Mostrando postagens com marcador two-spirit. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador two-spirit. Mostrar todas as postagens

Sibéria Indígena: Onde o Gênero Sempre Foi Fluido

Sibéria Indígena: Onde o Gênero Sempre Foi Fluido


Xamã siberiano
Entre os povos indígenas da Sibéria, xamãs que transitavam entre masculino e feminino eram vistos como seres “entre dois mundos” — espirituais e de gênero. Hoje, jovens queer e trans siberianos redescobrem essa herança.


Muito antes da colonização russa e da repressão soviética, povos indígenas da Sibéria já viviam realidades em que o gênero não era rígido, mas parte de um espectro espiritual e social. Entre grupos como os iacutes (ou sakha), evenkis, chukchis e koryaks, havia homens e mulheres que assumiam papéis de outro gênero — e eram respeitados por isso, especialmente no contexto xamânico.

Os xamãs, figuras centrais nas comunidades siberianas, muitas vezes desafiavam as fronteiras entre masculino e feminino. O antropólogo russo Waldemar Jochelson, no início do século XX, descreveu casos entre os iacutes e evenkis de “xamãs do sexo masculino que, após iniciação espiritual, vestiam-se como mulheres, assumiam papéis femininos e eram considerados ‘entre dois mundos’ — não apenas o mundo dos espíritos, mas também o de gênero”.


Xamã iacute


Essa ambiguidade era vista como um dom, uma manifestação do poder espiritual de quem transita entre planos, corpos e energias.

Pesquisadores como Marie Antoinette Czaplicka, Vladimir Bogoraz e S. M. Shirokogoroff registraram que, entre povos como os chukchis, a mudança de gênero era frequentemente entendida como um chamado dos espíritos. A pessoa — geralmente um homem — passava a adotar penteados, roupas, ocupações e gestos femininos, abandonando as atividades tradicionalmente masculinas. Esses “xamãs transformados” ou “homens suaves” (soft men, nas traduções inglesas) podiam inclusive se casar com outros homens, exercendo papéis domésticos e sociais femininos sem perder o respeito da comunidade.

O xamanismo siberiano, portanto, não via o gênero como uma prisão, mas como parte da jornada espiritual. O equilíbrio entre forças opostas — dia e noite, vida e morte, masculino e feminino — era essencial para a harmonia do mundo.

Essas expressões de gênero e sexualidade faziam sentido dentro de cosmologias próprias, muito antes de existirem palavras como “transgênero”, “não-binário” ou “Two-Spirit”.

Com a chegada do Império Russo e, depois, do regime soviético, essas tradições foram perseguidas. O xamanismo foi criminalizado, práticas espirituais proibidas e os papéis de gênero passaram a ser rigidamente moldados pela moral cristã e pelo materialismo estatal. Grande parte da diversidade indígena — espiritual e sexual — foi silenciada, transformada em tabu ou simplesmente apagada da história oficial.

Mas o século XXI trouxe novos ventos. Jovens indígenas e pessoas LGBTQ+ da Sibéria estão redescobrindo e reivindicando suas raízes queer, reconstruindo pontes entre ancestralidade e resistência contemporânea.


 Soldado Kowalisidi, ativista trans e intersexo originário da Sibéria


Um dos nomes que simbolizam essa retomada é Soldado Kowalisidi, ativista trans e intersexo originário da Sibéria. Desde 2010, Kowalisidi luta pelos direitos trans e queer na Rússia, enfrentando perseguições, ameaças e violência num dos países mais hostis à diversidade de gênero e orientação sexual.

Seu ativismo dá continuidade, em novas formas, à coragem dos antigos xamãs que cruzavam fronteiras de corpo e espírito para manter o equilíbrio do mundo.

A Sibéria sempre foi diversa — e continua sendo. Entre tundras e taigas, resiste uma memória viva de espiritualidade e liberdade que ecoa nos corpos e vozes de quem insiste em existir fora das margens impostas.


📚 Para quem desejar pesquisar mais:


Jochelson, Waldemar. The Yakut. Memoirs of the American Museum of Natural History, 1933.

Czaplicka, Marie Antoinette. Aboriginal Siberia: A Study in Social Anthropology. Oxford, 1914.

Bogoraz, Vladimir. The Chukchee. Memoirs of the American Museum of Natural History, 1904–1909.

Shirokogoroff, S. M. Psychomental Complex of the Tungus. London, 1935.

“Gender Reversals and Gender Cultures” (1996) – estudos etnográficos sobre gênero entre os povos siberianos.

Entrevista com Soldado Kowalisidi em Speak Act Change: What It Means to Be a Trans Rights Activist in Siberia: https://www.speakactchange.org/2017/09/08/means-trans-rights-activist-siberia-conversation-soldado-kowalisidi/?utm_source=chatgpt.com

Two-Spirit: identidade, resistência e espiritualidade entre povos indígenas norte-americanos

Two-Spirit: identidade, resistência e espiritualidade entre povos indígenas norte-americanos


Por Sergio Viula


Indígena da América do Norte


Muito antes da colonização europeia, povos originários da América do Norte reconheciam e celebravam identidades de gênero e sexualidades diversas. Entre os Zuni, Ojibwe e Navajo, indivíduos conhecidos hoje como Two-Spirit desempenhavam papéis sociais, espirituais e culturais fundamentais, mostrando que a diversidade de gênero sempre foi respeitada e valorizada.


Two-Spirit: A transgeneridade entre os indígenas norte-americanos



We’wha (c. 1849–1896) – Povo Zuni (atual Novo México, EUA)


We’wha (c. 1849–1896) – Povo Zuni 


Uma das pessoas Two-Spirit mais conhecidas da história, We’wha nasceu com sexo masculino, mas viveu como mulher. Foi xamã, tecelã e embaixadora cultural de seu povo, conhecida como uma lhamana — termo zuni para indivíduos que desempenham papéis de gênero mistos. Em 1886, visitou Washington, D.C., como parte de uma delegação Zuni, sendo recebida como “dama indígena”.


Ozaawindib – Povo Ojibwe (região dos Grandes Lagos)



Ozaawindib – Povo Ojibwe

Guerreiro, curandeiro e indivíduo Two-Spirit (muito provavelmente trans ou não binário), Ozaawindib era assumidamente envolvido com homens e reconhecido por sua coragem em batalha. Participou de caçadas e guerras, sendo respeitado por suas habilidades e sabedoria, mostrando que a expressão de gênero e sexualidade não diminuía sua autoridade ou valor social.


Hasteen Klah (c. 1867–1937) – Nação Navajo (Dinéh)


Hasteen Klah (c. 1867–1937)


Artista, tecelão e xamã, Hasteen Klah combinava papéis masculinos e femininos em suas práticas espirituais, danças e tradições rituais. Mesmo sob forte repressão colonial e missionária, foi respeitado como uma figura sagrada, simbolizando a resistência cultural e espiritual de seu povo.


Indígena norte-americano pintado com as cores da bandeira do arco-íris
Manifestação do Orgulho Two-Spirit


Atualmente, as pessoas Two-Spirit e LGBTQIA+ entre os povos indígenas norte-americanos estão em um processo de resgate e resistência cultural. Historicamente, esses indivíduos desempenhavam papéis essenciais como líderes, curandeiros e mediadores em suas comunidades, mas a colonização e a imposição de normas heteronormativas silenciaram muitas dessas tradições. Hoje, jovens indígenas estão se reconectando com suas raízes, afirmando sua identidade Two-Spirit e criando espaços seguros, como powwows inclusivos e círculos de cura, para fortalecer a comunidade. Apesar dos desafios e do estigma que ainda enfrentam, a resiliência e o orgulho Two-Spirit florescem, reafirmando a importância de celebrar a diversidade de gênero e sexualidade nas culturas indígenas norte-americanas.


O amor venceu!


Os exemplos de We’wha, Ozaawindib e Hasteen Klah nos lembram que a diversidade de gênero e sexualidade sempre existiu e teve valor social e espiritual entre os povos indígenas norte-americanos. Celebrar essas histórias é afirmar que ser quem somos é legítimo, ancestral e uma forma de resistência, mostrando que a liberdade de identidade não é uma conquista recente, mas um legado profundo que merece ser reconhecido e honrado.

Postagens mais visitadas