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O que é gênero? (Judith Butler)

O que é gênero?
Judith Butler / Big Think 

Traduzido por 
Sergio Viula 



Judith Butler: O que é gênero?
Falando para o canal Big Think




Então, existem muitas teorias diferentes sobre gênero, e a minha é apenas uma delas. Às vezes, pessoas que realmente odeiam o gênero me apontam como a responsável por ter inventado isso, mas isso não é verdade. Na minha visão, todo mundo tem uma teoria sobre gênero, e o que quero dizer com isso é que todos têm certas suposições sobre o que o gênero é ou deveria ser. E, em determinado momento da vida, nos perguntamos: "Uau, de onde veio essa suposição?" (Judith ri).

Neste ponto, estou menos preocupada com qual teoria está certa ou errada, porque o ataque ao gênero também é um ataque à democracia. Temos o poder e a liberdade de criar vidas mais vivíveis para nós mesmos, onde os corpos possam ser mais livres para respirar, se mover e amar, sem discriminação e sem medo da violência.

Sou Judith Butler, professora distinta na pós-graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ensino literatura, filosofia e teoria crítica, e sou mais conhecida por meus dois livros sobre gênero: Problemas de Gênero e Corpos que Importam, do início dos anos 1990. Meu trabalho foi traduzido para mais de 27 idiomas.

Eu insisto que o que significa ser mulher, ou mesmo ser homem ou qualquer outro gênero, é uma questão em aberto.

Temos uma série de diferenças biológicas, então não as nego, mas não acho que elas determinem quem somos de uma forma definitiva. No centro dessas controvérsias está a distinção entre sexo e gênero. Mas qual é essa distinção? Como devemos pensá-la?

O sexo geralmente é uma categoria atribuída a bebês, que tem importância no mundo médico e jurídico. Já o gênero é uma mistura de normas culturais, formações históricas, influência familiar, realidades psíquicas, desejos e vontades. E nós temos voz nisso.

Minha vida foi influenciada pelos anos 1960 e pelos movimentos sociais que surgiram nessa época. Cresci no lado leste de Cleveland, em uma comunidade judaica, e, quando estava no ensino médio, já era politicamente ativa. Mas também fazia cursos universitários de filosofia.

Nos meus 20 anos, percebi que não foram apenas os judeus que foram capturados e exterminados pelo regime nazista. Foram pessoas queer, gays e lésbicas, pessoas com deficiência, pessoas doentes, trabalhadores poloneses, comunistas. Minha percepção era de que era preciso ampliar a lente e entender que muitas pessoas foram alvo de políticas genocidas e que há diferentes formas de opressão. Continuo convencida de que precisamos conhecer a história para garantir que ela não se repita e que devemos buscar justiça não apenas para o grupo ao qual pertencemos, mas para qualquer grupo que sofra de maneira semelhante.

Nos anos 1970 e 1980, fiz parte de um movimento de pessoas que estavam repensando o gênero naquela época. A teoria queer estava surgindo, em um diálogo complexo com o feminismo. Questões trans ainda não haviam se tornado parte da nossa realidade contemporânea, então era um momento em que fazíamos perguntas como: "O que a sociedade fez de nós e o que podemos fazer de nós mesmos?"

Havia algumas vertentes do feminismo às quais me opus. Uma delas defendia que as mulheres eram, fundamentalmente, mães e que a maternidade era a essência do feminino. Outra via o feminismo como uma questão de diferença sexual, mas definiam essa diferença sempre presumindo a heterossexualidade. Ambas me pareceram equivocadas.

Eu sempre acreditei que as pessoas não deveriam ser discriminadas com base no que fazem com seus corpos, em quem amam, em como se movem ou como se apresentam. O que eu estava dizendo era que o sexo atribuído ao nascimento e o gênero que lhe ensinam a ser não deveriam determinar como você vive sua vida.

Às vezes, as pessoas apontam Problemas de Gênero como o marco inicial da teoria de gênero, mas outras pessoas já trabalhavam nessa área antes de mim, como Gayle Rubin, Juliet Mitchell e Simone de Beauvoir.

Simone de Beauvoir foi uma filósofa existencialista e feminista que escreveu O Segundo Sexo na década de 1940. Seu argumento central era que "não se nasce mulher, torna-se mulher" – ou seja, o corpo não é um fato imutável. Ela abriu a possibilidade de uma diferença entre o sexo atribuído ao nascimento e o sexo que se torna ao longo da vida.

Gayle Rubin, uma antropóloga, escreveu um artigo extremamente influente chamado O Tráfico de Mulheres. Ela argumentava que a família era uma estrutura cuja função era reproduzir o gênero e que um de seus objetivos era manter a heterossexualidade como norma.

Outro aspecto interessante do trabalho de Rubin foi sua relação com a psicanálise. Ela sugeriu que havia uma enorme repressão envolvida no processo de "tornar-se" homem ou mulher e que, para se conformar às normas de gênero, era necessário reprimir diversas possibilidades de ser, sentir, agir e amar que não se encaixavam nesses padrões.

Então, a antropologia, a psicanálise – tudo isso já fazia parte do debate antes de Problemas de Gênero.

Quando escrevi Problemas de Gênero, muitas pessoas tratavam o gênero como um fato natural ou uma realidade sociológica, mas não como algo que poderia ser construído e reconstruído.

A performance é importante nesse sentido: nós encenamos quem somos. E qualquer pessoa que estude performance sabe que existem performances em nossa vida que não são meras imitações, não são falsas.

Quando o filósofo J.L. Austin cunhou o termo "performativo", ele tentava entender enunciados legais. Por exemplo, quando um juiz diz "Eu os declaro marido e mulher", isso não é uma ficção – isso aconteceu de fato.

Agora, e se disséssemos que, ao vivermos nossas vidas como um determinado gênero, estamos realmente tornando esse gênero real, fazendo algo acontecer?

Quando pessoas gays e lésbicas começaram a se assumir, ou quando pessoas trans começaram a viver abertamente, algo mudou no mundo. Ao aparecer, falar e agir de certas maneiras, a realidade mudou. E continua mudando.

Estamos vendo os termos mudarem. Não falamos mais de família, mulher, homem, desejo e sexo da mesma maneira. Até mesmo o Cambridge Dictionary reconhece que algo mudou (Judith ri).

O performativo é um ato que faz algo existir ou um ato que tem consequências reais. Ele muda a realidade.

Mesmo entre pessoas progressistas e liberais que conheço, às vezes há resistência em relação aos direitos trans, direitos gays e lésbicos ou mesmo aos direitos das mulheres. Dizem que são questões secundárias ou que os incomodam.

Mas, nos EUA, aprendemos a falar de forma diferente sobre pessoas negras e sobre mulheres. E sim, pode ter sido difícil aprender a usar uma nova linguagem. Talvez tenhamos tido que ajustar nossos hábitos. Mas errar faz parte do aprendizado, especialmente quando estamos aprendendo algo novo.

Hoje, estou menos interessada em defender uma teoria sobre gênero e mais preocupada em encontrar formas criativas e eficazes de combater os ataques ao gênero.

Muitas pessoas que se recusam a permitir que pessoas trans se definam temem que sua própria auto definição seja desestabilizada.

Mas será que o gênero de alguém é realmente necessário e universal, ou é algo que emerge de maneira complexa em cada um de nós?

A liberdade é uma luta porque há muitas forças no mundo que nos dizem para não sermos livres com nossos corpos.

Vivemos em uma democracia e assumimos que vivemos de acordo com princípios como igualdade, liberdade e justiça. Mas estamos sempre aprendendo o que esses conceitos realmente significam.

Precisamos ocupar esses conceitos e mostrar que as lutas por justiça racial, igualdade e liberdade de gênero são parte essencial de qualquer luta democrática.

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Via Big Think

Traduzido por Sergio Viula

Vídeo fonte: https://youtu.be/UD9IOllUR4k?si=q6EVfV-K3v0mOaBs

As Homossexualidades na Psicanálise: Lançamento - Livraria Travessa / Ipanema/ 17 de setembro / 19h






Lançamento do livro As homossexualidades na psicanálise - na história de sua despatologização A coletânea "As homossexualidades na psicanálise - na história de sua despatologização" organizada por Antonio Quinet e Marco Antonio Coutinho Jorge reúne 30 textos de psicanalistas brasileiros e estrangeiros (franceses e americanos) que retomam a teoria psicanalítica a partir de Freud e Lacan para demonstrarem a diversidade sexual e a escolha de gozo particular de cada sujeito e assim abordar a multiplicidade das homossexualidades (praticante, latente, sublimada) tanto na teoria psicanalítica quanto na clínica e na vida cotidiana.

Este livro, além de mostrar os fundamentos teóricos, éticos e clínicos da homossexualidade, denuncia os desvios teóricos na psicanálise e a homofobia presente tanto nas teorias quanto nas práticas clínicas e em determinadas instituições psicanalíticas. Este livro fornece alguns fundamentos para sustentar o debate atual na sociedade. O livro retoma diversos textos apresentados no Colóquio em homenagem aos 40 anos de Stonewall organizado em 2009 pelos autores com o apoio do Mestrado em Psicanálise, Saúde e Sociedade da UVA com a colaboração do programa de pós-graduação em Psicanálise da UERJ.

Publicada em: 06/09/2013


IMS/UERJ - R. São Francisco Xavier, 524, 6 Andar, BL E-20550-013-Rio de Janeiro-RJ-Brasil-Tel:(21)2568-0599


VOCÊ PODE ADQUIRIR SEU EXEMPLAR AQUI:
https://www.travessa.com.br/as-homossexualidades-na-psicanalise-na-historia-de-sua-despatologizacao/artigo/3790d806-4e1a-4395-8b85-f776576153d2

Capa diferente, mesmo livro.

Contardo Calligaris - O psicanalista explica por que a homossexualidade incomoda tanto

Contardo Calligaris



De onde vem a homofobia? Como funciona o preconceito de quem acha que não o tem? Para responder a essas e outras perguntas, convocamos o psicanalista Contardo Calligaris - que sonha com um tempo em que ser homo, hétero ou bi não seja fundamental para definir nossas identidades.

Contardo Calligaris é um homem acostumado a temas espinhosos. O psicanalista italiano de 63 anos, nascido em Milão e radicado em São Paulo, assina colunas toda quinta-feira na Folha de S.Paulo, e a trinca sexo, amor e relacionamentos é uma de suas constantes. Nesta edição de Trip dedicada à diversidade sexual, convidamos o terapeuta para refletir sobre por que, afinal, a homossexualidade provoca tanto incômodo. "Ninguém se incomoda com algo a não ser que isso seja objeto de um conflito interno. O homofóbico tem dificuldade em conter traços de homossexualidade que estão dentro dele", responde Contardo. Segundo o psicanalista, as piadinhas sobre gays, tão comuns nas rodas de homens, celebram um laço que, no fundo, é homossexual. "Ninguém conta uma piada de veado para uma mulher, porque para ela é uma coisa totalmente ridícula. Ela vai virar e dizer: 'Hein?'."

Na entrevista a seguir, Contardo aponta para o enorme preconceito contra gays e lésbicas que ainda persiste no Brasil, fala sobre o papel das novelas na formação da opinião pública e defende a aprovação da lei que criminaliza a homofobia. "Essa garantia legal é crucial", afirma. O psicanalista sai em defesa do "politicamente correto", que, aqui, não funciona como nos EUA. "Lá, alguém como o [deputado federal Jair Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo", acredita. Seu desejo, diz, é que a sociedade avance para um estágio em que se possa viver livremente de forma "junta e misturada", ou seja, em uma realidade na qual ser heterossexual ou homossexual não seja tão importante para definir as nossas identidades.

Por que a homossexualidade incomoda tanto?

Vários psicanalistas e psicólogos já formularam sobre isso. Existe quase uma regra que quase nunca se desmente na prática. Quando as minhas reações são excessivas, deslocadas e difíceis de serem justificadas é porque emanam de um conflito interno. Por que afinal me incomodaria meu vizinho ser homossexual e beijar outro homem na boca? De forma simples, o que acontece é: "Estou com dificuldades de conter a minha própria homossexualidade, então acho mais fácil tentar reprimir a homossexualidade dos outros, ou seja, condená-la, persegui-la e reprimi-la, se possível até fisicamente porque isso me ajuda a conter a minha". O problema de toda neurose é que a gente reprime muito mais do que precisa. A neurose multiplica a repressão. Se eu tenho uma vaga impressão de que eu poderia ter uma atração por um colega de classe, então acabo construindo uma série de comportamentos que me convençam de que não só não tenho atração nenhuma como eventualmente posso chamar esse colega de veado, criar um grupo de pessoas que compartilham daquela opinião e esperar ele sair da escola para enchê-lo de porrada.

O homofóbico necessariamente é um gay enrustido?

Eu não diria que é um gay enrustido. A homofobia responde a uma necessidade de reprimir uma parte da sexualidade, mas não significa necessariamente que essa pessoa seja homossexual. É alguém que está reagindo neuroticamente a traços de homossexualidade que estão em cada um. Isso já é suficiente para criar a homofobia.

A sociedade brasileira ainda é muito preconceituosa? O politicamente correto mascara isso?

O politicamente correto no Brasil é muito precário se comparado ao dos Estados Unidos. Aqui as pessoas se autorizam a dizer coisas que lá seriam impensáveis. O Bolsonaro já estaria na cadeia há muito tempo. Não tenho nada contra o politicamente correto, mesmo os seus excessos, porque não estou convencido de que as falas sejam inocentes. As piadas de discriminação deveriam ser proibidas. Deveria ser possível agir legalmente contra isso. Mas, sim, acho que a sociedade brasileira ainda é fortemente preconceituosa. O engraçado é que as formas mais triviais de preconceito se expressam em grupos que acabam sendo homossexuais. O clássico é a piada de veado, que faz todo mundo rir e ocorre numa roda de homens na padaria. Esses homens celebram rindo um laço entre eles que, no fundo, é homossexual. Os quatro skinheads que saem à noite para dar porrada na praça da República substituem o que seria uma homossexualidade neles batendo em quem eles supõem ser homossexual.

Você é a favor da lei que criminaliza a homofobia?

Sou totalmente a favor. Incitar o ódio e a exclusão não dá. A liberdade de expressão não justifica ir contra direitos fundamentais.

Como funciona o preconceito das pessoas que dizem não ter preconceito? Como reagem pais que se consideram esclarecidos quando descobrem que o filho é gay?

No caso dos pais, tem uma parte da reação que não é necessariamente homofóbica. Há um sentimento de perda e preocupação. Eles presumem que não terão netos, isso é uma perda. Eles têm uma apreciação realista da sociedade. Pensam: "Se o meu filho for gay, a vida dele será mais dura. Não poderá viver em qualquer lugar, vai ter que morar em grandes metrópoles. Quando for alugar um apartamento, talvez encontre um dono que não vai gostar de saber que ele vive com outro homem. Uma noite pode estar na praça da República e ser agredido. Quando for fazer a queixa na delegacia, pode ouvir que, se não fosse veado, isso não teria acontecido. Vai trabalhar numa multinacional e todo mundo vai ter a foto da mulher ou do marido em cima da mesa. Ter a foto de alguém do mesmo sexo provavelmente não vai contribuir para o progresso da carreira dele. Enfim, haverá uma série de limitações". Pode ser que para nossos filhos e netos isso evolua, mas a realidade hoje é essa.

Esses pais se culpam? Perguntam: "Onde foi que eu errei?"

Hoje muito menos, o que prova que a homossexualidade está sendo menos considerada como patologia do que no passado. A homossexualidade é produzida por uma série de coisas complexas, algumas, aliás, não têm nada a ver com o tipo de criação que a pessoa recebeu. Responsabilizar os pais é algo grotesco. Agora, nos anos 70, sim. Eu atendi pais que se recusavam completamente a aceitar que os filhos eram gays. E tive pacientes homossexuais que tinham perdido o contato com os pais a partir do momento em que saíram do armário.

Como você vê a representação dos gays nas novelas?


A existência de gays como personagens positivos ou simplesmente aceitos tem um efeito importante. A novela das nove é a grande formadora de opinião no Brasil. Às vezes tem até uma capacidade de antecipar e transformar a visão sobre as coisas. Nem sempre o que aparece nas novelas é porque os brasileiros mudaram. Às vezes os brasileiros mudam porque apareceu na novela. É pequena a antecipação, mas ela existe. A novela pode se propor a escandalizar um pouco, permitir que as pessoas pensem um pouco além do que elas pensavam antes.

Homossexualidade é genética ou construída? Ou nem cabe mais essa questão?

É um debate aberto. O que todo mundo sabe hoje é que a genética não é o destino de ninguém. Mesmo que existisse um gene da homossexualidade, que, se existe, ainda não foi encontrado, ele precisaria ser posto em ação. Os nosso genes se realizam ou não a partir de uma série de questões relacionadas ao ambiente – geofísico e humano. Imaginar que exista uma separação rigorosa entre o genético e o construído é ingênuo. As coisas se misturam. O grande argumento a favor da tese de que é genético é que existem pesquisas com gêmeos que mostram que, em univitelinos, se um é homossexual a maioria dos irmãos também é. Algo em torno de 60%. Agora, isso é um argumento a favor da tese? Na verdade, é um argumento contra porque, se são univitelinos, deveria ser 100%, já que o patrimônio genético dos dois é rigorosamente igual. O caso é interessante porque mostra que a coisa é mais complexa.

"O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais"

Crianças criadas por casais homossexuais sofrem de dificuldades específicas? Seu desenvolvimento é diferente do de crianças de casais heterossexuais?Isso já está totalmente estabelecido. Há um campo de pesquisas importante nos EUA e em alguns países da Europa, onde já há um bom tempo os casais homossexuais foram autorizados a adotar crianças. Está absolutamente claro que as estatísticas, tanto do futuro da vida sexual dessas crianças como da patologia eventual delas, são absolutamente idênticas às das crianças criadas por casais héteros. Acho que isso não deveria nem mais ser tema de conversa. Porque os resultados estão lá, são conhecidos.

O preconceito é maior em relação a casais de homens que desejam adotar filhos?É possível. Até porque um dos grandes mitos da homofobia é que as pessoas, sobretudo as mais ignorantes, confundem homossexualidade com pedofilia. Então elas perguntam: "Mas como um casal de homossexuais masculinos vai adotar crianças? Eles vão estuprá-las". E a pedofilia pode ser totalmente heterossexual.

Você já sentiu atração por homens? Teve vontade de beijar e transar com um homem?

Não, atração nesse sentido não... Mas cresci nos anos 60, uma época de amor livre. Tudo aquilo era bastante aberto e misturado.

Deu para experimentar bastante coisa?

Sim.

Você já questionou a sua orientação sexual?

Questionar a orientação sexual já é em si um problema porque, no fundo, eu não acredito muito nessa distinção entre homossexual e heterossexual como um divisor de águas. Do ponto de vista da personalidade de alguém, é um fato muito marginal. Muito mais do que se ela transa com pessoas do mesmo sexo ou não, o que define uma pessoa é a fantasia sexual com a qual ela funciona. Um homossexual cuja sexualidade é alimentada numa fantasia sadomasoquista tem muito mais a ver com um heterossexual com fantasia parecida do que com outro homossexual que, ao contrário, gosta de transar ternamente, dando beijinhos. O gênero não é o mais importante para definir a sexualidade de alguém. A fantasia define muito mais.

Há quem diga que no futuro as pessoas vão se relacionar independentemente do gênero. Seria tudo meio "junto e misturado". Você concorda com isso?

Eu preferiria que fosse assim. A homossexualidade se tornou uma identidade necessária para tempos de luta. Nos últimos 30 ou 40 anos e certamente nas próximas décadas ainda terá que se afirmar para que haja uma paridade de direitos real e concreta. Mas, uma vez retirada essa necessidade de luta, não sei se a escolha de gênero do objeto sexual será o mais importante para definir a identidade de alguém... Sou homossexual ou sou heterossexual. Sim, e daí? Good for you. Não sei se verei esse novo mundo, mas espero que isto aconteça: que essa identidade se torne insignificante, pois não será tão necessária.


Nota: Matéria originalmente publicada na revista Trip #204,
Fonte: Matrizes Feministas
Reproduzido em: Portal Geledés

A Invenção da Sexualidade (revista In Reverso - Círculo Psicanalítico de MG)

A INVENÇÃO DA SEXUALIDADE
in Reverso, Revista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ano XXXII, 60, 15-24, 2010


Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Paulo Roberto Ceccarelli

"A sexualidade, tal como a entendemos, é efetivamente uma invenção histórica, mas que se efetivou progressivamente à medida que se realizava o processo de diferenciação dos diferentes campos e de suas lógicas específicas." (
Pierre Bourdieu)




Introdução:

Com este titulo deliberadamente provocador, queremos lembrar que a sexualidade tal como a percebemos, a vivemos e, sobretudo, a teorizamos, é uma criação da cultura ocidental. Isto não significa, em absoluto, que outras culturas não sejam igualmente interpeladas pelo enigma do sexual e criem dispositivos para lidar com as reivindicações pulsionais. Mas, não fosse a particularidade do destino que a nossa cultura deu ao sexual não teria sido possível a infindável leitura que há séculos vem sendo feita sobre esta dimensão constitutiva do humano. Seu expoente máximo é, sem dúvida, a psicanálise: um dos seus textos princeps, os Três Ensaios sobre a teoria da sexualidade, constitui a primeira formulação sistemática sobre o tema.

Gostaríamos, neste trabalho, de esboçar uma primeira reflexão sobre como a cultura ocidental, com o sistema de valores que lhe é próprio, criou o discurso sobre a sexualidade, e como as premissas freudianas são produtos destes mesmo valores. Lembremos que os discursos sobre a sexualidade aparecem em momentos sócio-históricos precisos como uma tentativa de normatizar as prática sexuais de acordo com os padrões da época, pois o controle da via social e política só poderia ser alcançado pelo controle do corpo e da sexualidade (Foucault, 1985). Ou seja, a sexualidade é uma construção, uma invenção, inseparável do discurso e do jogo de poder dentro dos quais ela é constituída e, ao mesmo tempo, se constitui.

O interesse em discutir este tema deve-se ao fato de que tanto as nossas teorias, quanto a nossa prática clínica, são tributárias da cultura. (Seria pouco provável que algo como a teoria psicanalítica surgisse em uma cultura na qual a moral sexual não produzisse doença nervosa.) Todos nós, o queiramos ou não, estamos impregnados do imaginário da cultura ocidental. E mesmo aqueles que tem uma posição crítica em relação a ele não lhe são imunes, pois tais valores funcionam como suportes identificatórios para o sujeito em constituição.

Tendo como ponto de partida o fato de que a regulamentação do sexo sempre foi um assunto do Estado, das elites dominantes e da religião (Foucault, 1984, 1985, 1985b), pretendemos neste texto fazer uma breve digressão para tentar compreender como a “moral” de cada uma destas instâncias cria tanto o discurso sobre a regulamentação da sexualidade, quanto os dispositivos que visam regulá-la, controlá-la ou mesmo curar as manifestações da sexualidade “desviantes”. Isto é, aquelas que não respondiam aos critérios estabelecidos e que ameaçam a ordem vigente.

A ordem religiosa


Como já discutido em trabalhos anteriores (Ceccarelli, 2000; Reis Santos & Ceccarelli, 2010), embora os valores ético-morais ocidentais encontrem suas raízes na tradição judaico-cristã, o ascetismo em relação aos prazeres, e o legado pessimista que hostilizava o corpo derivam-se sobretudo de considerações médicas, cujas origens remontam à Antigüidade (1). Pitágoras aconselha que as relações sexuais ocorressem preferencialmente no inverno, embora a perda do esperma fosse sempre prejudicial. Segundo Hipócrates, reter o sêmem proporcionava ao corpo a máxima energia. O médico pessoal do Imperador Adriano, Sarano de Éfeso, defendia que o ato sexual só era justificado para a procriação.

Esta visão da sexualidade foi intensificada por uma das maiores escolas da filosofia antiga – o estoicismo – cuja influência se deu sobretudo de 300aC a 250d.C. Esta corrente de pensamento transformou radicalmente a importância que os filósofos gregos reservavam à busca do prazer, fazendo com que sexualidade fosse concentrada no casamento. Este torna-se “uma permissão para a satisfação da luxúria ou do prazer para aqueles que os consideravam indispensáveis” (Ranke-Heinemann, 1996, 23). Mais tarde, quando o prazer carnal no ato conjugal tornou-se um problema teológico, o próprio casamento passou a ser questionado: das mais fortes conseqüências desta novo posição, foi a valorização do celibato.

Os grandes Padres da Igreja – Agostinho, Jerônimo e Tomas de Aquino – contribuíram muito para a manutenção do negativismo em relação ao prazer sexual característico da influência estóica. O sexo só se justificava para a reprodução, caso contrário trará o “estigma negativo do prazer”: vemos emergir uma moralidade que é, essencialmente, moralidade sexual.

No Antigo Testamento a origem do pecado é a desobediência. No capítulo 3 do Livro do Gênesis, intitulado A origem do mal, Eva deixa-se convencer pela serpente e, tentada a igualar-se a Deus, come o fruto da árvore proibida e adquiri discernimento. Como conseqüência, Adão e Eva “abrem os olhos e percebem que estavam nus” (Gen. 3, 7). Ainda que se possa argumentar que o discernimento, a percepção do outro, da morte, envolva o conhecimento da diferença entre os sexos, o que levou à queda, à perda do paraíso, não foi a sexualidade mas sim a vontade de igualar-se a Deus (2).

Ao colocar a origem do mal na sexualidade, ou seja “sexualizar” o pecado original, Agostinho deixou seu maior legado à moral cristã: a concupiscência foi o pecado original; o homem é fruto do pecado. Esta concepção fez do mundo algo entravado pelas exigências do corpo que impediam a acesse da alma; o ser humano tornou-se fragilizado e culpabilizado pelo desejo, o que levou a uma exaltação sem precedentes da virgindade. Mais ainda, a visão sexualizada do pecado original, faz do homem uma vítima indefesa de uma mulher inescrupulosa e sem princípios que o seduz, levando-o a pecar; pecado este, que é sempre sexual. Surge dai a imagem negativa da mulher, concepção ainda presente no ocidente, como a responsável pelo queda; em contrapartida o homem aparece com um ser espiritual em sua origem, mas vítima indefeso da mulher diabólica (3).

Neste novo quadro, argumentar em favor do casamento era difícil pois, ele se opunha à virgindade, incentivava o apego ao corpo trazendo o risco da volúpia carnal, o que impediria a ascese da alma. Ao mesmo tempo, um dilema foi criado: se, por um lado, todo o valor era dado à castidade, por outro lado, era necessário encontrar um forma para regulamentar o casamento como lugar de procriação. Ademais, como pregara o Apóstolo Paulo, ele era uma concessão para os que não conseguiam manter-se puros: “Mas, se não são capazes de dominar seus desejos, então se casem, pois é melhor casar-se do que ficar fervendo” (I Cor., VII, 9). O casamento passou a ser tolerado, mas sob alta vigilância pois o que estava em jogo era a dimensão transcendente da salvação da alma. Dos males, o casamento era o menor.

Uma das maiores contribuições para resolver o impasse virgindade/casamento veio, sem dúvida, da obra Casamento e concupiscência de Agostinho. Nela, o casamento é condenado como local de realização de desejos carnais, mas defendido como fonte de procriação, espaço de fidelidade e sacramento. Para Agostinho, “a castidade da contingência é melhor que a castidade das núpcias, embora as duas sejam boas” (apud Vainfas, 1992, 13). Leia-se: o casamento é inferior à virgindade, e não sendo para a procriação, não há justificativa para o ato carnal. O melhor seria a continência absoluta. Não se podendo alcançá-la, aprisiona-se o desejo no casamento.

A partir do século XII a idéia de “natureza humana” passa a ser identificada à vontade divina, tornando-se um paradigma de reflexão moral: tudo que é natural, é bom e apraza a Deus. Surge, assim, a idéia de “coito natural” que deu origem ao discurso que separa as práticas sexuais em “normais”, identificadas à procriação, e “anormais”, que diziam respeito às práticas infecundas. A idéia é que existiria uma sexualidade normal, conforme as inclinações naturais das coisas, cujo desvio, a depravação (pravus) (4) é definido como “contra a natureza”. Toda vez que a sexualidade desvia da finalidade primeira que a referência animal nos mostra – união de dois órgãos sexuais diferentes para a preservação da espécie – estamos diante de um pecado contra naturam: pedofilia, necrofilia, masturbação, heterossexualidade separado da procriação, homossexualismo, sodomia…
Além dos atos abomináveis, certas posições eram proibidas, e certas épocas do ano impróprias à relações sexuais. A única posição “natural” era a do homem deitado sobre o ventre da mulher. A mulher de costas para o homem assemelhava-se a cópula dos animais; o homem em baixo da mulher, era considerado uma inversão da natureza dos sexos já que denotaria a passividade masculina e a atividade feminina. No primeiro caso, a idéia era extirpar todo traço de animalidade no desejo humano e incluí-lo na razão natural. No segundo, reafirmar a submissão feminina ao homem.

Um outro exemplo da infiltração do religioso no imaginário daqueles séculos diz respeito à sexualidade do casal: a esterilidade era um indicador de alguma forma de impureza na vida conjugal. Ela podia se manifestar, em especial, nas mulheres bonitas como um castigo de Deus por suas vaidades; e nas feias, como castigo pela inveja que tinham das bonitas. O interesse excessivo pelo sexo podia atrasar a gravidez quando não impedi-la (Del Priore, 2001). A impotência, de um ou de outro dos cônjuges, era vista como uma ameaça à sacralidade do matrimônio podendo levar a anulação do mesmo (5).

A partir do século XII a moral que recusa o desejo e o prazer começa a abrandar-se com a aceitação do casamento como espaço legítimo para o uso dos prazeres. Todavia, a concepção do sexo como um mal em si mesmo persiste, sob forma do controle sistemático dos prazeres da carne, e com a inclusão de mais um pecado capital: a luxúria. Luxuriosos eram os que buscavam dentro do casamento principalmente o prazer e, fora dele, não observavam a castidade.

Vimos, até aqui, como a sexualização do pecado e a criação da confissão permitiu à Igreja criar um discurso sobre a sexualidade, através do qual pode controlar e intervir de forma profunda na sexualidade dos fieis. É dentro deste espírito que a moralidade cristã, que “situa os principais pecados da humanidade nos quartos de dormir” (Ranke-Heinemamm, 1996, 47), desenvolveu-se.

A ordem médica

Segundo Foucault (1985, 137), desde o século XVIII o sexo ocupou um lugar central que passou a definir tanto o sujeito quanto a população. E no século XIX,
a sexualidade foi esmiuçada em cada existência, nos seus mínimos detalhes; foi desencavada nas condutas; perseguida nos sonhos, suspeitada por trás das mínimas loucuras, seguida até os primeiros anos da infância; tornou-se a chave da individualidade: ao mesmo tempo, o que permite analisá-la e o que torna possível constituí-la.

A primeira grande ruptura nos mecanismos de controle e repressão da sexualidade começa a esboçar-se no século XVII (Foucault, 1985). A concepção de uma “pulsão sexual” inerente ao ser humano, cuja forma de satisfação poderia ser boa, sadia ou, ao contrario, errada ou ainda perversa, data do Iluminismo, ou seja, do final do século XVII, início do XVIII. Nesta época, as questões de ordem sexual começam a influenciar cada vez mais o social, particularmente a sexualidade legitima no seio da família a fim de regular a procriação. Fato curioso que indica uma mudança profunda nos costumes: dois novos delitos aparecerem nos tratados de direito da época. As relações sexuais precoces, sem o compromisso claro do matrimônio, e a gravidez secreta, pois esta poderia levar ao aborto ou ao assassinato do recém-nascido. Desde o final do século XVII, sobretudo na França e na Alemanha, a questão de como gerenciar o controle da natalidade tornou-se um objeto de discussão social, pois a população passou a ser um recurso do Estado na produção de riqueza (Sarasin, 2002/3). Isto significa que foi a partir de uma perspectiva bio-política que se origina o dispositivo moderno da sexualidade.

O passo seguinte, foi a invenção da sexualidade, tal como a entendemos hoje: aquilo que marca o indivíduo em sua dimensão mais profunda. Segundo Sarasin (2002/3), o processo que levou a esta nova configuração possui quatro características: a descrição do sexo como qualidade constitutiva do sujeito; a passagem do sexo do registro religioso para o médico, acarretando uma transferência da competência sobre estes saberes dos experts religiosos para os da medicina; a diferenciação entre a sexualidade “perigosa” e a “sadia”; finalmente, a biologização da diferença dos sexos como base fundadora de toda sexualidade legítima.

Em 1696 Nicolas Venette, professor de anatomia e de cirurgia em La Rochelle, França, publicou Tableaux de l’amour conjugal, livro pioneiro no gênero, varias vezes reeditado e traduzido em várias línguas.

No livro, Venette mistura o conhecimento medico e as tradições populares para dar conselhos sobre a melhor maneira de se conseguir êxito, ou seja de procriar, nas relações conjugais; ele traz relatos etnográficos sobre as práticas sexuais de povos africanos; revela segredos e dá receitas farmacológicas para combater a impotência e reconstituir o hímen perdido. Graças as autopsias que fazia, Venette descrevia o interior do corpo, inclusive dos órgãos genitais, de forma nunca antes tratada: “os testículos estão guardados no interior de uma bolsa como algo de extremamente valioso. É dai que a natureza tira constantemente a matéria da qual ela produz todos os dias, miraculosamente, os hormônios” (Venette, 1778, 7).

Sem dúvida, o que torna esta obra revolucionária é a clara determinação de seu autor em explicar, de permitir o acesso a um saber relativamente isento da contaminação religiosa. Para Venette, o que a natureza humana mais almeja é conhecer suas origens, as quais ele propõe explicar no livro. A partir do momento que o homem é visto como um ser natural, a sexualidade deixa de ser antagônica à espiritualidade, como era o caso na visão religiosa, para tornar-se algo que lhe é próprio e cuja satisfação, dentro do casamento é sabia, independentemente da reprodução. O Iluminismo coloca a questão das relações entre o instinto e a vontade, e entre o desejo e a virtude de uma forma totalmente nova, sem o moralismo que, até então, lhe era próprio. O homem não é mais entendido como um ser guiado pelos instintos mas, antes, como um ser civilizado capaz de conter-se, no que for necessário, para um valor maior: a sociedade. A nova concepção burguesa do casamento entendia o instinto sexual como algo primordial do sujeito, que deveria ser controlado para ser reutilizado em favor da sociedade (algo bem próximo da concepção freudiana de sublimação). Temos, então, as bases para aquilo que, no final do século XIX passou a ser chamado de “sexualidade”: não era mais possível pensar o sujeito sem o sexo.

Ao mesmo tempo, privilegiar a razão como a nova instância que determina o sujeito autônomo teve um custo: a supremacia do cérebro masculino sobre o sistema nervoso feminino centrado no útero. Ocorreu então, de um lado, uma biologização da diferença sexual centrada sobre o sistema nervoso feminino e o cérebro masculino, e não sobre a diferença anatômica dos órgãos sexuais; e, por outro lado, toda a discussão para se saber como o homem poderia dominar sua sexualidade para dela obter os prazeres conforme as exigências da razão, da moral vigente e da higiene (Laqueur, 1992). Trata-se do modelo do sexo único. Como veremos mais adiante, por mais revolucionárias que tenham sido as posições de Freud, ele manteve-se conservador no que diz respeito a este modelo. Sua origem data da Antiguidade, e o expoente máximo foi Aristóteles. Para ele, existiria uma hierarquia entre os sexos, sendo o masculino o mais perfeito. Após Aristóteles, Galeno construiu uma versão final deste modelo que perdurou por séculos no ocidente. Introduzindo a teoria dos humores, Galeno sustentava que o humores quentes condensaria as virtudes do masculino; e a sua ausência na circulação geral dos humores, caracterizaria o feminino (Briman, 2001). Galeno conclui que a morfologia corporal decorre da circulação dos humores, e o equilíbrio entre eles configuraria a morfologia genital dos sexos. Ou seja, não é a anatomia que determina os sexos, mas sim os humores: este é o paradigma do sexo único. Este paradigma só começou a mudar no século XVII quando, de forma esparsa, aparecem os primeiros atlas de anatomia nos quais as diferenças morfológicas entre o corpo do homem e o da mulher começam a se delinearem. Embora a formulação natural da diferença entre os sexos tenha se consolidado ao longo do século XVIII e no início do XIX, o que teria definitivamente subvertido o modelo do sexo único foi igualdade de direitos dos cidadãos proclamada pela Revolução Francesa (Laquer, 1992). Mas, as conquistas ali alcançadas não propiciaram o proclamado: as mulheres não tiveram os mesmos direitos que os homens. Com a falência do modelo do sexo único, fundou-se novas bases de hierarquia, sustentadas pela natureza biológica, que determinavam as diferentes inserções sociais do homem e da mulher o que, no fundo, manteve inalterada a dominação masculina. É assim que, para avaliarmos corretamente a posição da mulher na cultura ocidental – posição que influenciou o discurso psicanalítico sobre a sexualidade feminina -, não basta, por exemplo, denunciarmos a sua exclusão em determinados setores da sociedade, sobretudo na época de Freud. Mais do que isto: é necessário compreender as disposições hierárquicas que fizeram com que as mulheres, elas mesmas, participassem de sua própria exclusão (Bourdieu, 2002). Talvez, seja na maternidade que o peso deste discurso mostre toda a sua força. O “tornar-se mãe” passou a ser incentivado, como se se tratasse de algo natural – o instinto materno – e não como uma construção ideológica que determinava sem apelo a importância da mulher para o bem estar social (Badinter, 1988). Ou seja, a única forma de manter o novo paradigma sobre a diferença dos sexos e a existência de um instinto sexual inerente a todo ser humano foi fazendo das mulheres seres destinados à reprodução, úteis à sociedade no oficio de mãe e no casamento. Quanto aos homens, eles deveriam lançar mão de sua força espiritual superiora para manter o sexo no limite da decência e no casamento, sendo a masturbação entendida como o inverso da autodisciplina esperada, pois o reverso do instinto sexual “natural”. (Sarasin, 2002/3). São assim lançadas as bases da luta (desta vez médica e não mais religiosa) contra a masturbação que poderia levar à morte ou à loucura devido à perda desnecessária e excessiva de esperma.

Até o meio do século XIX o onanismo era a única forma de desvio reconhecida – perversão – em relação ao sexo “sadio”. Entretanto, algumas décadas mais tarde as coisas começam a mudar: a medicina e a psiquiatria legal se interessam por uma sexualidade não controlável que estaria presente na passagem ao ato em muitas formas de crimes. Em 1857 Ambroise Tardieu, professor de medicina legal na Universidade de Paris, “o mais eminente representante da medicina legal francesa” (Masson, 1984, 17) (6), publica o famoso Étude médico-légale sur les attentats aux mœurs (Estudo médico-legal sobre os atentados aos costumes), rapidamente traduzido em várias línguas. Neste clássico da época, ao lado dos excessos sexuais que podiam chegar aos crimes sexuais, mas que não eram classificados como perversões, uma outra forma de sexualidade aparece: the nameless crime: o crime sem nome. Trata-se da pederastia e da sodomia, hoje chamados de homossexualidade e coito anal.

As teorias de Tardieu marcariam a passagem do conceito de perversão do Iluminismo – o onanismo – ao da época da industrialização – a homossexualidade (Sarasin, 2002/3). Mais tarde, em 1886 o visconde Richard Von Krafft-Ebing, especialista em medicina legal, escreve o famoso Psychopathia Sexualis no qual traça um longo inventário das perversões humanas e rediscute as pulsões heterossexuais. Este novo reexame do problema faz do desejo sexual uma energia fundamental, motor de toda ação humana. Entretanto, ainda que esta pulsão não possa ser devidamente apreciada sem levar em conta a genitalidade, cabia à psiquiatria garantir que ela fosse pelo menos “boa”, para o sujeito e para a sociedade, se diferenciando das disposições “perversas”. Isto significa que o idéia de que a pulsão era responsável não apenas para a reprodução e para o prazer, mas que também estava presente em todas as ações humanas já era teorizada. A pulsão em si é uma pulsão livre: ou ela consegue seguir o seu caminho segundo a moral, ou ela se perverte.

O Psychopathia Sexualis traz algo de radicalmente novo: uma imagem da sexualidade que se divide em “sexualidade normal” em sua essência, e uma sexualidade geneticamente perversa devido a taras hereditárias.

A subversão freudiana


Os grandes psiquiatras e sexólogos do século XIX esforçaram-se para traçar um “herbário” dos prazeres (Foucault, 1985, 63), que ia desde o tímido admirador de sapatos femininos até o “sentimento contrário”, ou seja, a homossexualidade. Um minucioso inventário das práticas sexuais que escapavam aos ditames morais foram repertoriadas e etiquetas, fazendo surgir novas formas de perversões. Dentro de uma perspectiva higienista e repressiva, discutiam-se os “efeitos nocivos da sexualidade”: práticas contra a natureza, os perigos da masturbação, do coito interrompido, uma vida conjugal insatisfatória…

O pequeno ensaio de 40 páginas publicado em 1905 por Freud - Três ensaios sobre a Teoria da Sexualidade - subverte os esquemas explicativos tradicionais. A concepção de “pulsão natural versus pulsão perversa” é abandonada, e o debate centra-se na diferença entre o objeto sexual e a finalidade sexual (entre o objeto desejado e a atividade sexual almejada com o objeto). Se a pulsão não tem objeto fixo, nada existe que seja biologicamente programado: toda forma de atividade sexual resulta de um percurso pulsional, de uma história individual e única. Ou seja, a sexualidade em cada ser humano, devido à singularidade da história de cada um, terá um destino particular: não há uma única maneira que se proponha certa e universal para as manifestações da sexualidade. A civilização comete uma grande injustiça ao “exigir de todos uma idêntica conduta sexual” (Freud, 1908, 197). A fixação heterossexual, assim que a homossexual, necessitam igualmente de explicação, posto que a base da “escolha sexual” repousa tanto na disposição bissexual do ser humano, quanto na sexualidade infantil, cuja natureza é perversa e polimorfa em uma dimensão essencialmente auto-erótica: na disposição a todas as perversões encontramos o humano e o original (Freud, 1905).

Sem dúvida, a mudança de paradigma trazida por Freud foi de peso. Com Freud, a sexualidade, inclusive a perversa, torna-se humana, constituindo o núcleo mais profundo do sujeito: não há sentido falar de “bom ou de mau sexo”, de “sexo sadio ou doente”. Para Freud, finalmente, a sexualidade é dificilmente compatível com as exigências da civilização, constituindo-se mais como fonte de mal-estar do que de felicidade (Freud, 1929).

Lacan, em sua teorização, contribuiu para a compreensão freudiana ao mostrar que o sujeito pode ficar preso numa captura narcísica, para evitar o encontro angustiante do que ele é como objeto para o Outro. No início, essa captura narcísica inscreve-se no sujeito quando ele reflete a imagem que corresponde ao desejo dos pais ou da família e está articulada à constituição do sujeito como um tempo lógico necessário e estruturante, o Estádio do Espelho, em que sua imagem ideal refletida é autenticada pelo Outro. Essa ilusão narcísica de completude é a condição necessária para a constituição do sujeito e sua inscrição no campo do Outro, no simbólico. Corre-se entretanto o risco de se ficar preso ao imaginário, ao ideal, numa alienação à imagem e portanto detido, paralisado. O encontro com o desejo do Outro é sempre enigmático e angustiante para o sujeito, pois nunca se sabe o que pode advir. As relações amorosas, que são expressões de laços sociais, geralmente refletem essa forma de vínculo alienante em que o sujeito evita a renúncia de ser o objeto imaginário que obtura a falta do Outro, renúncia que possibilita o acesso ao desejo.

Nas últimas décadas, o discurso psiquiátrico sobre a sexualidade ganhou roupa nova com o surgimento, e a utilização cada vez mais difundida, dos DSMs. Isto significa que o sexual continua a incomodar fazendo surgir novos mecanismos de controle (Ceccarelli, 2010).

Reflexões finais

Com esta breve digressão sócio-histórica, procuramos mostrar como os discursos sobre a sexualidade são tentativas de nomear o Isso: a alteridade interna, aquilo que nos lembra que não somos senhores em nossa própria casa. Tais discursos foram sendo construídos ao longo dos séculos, até ocuparem uma parte central tanto na vida individual quanto na coletiva da sociedade ocidental. A cada momento histórico, este saber foi apresentado como uma verdade, seja ela ditada pela Igreja, pelo Estado, ou pela medicina. O discurso ideológico sustentando por este saber e, atrelado aos interesses que sustentava o poder e à ordem política, estabeleciam o que deveria ser considerado “normal” e, por extensão, o patológico em termos de desejos e práticas sexuais.

Foi no interior do discurso médico-psiquiátrico que a psicanálise surgiu. Por isso, a psicanálise, fruto da cultura ocidental, só pode ser entendida a partir da perspectiva histórica que a precedeu.

Para que a psicanálise, que em um primeiro momento foi libertadora ao denunciar a existência de uma outra cena que determina nossas escolhas objetais, não se transforme em mais uma prática normativa é necessário que os psicanalistas façam constantes incursões em seus conceitos de base para confrontá-los com os movimentos sócio-históricos. Há de se levar em conta as mudanças sociais, sob pena de ficarmos arraigados à teses não mais sustentáveis na contemporaneidade.

1- Boa parte que se segue baseia-se na obra de referência sobre o tema: Eunucos pelo Reino de Deus” Cf. Ranke-Heinemann, 1996.

2 – Não nos passa despercebido como o resultado do adquirir conhecimento – perceber-se nu, sofrer para alimentar-se, sentir dor no parto, o conhecimento da finitude, enfim, todas as conseqüências da perda do paraíso – é muito próximo dos processos que envolvem a constituição do sujeito tal como entende a psicanálise: a saída do narcisismo primário (o paraíso), a percepção da alteridade, da castração, da diferença dos sexos…

3- Este “destino” sem paralelo dado à mulher no mundo cristão, que esteve presente na caça às bruxas na idade média, continua presente até hoje: em muitas decisões judiciais a pena é reduzida quando se prova que foi a mulher que “provocou” o homem.

4- O termo perversão, derivado de per vertere, “pôr de lado”, ou “pôr-se à parte, aparece pela primeira vez em 1444. Foi somente no final do século XIX e no século XX que “perversão” passou a ser usado em relação aos comportamentos sexuais que fogem à norma. Cf. Peixoto Júnior, 1999.

5- A anulação do casamento era permita em caso de infertilidade feminina e de impotência masculina, desde que provada pela esposa. Para tal, ela deveria, segundo alguns teólogos, ter o testemunho de sete pessoas. Outros eram a favor da ordália: para provar a sua inocência, o marido acusado de impotência deveria caminhar sobre ferros quentes ou colocar os pés em água fervente. Se fosse inocente, nada lhe aconteceria. Outros ainda, optavam pela indicação de sete parteiras que, após minucioso exame das partes genitais da esposa, verificavam se houve, ou não, a ruptura do hímen.

6 – Freud teria freqüentando, durante a sua estada em Paris, tanto as aulas do Prof. Tardieu, quanto o necrotério local onde teria presenciado autopsias em crianças mortas devido a abusos sexuais. Masson considera incompreensível que este fato importante durante a estadia de Freud em Paris nunca tenha recebido a devida atenção por parte dos estudiosos de Freud. Cf. Masson, 1984.

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Fonte:
in Reverso, Revista do Círculo Psicanalítico de Minas Gerais, ano XXXII, 60, 15-24, 2010
Ana Cristina Teixeira da Costa Salles
Paulo Roberto Ceccarelli
https://www.ceccarelli.psc.br/


Fonte: Blog Homofobia Basta!
https://homofobiabasta.wordpress.com/2011/07/04/a-invencao-da-sexualidade-pela-religiao-super-interessante/

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