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De onde vem essa história de que a carne é fraca?

Um dos muitos mitos de origem


A prisão de Cristo (1598), Caravaggio


Por Sergio Viula


De onde vem essa história de que a carne é fraca?


Diversos fatores passíveis de exame crítico/histórico podem servir de plataforma para explicar como a morte de um homem que nasceu num dos lugares mais distantes do centro de poder da época (Roma), viveu numa região das mais pobres (Nazaré), e veio a se tornar um ícone tão poderoso e mobilizador de tanta energia mental em tantas partes do mundo ao mesmo tempo, acabou se tornando esse messias que tanta gente adora.

Basta que chegue uma data como a semana santa ou o natal para que vejamos a força que essa tradição exerce até sobre aqueles que vivem o ano inteiro como se ela fosse tão importante quanto qualquer outra crença. De seres fantásticos integrados e dependentes da floresta até um deus acima de tudo e todos, que não depende de nada para ser, a religião passou por uma tremenda evolução - ou involução, dependendo do ponto de vista.

É interessante ver como tanta gente que se deleita com um bom churrasco, seja de carne de frango, de gado bovino ou suíno, ou alguma de origem mais exótica, é capaz de deixar tudo isso de lado para comer peixe e frutos do mar, sem sequer estabelecer qualquer conexão necessária entre isso e a morte de Jesus.

Dizer que isso é feito em respeito ao corpo torturado de Cristo não parece ser uma boa razão, visto que nas próprias escrituras cristãs não há qualquer passagem que sugira tal coisa.

Bem, para mim isso não é problema, porque há três anos parei de comer carne, exceto pelo peixe. Então, comer peixe hoje ou no carnaval não é nada que fuja da minha rotina.
Mas, não é dessa carne que eu quero falar. O que quero pensar aqui é de onde as pessoas tiraram essa contraposição entre a ” carne” e o “espírito”.

Quando algum cristão (ou seu mímico, sem qualquer vínculo com a fé no nazareno) pensa que a “carne é fraca”, ele geralmente tem em mente o corpo decaído. Decaído, porque em Adão todos caíram, conforme apregoa a maioria das teologias cristãs. Assim, o corpo já nasce contaminado pelo pecado e com uma tendência intrínseca para pecar sempre, devendo, portanto, ser meticulosamente cerceado. Daí, as dietas religiosas, as indumentárias da santidade, o controle do sexo, entre outras técnicas de repressão e condicionamento.

Como supostamente disseram Paulo e Tiago, respectivamente, nas passagens abaixo, o corpo deve ser subjugado:

Antes subjugo o meu corpo, e o reduzo à servidão, para que, pregando aos outros, eu mesmo não venha de alguma maneira a ficar reprovado. 1 Coríntios 9:27

Porque todos tropeçamos em muitas coisas. Se alguém não tropeça em palavra, o tal é perfeito, e poderoso para também refrear todo o corpo. Tiago 3:2

Não é de admirar que os castigos corporais e restrições aos prazeres mais banais façam parte do imaginário e da prática da cristandade. As orações prolongadas em jejum, as vigílias, as penitências, a autoflagelação e outras formas mais agressivas de subjugação (só que não subjugam coisa alguma) são também algumas dessas “técnicas”.

Contudo, o convento, o mosteiro, as sacristias, os gabinetes pastorais, e outros ambientes onde o controle do corpo é uma neurose constante, negam a eficácia dessas “técnicas” repressivas. Há coisas que acontecem ali que fariam as/os profissionais do sexo duvidarem de seus próprios olhos se pudessem vê-las.

Na verdade, não haveria razão para reprovar a maioria desses “atos pecaminosos”, caso fossem experiências vivenciadas por outros que não os mesmos que condenam tais coisas na vida alheia. De fato, não fosse a pedofilia, tão comum nesses ambientes, as outras relações seriam absolutamente inofensivas em quaisquer outros contextos, fosse o relacionamento entre homens e mulheres, o relacionamento entre homens e homens, ou o relacionamento entre mulheres em mulheres. Só que essas experiências corporais ganham contornos bem diferentes quando desfrutadas por padres, freiras, pastores e pastoras. E por que isso? Justamente porque esses clérigos e essas “noivas de Cristo”, que é como as freiras geralmente se denominam, são a representação de toda essa repressão supostamente justificada por uma busca de santidade, mas que é – ela sim – absolutamente contra a natureza. O antagonismo se revela em pares: céu x terra, corpo x alma, santidade x prazer, e por aí vai.

Mas o pior é sempre a repetição irrefletida, desprovida de crítica, e de averiguação. Um dos chavões mais repetidos entre os cristãos e – de novo – seus mímicos é: “a carne é fraca”. Trata-se de um recurso para quem se defende ou para quem tenta justificar o “erro” de alguém que lhe interessa de modo mais especial do que o restante da humanidade.

Entretanto, essa frase atribuída a Jesus nunca foi usada nesse sentido, nem no contexto de pecado, nem com ideia de que o “corpo do pecado” é mais forte do que alma. A contraposição que Jesus faz é bem outra. Veja a passagem (grifos meus):

36  Então chegou Jesus com eles a um lugar chamado Getsêmani, e disse a seus discípulos: Assentai-vos aqui, enquanto vou além orar.

37 E, levando consigo Pedro e os dois filhos de Zebedeu, começou a entristecer-se e a angustiar-se muito.

38 Então lhes disse: A minha alma está cheia de tristeza até a morte; ficai aqui, e velai comigo.

39 E, indo um pouco mais para diante, prostrou-se sobre o seu rosto, orando e dizendo: Meu Pai, se é possível, passe de mim este cálice; todavia, não seja como eu quero, mas como tu queres.

40 E, voltando para os seus discípulos, achou-os adormecidos; e disse a Pedro: Então nem uma hora pudeste velar comigo?

41 Vigiai e orai, para que não entreis em tentação; na verdade, o espírito está pronto, mas a carne é fraca.

42 E, indo segunda vez, orou, dizendo: Pai meu, se este cálice não pode passar de mim sem eu o beber, faça-se a tua vontade.

43 E, voltando, achou-os outra vez adormecidos; porque os seus olhos estavam pesados.

44 E, deixando-os de novo, foi orar pela terceira vez, dizendo as mesmas palavras.

45 Então chegou junto dos seus discípulos, e disse-lhes: Dormi agora, e repousai; eis que é chegada a hora, e o Filho do homem será entregue nas mãos dos pecadores.

(Mateus 26:36-45)

Qual foi a intenção de Jesus com essa fala, então? Foi simplesmente a de reconhecer que os três discípulos que ele havia levado para um ponto mais retirado do Getsêmani, a fim de que vigiassem e orassem, enquanto ele se afastava para orar sozinho, estavam dispostos (o espírito está pronto), mas não conseguiam se manter acordados (a carne é fraca), devido ao cansaço resultante das jornadas dos dias anteriores e das emoções que precederam sua prisão ali mesmo naquele horto. Ele chegou a reprovar Pedro por não ter conseguido ficar uma hora sequer velando com ele – o mesmo Pedro que teria dito ser capaz de morrer por ele, mas nunca nega-lo.

O significado dessa fala, se parafraseada, seria o seguinte:

Eu sei que vocês estão dispostos, não é por mal que vocês pegaram no sono, mas porque o corpo não aguenta mais ficar em pé. Então, durmam, porque não fará diferença. Serei entregue de qualquer modo nas mãos dos que me odeiam.”

Isso nada tem a ver com pênis, vagina, boca, ânus, seios, peitos, pelos, pele, orgasmo, ejaculação, ereção, contrações vaginais ou anais, e por aí vai. A ideia de associar a fala de que “a carne é fraca” às relações sexuais e ao erotismo do corpo humano, do qual a mente também é produto, vem de outro momento: vem dos apóstolos metidos a tradutores do pensamento de Jesus, os quais disseram, em suas cartas, coisas que ele nunca disse em seus sermões e conversas íntimas com os discípulos, conforme registrado.

Posteriormente, Santo Agostinho, querendo aproximar a teologia católica da filosofia grega, criando um híbrido perigoso, falou de sua própria juventude como um tempo de satisfação da “carne”, reforçando a ideia de que o corpo é desprezível e que tudo o que vem dele condenável. Ele reduz o homem a uma entidade espiritual, condenada a um invólucro que o arrasta para baixo (mais baixo do que o animal), mas tudo isso não passa de uma manobra realizada por uma consciência adoecida por culpas que ela mesma inventou para si. Agostinho, bem como alguns de seus antecessores e muitos de seus contemporâneos, padeciam dessa neurose que faz desprezar o corpo e incensar a alma.

Que coisa me deleitava senão amar e ser amado? Mas, nas relações de alma para alma, não me continha a moderação, conforme o limite luminoso da amizade, visto que, da lodosa concupiscência da minha carne e do borbulhar da juventude, escalavam se vapores que me enevoaram e ofuscaram o coração, a ponto de não se distinguir o amor sereno do prazer tenebroso. (SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. [Coleção Os Pensadores]. 2000, p. 63-64)

E não apenas na juventude, mas ele lamentava que suas concupiscências continuavam e continuariam atormentando sua “alma”, enquanto ele não morresse. A linguagem é rebuscada, mas é exatamente isso que ele diz:

[…] concluiremos, assim, as tentações da concupiscência da carne, que ainda me perseguem, fazendo-me gemer e desejar ser revestido pelo nosso tabernáculo que é o céu. Os olhos amam a beleza e a variedade das formas, o brilho e amenidade das cores. Oxalá que tais atrativos não me acorrentassem a alma! (SANTO AGOSTINHO. Confissões. São Paulo: Nova Cultural, 2000. [Coleção Os Pensadores]. 2000, p. 294)
Essa ideia de que a alma é superior ao corpo é uma reedição adaptada do platonismo. Para Platão, o mundo sensível era inferior ao mundo ideal (o mundo das ideias). Agostinho vai buscar essa premissa platônica para construir sua “antropologia teológica”. O céu é superior a terra, a alma é superior ao corpo, e Deus é o supremo bem – coisa que Platão nunca sonhou em dizer. Até porque os gregos nunca deixaram de usufruir dos prazeres que o corpo podia proporcionar: a degustação de bom vinho, boa comida, a camaradagem entre homens (o que incluía o relacionamento sexual), o conhecimento do mundo e de seu funcionamento como uma atividade emancipadora, e por aí vai. Agostinho e Tomás de Aquino conseguiram perverter isso. O primeiro o fez com o platonismo, e o segundo, com o aristotelismo.

Não admira que ainda haja tanta gente coxeando entre o pensamento de ser feliz e o pensamento de ser obediente. Mas obediente a quem? Obediente a neuróticos que ganharam renome com o tempo? Obediente a escrituras absolutamente questionáveis sob diversos aspectos? Obediente a homens e mulheres borrados de óleo e que portam chapéus engraçados ou vestimentas espalhafatosas? Obediente a ideias de “santidade” que nada mais são do que a negação de tudo o que é natural, prazeroso, tudo o que fomenta nossa criatividade, alegria e potencial para ser e para fazer feliz?

Não é exatamente essa obediência que se constitui a plataforma de todo o tipo de fundamentalismo? Não é dessa repressão que se faz toda sublimação que põe tanta gente a trabalhar incansavelmente por recompensas pós-mundanas? E quem ganha com isso? Os administradores dos dividendos da fé, é claro. Toda a riqueza das religiões que trabalham com essa “lógica” é incomensurável – da Basílica de São Pedro (no Vaticano) até a mais simples capelinha da mais nova igreja fundada por aquele pastor ex-traficante, que mal sabe escrever, ali na esquina.

Qual é a moral dessa história, então?

É preciso libertar-se dos fantasmas que têm assombrado o mundo, graças a um considerável número de homens e mulheres, mas principalmente homens, sexualmente mal resolvidos e dominados por ressentimentos contra a humanidade, contra o mundo, e contra tudo o que diga respeito às incríveis possibilidades, bem como as inegáveis limitações, de nossa existência.

Abandonemos ideias como recompensas ou castigos pós-mundanos ou intra-mundanos promovidos por uma divindade, ou lei estabelecida por uma força ou entidade superior aos seres humanos.

Desprezemos completamente o discurso dos desprezadores do corpo.

Como dizia Nietzsche no preâmbulo de seu Assim falou Zaratustra:

“Exorto-vos, irmãos meu, a permanecerdes fiéis à terra e a não acreditardes naqueles que vos falam de esperanças supra-terrestres. São envenenadores, quer o saibam ou não. São menosprezadores da vida, moribundos que estão, por sua vez, envenenados, seres de quem a terra encontra-se fatigada; vão-se de uma vez.”

O mais irônico é que os desprezadores do corpo não compreendem que a mente doentia, que nega sua própria corporalidade, continua sendo projeção desse mesmo corpo. Por mais que acreditem que possam se emancipar do corpo, nunca deixarão de ser corpo e de viver de acordo com aquilo que ele mesmo projeta, mesmo quando o negam. O corpo é a origem de tudo o que somos, pensamos e sentimos, inclusive aquilo a que chamamos de “mente” e aquilo a que chamamos de “ego”. Tudo isso é produzido pelo corpo, é projeção dele - de intrínsecas e incríveis combinações bioquímicas dentro de nós.

Os desprezadores viverão reprovando o corpo e negando seu potencial erótico/criativo, mas não sobreviverão à própria morte para descobrir que perderam tempo precioso e irrecuperável. Isso é lamentável, obviamente, mas uma coisa é fantástica: podemos viver nossa corporalidade, ou seja, não precisamos seguir o rebanho de corte, pastoreado por aqueles que vivem de suas mortes, podemos viver intensa e plenamente a despeito deles. Vivamos, então, sem qualquer restrição que não apenas a de vivenciar nossos prazeres com aqueles que espontânea e consensualmente desejam a mesma coisa. Nada mais é necessário.

Originalmente publicado em 19 de fevereiro de 2017. Atualizado em 18/08/17.

Prazer e fundamentalismo...

Prazer e fundamentalismo...


Atualizado em 14/11/14
 

Prazer é uma palavra que assusta a uns e fascina a outros. Mas é vero que todos agimos irrefletidamente de acordo com o princípio do prazer e da dor. Busco o que me satisfaz e evito o que me causa dor. Posso suportar uma dor em nome de um prazer maior. Até os mais elevados atos heroicos seguem esse princípio.

Quem dera que todas as minhas relações fossem sempre assim: cheias de prazer! E não me refiro somente e nem principalmente ao sexo – o que adoro! Tudo é relação: comer, dormir, escrever, ler, conversar, respirar, amar, odiar, e assim por diante. É relação entre corpos: o meu e os dos outros, sejam vivos ou brutos. Mantenha isso em mente enquanto estiver lendo este post.

Então, vejamos...

Há muita gente neurótica neste mundo – disso não há dúvida. Mas é provável que nenhuma neurose seja pior do que a do fundamentalista – eleve-se tudo isso à milésima potência quando esse fundamentalista for um fanático dos três maiores monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo).

Todo ser humano é um agente. Mas é agente porque tudo é relação. Muitas dessas relações passam pela carência. O agente é carente porque é corpo, e como todo corpo mantém diversas relações com diversos outros corpos ao seu redor.

É óbvio que os corpos afetam-se mutuamente de muitas maneiras. O mais surpreendente é como pode haver gente que ainda não percebeu que o que despreza em si, é, no final das contas, simplesmente ele mesmo. É certo que faço escolhas, mas quem disse que estas são inteiramente livres? Há sempre algum tipo de limitação imposta pelo próprio corpo ou por outros corpos que se relacionam com ele em alguma intensidade.

Um exemplo muito elementar: sinto fome – isso é uma manifestação do corpo, fruto de uma carência básica: a necessidade de energia. Penso que posso comer o que quiser, mas isso não é verdade. Ingiro necessariamente aquilo que o corpo deseja e que o corpo suporta. Pedra não é alimento. Sua composição não combina com a minha. A relação é péssima.

Isso quer dizer que há limitações impostas pela própria constituição dos corpos. Neste caso, eu e a pedra. Mas isso se estende a tudo que entra em relação comigo.

Existem fantásticas relações de necessidade, potência e limite em todas as coisas e entre todas elas.

Destes dois despretensiosos exemplos, os leitores mais argutos podem deduzir tudo o mais: sou corpo. Como poderia ser desprezador do corpo sem que fosse, por definição, desprezador da vida – ou o inverso, se preferirem?

Por isso, o fanático religioso e outros ultraconservadores odeiam tudo o que se relaciona com o corpo. Também odeiam, talvez por inveja e ressentimento contra si mesmos, todo e qualquer outro ser humano cuja relação com o corpo não seja conflituosa como a deles. Chegam a atribuir virtude ao conflito, citando coisas como o que Paulo escreveu em I Coríntios 9:27:

“Mas esmurro meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado.”

Só não percebem que já estão enganados na premissa de que precisam “esmurrar o corpo”, eufemismo para desprezar, renegar, privar de prazer.

Esta semana recebi umas mensagens que me fizeram pensar bastante nessa questão. Não há como não enxergar que as crenças em vidas futuras, sejam castigos ou recompensas, passam por esse desprezo ao corpo, e o alimentam. Tanto desprezam o próprio corpo que acabam por desprezar tudo o que o excita, incita ou estimula de algum modo que não passe por um estupidificador processo de sublimação. Desprezam o mundo, a vida, e tudo o que remete à alegria de viver no único mundo a que terão acesso: este aqui!

Há certas passagens que valem a citação. Há uma em que Gilles Deleuze fala sobre Espinosa que merece destaque neste artigo.

Para quem ainda não ouviu falar de Espinosa ou não conhece sua obra, pode-se dizer simplesmente que ele privilegiou – com seu pensamento – a natureza, o corpo, a vida! Aí vai um recorte do que disse Gilles Deleuze sobre Espinosa:

"Quando Espinosa diz: o espantoso é o corpo... não sabemos ainda o que pode um corpo... Com isso ele não quer fazer do corpo um modelo, e da alma uma simples dependência do corpo. O seu empreendimento é mais sutil. Quer abater a pseudo-superioridade da alma sobre o corpo. Há a alma e o corpo, e ambos exprimem uma única e mesma coisa: um atributo do corpo é também uma expressão da alma (a velocidade, por exemplo). Do mesmo modo que vocês não sabem o que pode um corpo, assim há muitas coisas no corpo que não conhecem, que ultrapassam o vosso conhecimento, e analogamente há na alma muitas coisas que ultrapassam a vossa consciência. Eis a questão: o que é que pode um corpo? de que afetos é que são capazes? Experimentem, mas é necessária muita prudência. Vivemos num mundo muito desagradável, onde não somente as pessoas mas também os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, e os afetos tristes, são todos aqueles que diminuem a nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos precisam de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os ladrões de almas, necessitam de nos persuadir de que a vida é dura e pesada. Os poderes precisam menos de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virgílio, de administrar e organizar os nossos pequenos e íntimos terrores. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida... Podemos dizer "dancemos" que nem por isso ficamos alegres. Podemos dizer "que desgraça é a morte", mas era preciso que tivéssemos vivido para termos algo a perder. Os doentes, tanto da alma como do corpo, não nos darão descanso, são vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado a sua neurose e a sua angústia, a sua querida castração, o ressentimento contra a vida, o seu imundo contágio. Tudo é uma questão de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar os encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou encerram um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. (...) a Alma e o Corpo, a alma não está em cima nem em baixo, está "com", está na estrada, exposta a todos os contatos, encontros, em companhia daqueles que seguem o mesmo caminho, "sentir com eles, captar a vibração da sua alma e da sua carne ao passar", o contrário de uma moral de salão - ensinar a alma a viver sua vida, não a salvá-la"
(Deleuze, Gilles; Parnet Claire: Diálogos, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2004, p. 79-81)

Portanto, digo com alegria: só existe um remédio para a neurose dos fundamentalistas – entrar em contato e sintonia com o próprio corpo. Não temer a alegria. Fundamentalistas riem pouquíssimo (quando riem!).

A alegria é a própria força da vida! Como me alegro em ter deixado as amarras existenciais que me atavam à bigorna dos dogmas e me arrastavam para um poço existencial sem fundo. Que gostoso respirar livremente. Livremente aqui não significa sem contingências, mas na própria relação com elas, ora forçando os limites, ora me conformando a eles, numa relação sustentável e que enriquece a própria vida com experiências que seriam impossíveis sem essa elasticidade, sem essa flexibilidade. Diferentemente do fundamentalista, que se engessa com medo das mudanças, que odeia toda variação, que treme diante de qualquer dúvida, pois quer ter certeza, mesmo que não haja qualquer evidência. Acredita que aquilo que aprendeu – não importa quão errado esteja (ele nem pensa nessa possibilidade) – jamais poderá mudar sem que alguma catástrofe universal se abata sobre ele. Quando vê que outros têm mobilidade, flexibilidade, que agem de acordo com sua própria potência, o fundamentalista jura e repete para si mesmo que algum dia um juízo sobrenatural virá sobre esses rebeldes. Só não percebe que ele mesmo é que está em rebelião contra si mesmo, contra sua própria natureza, contra a constituição de seu corpo e contra as relações que poderiam aumentar sua potência de agir, de existir. Assim, perde sua própria vida, tentando salvá-la, pois não vive de fato. Apenas existe.

Abrir-me às diversas possibilidades do próprio corpo e dos demais corpos ao meu redor pode demandar uma capacidade muito grande de senso crítico e coragem para agir de modo diferente do que tradicionalmente acreditei ser verdadeiro, mas nada se compara à alegria de viver assim.

Para Espinosa, corpo e alma são um só. Não existe essa entidade supostamente imortal, independente, supostamente superior ao que é material, que os supersticiosos chamam de alma. Alma é o corpo pensando, sentindo, desejando, lembrando.

Muitos corpos têm sido sacrificados em nome da manutenção e aperfeiçoamento do meu: animais, vegetais, minerais, etc. Mas chegará o dia em que o meu corpo também será oferecido à manutenção e ao aperfeiçoamento de outros. Talvez meros micróbios. Isso também é relação, mas até que essa relação finalmente se realize – e vai se realizar, porque não viverei para sempre – tenho a oportunidade de experimentar outras e deliciosas relações que aumentam minha potência de agir.

Ora com prudência, ora com ousadia, viverei tudo o que há para viver. Não permitirei que aqueles que vivenciam paixões de morte me contagiem com sua morbidez existencial. O antídoto para isso é a alegria – essa paixão de vida; esse elixir que fortalece meu ser como nenhum outro.

Que corpos se relacionam comigo produzindo alegria? Isso depende das características de cada um. Tenho algumas em comum com os demais, donde é possível falar em corpo humano, mente humana, paixões humanas, mas carrego em mim mesmo minhas próprias especificidades. Viverei de acordo com as minhas e não me espantarei demasiadamente com a percepção de que as dos outros podem ser diametralmente opostas. Qualquer tentativa de uniformizar as variações que caracterizam a Natureza seria perda de tempo e diminuição da potência de agir, da força de existir, ou seja, uma prévia da morte. Viver é justamente ser a si mesmo, mantendo relações saudáveis com tudo o que aumenta minha alegria, ou seja, com corpos que interagem bem com esse corpo que sou eu.

Felicidade é possível?


Existem pelo menos quatro razões para a infelicidade humana: temer a ira dos deuses, apavorar-se diante da morte, escolher mal os objetos do desejo e angustiar-se ante o sofrimento. A felicidade, entretanto, não é difícil.

A ira dos deuses e o pavor da morte caem por terra quando compreendemos que não estamos sujeitos ao temperamento dos deuses — sejam muitos ou seja somente um. O mundo parece funcionar de acordo com uma dinâmica essencialmente atômica. A morte é a desagregação de nossa atual composição atômica, ou seja, essa configuração que resultou em nosso corpo e que o mantém em funcionamento, seja em nível físico, intelectual, emocional, etc. Enquanto somos, não há morte; e, quando a morte chega, deixamos de ser. Não há sofrimento pós-morte. Pode haver algum antes que ela se concretize, mas não depois. E mesmo esse que pode precedê-la tem fim certo.

Já a busca pelo objeto de desejo e a angústia ante o sofrimento têm a ver com a ética que adotamos. Precisamos entender que dor e prazer mesclam-se na vida. Prazer não tem nada de mal em si, mas o modo como o buscamos pode ser destrutivo ou não. Muito do prazer enlatado que as pessoas compram quando vão em busca de fontes imediatas de satisfação acaba por prejudicar sua própria vida e a de outros. Isso traz infelicidade. Devemos, sim, buscar o maior prazer possível e evitar o máximo de dor possível — para nós mesmos e para outras pessoas. Viva com prazer, mas não deixe de avaliar "como" pretende fazer isso. Prazer duradouro e benfazejo conjuga afetividade com racionalidade.

A vida é boa. Ninguém quer perdê-la. Mas o grande barato da vida é desfrutar de bem-estar o maior tempo possível — e isso passa pela paz interior, pelas amizades (de verdade) e pelo gosto pelo que é verdadeiro. Não há deuses a quem temer ou a quem recorrer. Não há mistério na morte. Não há prazer errado, mas modos ilegítimos de se obter prazer. Não há como nunca sentir dor em algum grau, mas podemos evitá-la ou remediá-la de muitas maneiras. Há prevenção e remédio para a maioria das dores que podemos experimentar no dia a dia. O que nunca devemos é nos angustiar ante a possibilidade de perder o que nos dá prazer ou de deparar com o que nos possa causar dor, porque isso já seria sofrimento antes mesmo de qualquer situação concreta de dor.

Viver hoje do jeito mais gostoso possível, sem angústia, sem medo, sem estresse. Extrair prazer das pequenas e grandes coisas. E nunca esquecer que nossa própria finitude deve ser nosso maior incentivo à felicidade e à realização plena de nós mesmos. Colocar metas alcançáveis e produtivas, que tragam satisfação — e não ansiedade na tentativa de fazer o que é impossível — é uma das muitas maneiras de realizar seu potencial sem perder a si mesmo de vista.

Existem mil maneiras de sentir prazer sem prejudicar a si mesmo ou aos outros: invente a sua!!!

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