente fizessem valer a pena viver – e digo viver no sentido mais
pleno possível da palavra LIBERDADE.
A desculpa de que a religião
exerce algum papel para além de controle, exploração e utilização do capital
humano que se submete a ela também não passa pela peneira da experiência. Não
há coisa alguma que a religião ofereça que não possa ser obtida por outros
meios. Ela também não pode oferecer nada de real e útil que já não tenhamos. Repito:
Não há coisa alguma que a religião possa fazer por nós que não possamos fazer
sozinhos como espécie humana. Religião, qualquer que seja ela, é uma verdadeira
inutilidade supervalorizada pelo mero hábito da repetição sem análise crítica.
Ela gosta de posar como aquilo que parece estar acima de qualquer
questionamento, mas seus pretextos não dão nem para a saída. As pessoas embarcam
naquela ideia de que deve estar certo, porque todo mundo na minha bolha social
diz e faz a mesma coisa, mas isso só revela a tendência para o comportamento de
rebanho por parte de muitos. E se a gente pensa em rebanho, acaba pensando
em pastor, pelo menos no contexto religioso.
Todavia, não existe coisa mais
estúpida do que a ideia de bom pastor. Toda ovelha é, para qualquer
pastor, seja ele zeloso, descuidado ou cruel, a mesma coisa: Fonte de ganho. Tudo
o que o pastor quer enquanto a alimenta é tosquiar sua lã ou desossar sua
deliciosa carne. No primeiro caso, ela vive para servir à indústria da lã. O
pastor é seu principal elo na cadeia de produção. No segundo caso, ela paga com
a própria vida pelo almoço daqueles que a alimentaram tão cuidadosamente apenas
para conseguirem alguns quilos de carne a mais na balança do matadouro.
Nunca foi bondade...
Não existe essa tolice de bom
pastor. Existem pessoas ingênuas (burras seria mais apropriado) que se submetem
à falsa sensação de que estão sendo cuidadas, quando, na verdade, estão sendo
controladas ou exploradas de uma maneira ou de outra. Manter o lobo longe do
aprisco não é um ato de bondade do pastor, mas a única forma de garantir que a
lã e a carne da ovelha tola e gorducha serão dele e não de outro. A competição
das igrejas por membros é uma bela demonstração disso.
Se você se orgulha de ser ovelha
de fulano ou de sicrano ou mesmo de Jesus, deixe esse fictício aprisco e tudo o
que tiver a ver com ele para trás. O aprisco é para a ovelha o mesmo que o
corredor da morte é para o condenado à cadeira elétrica - só uma forma de
mantê-la sob controle até o momento de sua execução. A diferença é que o
condenado que aguarda no corredor da morte não trabalha para seus executores,
já a ovelha no suposto aprisco de Cristo entrega seu precioso tempo, energia e
recursos financeiros a vida inteira até finalmente encontrar o destino de todos
os mortais – o finamento. Enquanto isso, assim como o condenado que aguarda no
corredor da morte, o humano que se diz ovelha vê apenas uma fração do que
acontece do lado de fora do seu cercadinho sem ter vivido uma série de
experiências deliciosas, positivas e construtivas longe do domínio desses
manipuladores de mentes e castradores de existências.
Seja honesto consigo mesmo(a):
Para que se submeter à liderança supostamente espiritual ou moral de quem quer
que seja?