
Atualizado em 14/11/14
Prazer é uma palavra que assusta a uns e fascina a outros. Mas é vero que todos agimos irrefletidamente de acordo com o princípio do prazer e da dor. Busco o que me satisfaz e evito o que me causa dor. Posso suportar uma dor em nome de um prazer maior. Até os mais elevados atos heroicos seguem esse princípio.
Quem dera que todas as minhas relações fossem sempre assim: cheias de prazer! E não me refiro somente e nem principalmente ao sexo – o que adoro! Tudo é relação: comer, dormir, escrever, ler, conversar, respirar, amar, odiar, e assim por diante. É relação entre corpos: o meu e os dos outros, sejam vivos ou brutos. Mantenha isso em mente enquanto estiver lendo este post.
Então, vejamos...
Há muita gente neurótica neste mundo – disso não há dúvida. Mas é provável que nenhuma neurose seja pior do que a do fundamentalista – eleve-se tudo isso à milésima potência quando esse fundamentalista for um fanático dos três maiores monoteísmos (judaísmo, cristianismo, islamismo).
Todo ser humano é um agente. Mas é agente porque tudo é relação. Muitas dessas relações passam pela carência. O agente é carente porque é corpo, e como todo corpo mantém diversas relações com diversos outros corpos ao seu redor.
É óbvio que os corpos afetam-se mutuamente de muitas maneiras. O mais surpreendente é como pode haver gente que ainda não percebeu que o que despreza em si, é, no final das contas, simplesmente ele mesmo. É certo que faço escolhas, mas quem disse que estas são inteiramente livres? Há sempre algum tipo de limitação imposta pelo próprio corpo ou por outros corpos que se relacionam com ele em alguma intensidade.
Um exemplo muito elementar: sinto fome – isso é uma manifestação do corpo, fruto de uma carência básica: a necessidade de energia. Penso que posso comer o que quiser, mas isso não é verdade. Ingiro necessariamente aquilo que o corpo deseja e que o corpo suporta. Pedra não é alimento. Sua composição não combina com a minha. A relação é péssima.
Isso quer dizer que há limitações impostas pela própria constituição dos corpos. Neste caso, eu e a pedra. Mas isso se estende a tudo que entra em relação comigo.
Existem fantásticas relações de necessidade, potência e limite em todas as coisas e entre todas elas.
Destes dois despretensiosos exemplos, os leitores mais argutos podem deduzir tudo o mais: sou corpo. Como poderia ser desprezador do corpo sem que fosse, por definição, desprezador da vida – ou o inverso, se preferirem?
Por isso, o fanático religioso e outros ultraconservadores odeiam tudo o que se relaciona com o corpo. Também odeiam, talvez por inveja e ressentimento contra si mesmos, todo e qualquer outro ser humano cuja relação com o corpo não seja conflituosa como a deles. Chegam a atribuir virtude ao conflito, citando coisas como o que Paulo escreveu em I Coríntios 9:27:
“Mas esmurro meu corpo e faço dele meu escravo, para que, depois de ter pregado aos outros, eu mesmo não venha a ser reprovado.”
Só não percebem que já estão enganados na premissa de que precisam “esmurrar o corpo”, eufemismo para desprezar, renegar, privar de prazer.
Esta semana recebi umas mensagens que me fizeram pensar bastante nessa questão. Não há como não enxergar que as crenças em vidas futuras, sejam castigos ou recompensas, passam por esse desprezo ao corpo, e o alimentam. Tanto desprezam o próprio corpo que acabam por desprezar tudo o que o excita, incita ou estimula de algum modo que não passe por um estupidificador processo de sublimação. Desprezam o mundo, a vida, e tudo o que remete à alegria de viver no único mundo a que terão acesso: este aqui!
Há certas passagens que valem a citação. Há uma em que Gilles Deleuze fala sobre Espinosa que merece destaque neste artigo.
Para quem ainda não ouviu falar de Espinosa ou não conhece sua obra, pode-se dizer simplesmente que ele privilegiou – com seu pensamento – a natureza, o corpo, a vida! Aí vai um recorte do que disse Gilles Deleuze sobre Espinosa:
"Quando Espinosa diz: o espantoso é o corpo... não sabemos ainda o que pode um corpo... Com isso ele não quer fazer do corpo um modelo, e da alma uma simples dependência do corpo. O seu empreendimento é mais sutil. Quer abater a pseudo-superioridade da alma sobre o corpo. Há a alma e o corpo, e ambos exprimem uma única e mesma coisa: um atributo do corpo é também uma expressão da alma (a velocidade, por exemplo). Do mesmo modo que vocês não sabem o que pode um corpo, assim há muitas coisas no corpo que não conhecem, que ultrapassam o vosso conhecimento, e analogamente há na alma muitas coisas que ultrapassam a vossa consciência. Eis a questão: o que é que pode um corpo? de que afetos é que são capazes? Experimentem, mas é necessária muita prudência. Vivemos num mundo muito desagradável, onde não somente as pessoas mas também os poderes estabelecidos têm interesse em nos comunicar afetos tristes. A tristeza, e os afetos tristes, são todos aqueles que diminuem a nossa potência de agir. Os poderes estabelecidos precisam de nossas tristezas para fazer de nós escravos. O tirano, o padre, os ladrões de almas, necessitam de nos persuadir de que a vida é dura e pesada. Os poderes precisam menos de nos reprimir do que de nos angustiar, ou, como diz Virgílio, de administrar e organizar os nossos pequenos e íntimos terrores. A longa lamentação universal sobre a vida: a falta-de-ser que é a vida... Podemos dizer "dancemos" que nem por isso ficamos alegres. Podemos dizer "que desgraça é a morte", mas era preciso que tivéssemos vivido para termos algo a perder. Os doentes, tanto da alma como do corpo, não nos darão descanso, são vampiros, enquanto não nos tiverem comunicado a sua neurose e a sua angústia, a sua querida castração, o ressentimento contra a vida, o seu imundo contágio. Tudo é uma questão de sangue. Não é fácil ser um homem livre: fugir da peste, organizar os encontros, aumentar a potência de agir, afetar-se de alegria, multiplicar os afetos que exprimem ou encerram um máximo de afirmação. Fazer do corpo uma potência que não se reduz ao organismo, fazer do pensamento uma potência que não se reduz à consciência. (...) a Alma e o Corpo, a alma não está em cima nem em baixo, está "com", está na estrada, exposta a todos os contatos, encontros, em companhia daqueles que seguem o mesmo caminho, "sentir com eles, captar a vibração da sua alma e da sua carne ao passar", o contrário de uma moral de salão - ensinar a alma a viver sua vida, não a salvá-la"
(Deleuze, Gilles; Parnet Claire: Diálogos, Relógio D'Água Editores, Lisboa, 2004, p. 79-81)
Portanto, digo com alegria: só existe um remédio para a neurose dos fundamentalistas – entrar em contato e sintonia com o próprio corpo. Não temer a alegria. Fundamentalistas riem pouquíssimo (quando riem!).
A alegria é a própria força da vida! Como me alegro em ter deixado as amarras existenciais que me atavam à bigorna dos dogmas e me arrastavam para um poço existencial sem fundo. Que gostoso respirar livremente. Livremente aqui não significa sem contingências, mas na própria relação com elas, ora forçando os limites, ora me conformando a eles, numa relação sustentável e que enriquece a própria vida com experiências que seriam impossíveis sem essa elasticidade, sem essa flexibilidade. Diferentemente do fundamentalista, que se engessa com medo das mudanças, que odeia toda variação, que treme diante de qualquer dúvida, pois quer ter certeza, mesmo que não haja qualquer evidência. Acredita que aquilo que aprendeu – não importa quão errado esteja (ele nem pensa nessa possibilidade) – jamais poderá mudar sem que alguma catástrofe universal se abata sobre ele. Quando vê que outros têm mobilidade, flexibilidade, que agem de acordo com sua própria potência, o fundamentalista jura e repete para si mesmo que algum dia um juízo sobrenatural virá sobre esses rebeldes. Só não percebe que ele mesmo é que está em rebelião contra si mesmo, contra sua própria natureza, contra a constituição de seu corpo e contra as relações que poderiam aumentar sua potência de agir, de existir. Assim, perde sua própria vida, tentando salvá-la, pois não vive de fato. Apenas existe.
Abrir-me às diversas possibilidades do próprio corpo e dos demais corpos ao meu redor pode demandar uma capacidade muito grande de senso crítico e coragem para agir de modo diferente do que tradicionalmente acreditei ser verdadeiro, mas nada se compara à alegria de viver assim.
Para Espinosa, corpo e alma são um só. Não existe essa entidade supostamente imortal, independente, supostamente superior ao que é material, que os supersticiosos chamam de alma. Alma é o corpo pensando, sentindo, desejando, lembrando.
Muitos corpos têm sido sacrificados em nome da manutenção e aperfeiçoamento do meu: animais, vegetais, minerais, etc. Mas chegará o dia em que o meu corpo também será oferecido à manutenção e ao aperfeiçoamento de outros. Talvez meros micróbios. Isso também é relação, mas até que essa relação finalmente se realize – e vai se realizar, porque não viverei para sempre – tenho a oportunidade de experimentar outras e deliciosas relações que aumentam minha potência de agir.
Ora com prudência, ora com ousadia, viverei tudo o que há para viver. Não permitirei que aqueles que vivenciam paixões de morte me contagiem com sua morbidez existencial. O antídoto para isso é a alegria – essa paixão de vida; esse elixir que fortalece meu ser como nenhum outro.
Que corpos se relacionam comigo produzindo alegria? Isso depende das características de cada um. Tenho algumas em comum com os demais, donde é possível falar em corpo humano, mente humana, paixões humanas, mas carrego em mim mesmo minhas próprias especificidades. Viverei de acordo com as minhas e não me espantarei demasiadamente com a percepção de que as dos outros podem ser diametralmente opostas. Qualquer tentativa de uniformizar as variações que caracterizam a Natureza seria perda de tempo e diminuição da potência de agir, da força de existir, ou seja, uma prévia da morte. Viver é justamente ser a si mesmo, mantendo relações saudáveis com tudo o que aumenta minha alegria, ou seja, com corpos que interagem bem com esse corpo que sou eu.
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