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Lampião é macho, macho por despacho

Lampião é macho, macho por despacho



EUGÊNIO BUCCI (abaixo)
é jornalista e professor da ESPM e da ECA-USP
(Foto: Camila Fontana)


Difícil saber o feminino do cangaceiro Lampião. Será Lampiã? Lampioa? Ou será Lamparina? Existe o feminino de Lampião? Difícil saber, mortalmente difícil. E muito perigoso. Se especularmos por essa vereda escorregadia, alguém poderá se abespinhar e dizer que está em curso uma heresia contra o legado másculo do legendário bandido. Portanto, não lhe duvidamos da masculinidade. Fica decidido que Lampião não tem feminino, é macheza pura.

Mesmo assim, mesmo afirmando a macheza, temos aqui um problema de gênero. Não um problema do homem chamado Lampião, por favor, que este se encontra acima das suspeitas. Nosso problema de gênero diz respeito ao vernáculo: nem todos os substantivos, infelizmente, são do gênero masculino, de sorte que fica inviável defender a macheza do Rei do Cangaço sem o auxílio de palavras femininas. Macheza é substantivo feminino. Virilidade também é palavra fêmea. Hombridade, valentia, todos vocábulos femininos. Vai soar como provocação, mas a língua embaralha o feminino e o masculino, a maldita. Fazer o quê? Talvez ela não esteja à altura de descrever o destemido cangaceiro, encarnado pelo pernambucano Virgulino Ferreira da Silva (1897-1938). Ele, sim, não tinha nada que fosse emasculado; não há de ter tido, nunca, jamais, uma “porção mulher”, para adotar aqui a expressão consagrada pelo cancioneiro.

E que ninguém discuta. Cumpra-se. Foi assim que a Justiça decidiu. Foi assim que despachou o juiz Aldo Albuquerque, da 7ª Vara Cível de Aracaju, Sergipe, há pouco mais de uma semana, ao proibir a publicação e a comercialização do livro Lampião – o Mata Sete, de autoria de Pedro de Morais, em atendimento ao pedido da família do temível Virgulino. A família se declarou ofendida porque, na obra, Virgulino aparece como homossexual. Não é só. Ele teria sido um marido traído, uma vez que sua companheira, Maria Bonita, teria sucumbido ao adultério nos braços de um sujeito do mesmo bando, de nome Luiz Pedro. E mais: com suas perneiras de couro enfeitado, seu paletó azul e sua testeira salpicada de medalhinhas, o próprio Virgulino caiu de amores pelo mesmo Luiz Pedro.

Aí também não dá, raclamaram em juízo os descendentes. Os historiadores podem dizer à vontade que Lampião estuprava garotas indefesas, que lhes marcava o rosto com ferro quente, que sangrava lentamente os desafetos, cravando-lhes o punhal entre a clavícula e o pescoço. Podem dizer que ele castrava seus reféns, que arrancava olhos, línguas e orelhas. Até aí, não se vê ofensa nenhuma. Mas essa conversa de triângulo amoroso com pitadas homoeróticas, essa sim, ultraja a honra familiar. Por isso, os familiares pleitearam a censura, que chegou veloz e escura, feito uma peixeira noturna.

No livro proibido, Virgulino é gay. Nada disso! Ele só pode estuprar as indefesas e castrar os desafetos...

O episódio parece uma crônica dos costumes, mas é sério. Embora o processo ainda admita recursos – a proibição do livro já começou a ser contestada na semana que passou –, o que temos aí não é uma peça meramente cômica, mas um caso de veto à expressão do pensamento. Sem trocadilho, esse veto ao pensamento deveria nos fazer pensar um pouco mais. De que honra, afinal, nós estamos falando aqui? Há tempos, na canção “Pecado original”,Caetano Veloso cravou uma de suas boas verdades: A gente não sabe o lugar certo de colocar o desejo. Pois será que sabemos o lugar certo de colocar a honra?

Eis aí outra indagação difícil, moralmente difícil, além de muito perigosa. Esse conceito, o do macho viril, guarda um quê de animalesco, de irracional, de selvagem. Se macho, se incontestavelmente macho, o Rei do Cangaço teria uma licença para aterrorizar os humildes com suas brutalidades de facínora. Ele teria sido apenas mais macho que os demais, só isso. Daí que, ele que viveu como fora da lei, tem agora, depois da morte, a sua macheza – vai no feminino mesmo– tutelada pela própria Justiça. Ele pode ser chamado de homicida e de ladrão, tudo bem. Não de marido traído. Nem de homossexual.

Essa moral polar, “monopolar”, esquarteja tudo o que seja ambíguo. E, no vasto mundo dos amores, o humano não é acima de tudo um forte, mas acima de tudo ambíguo, como a própria língua. Por isso, essa moral monopolar é desumana. Ela não sabe que, como o Diadorim de Guimarães Rosa, o jagunço valente guarda dentro de si uma mulher. E que outro jagunço valente, como Riobaldo, pode amá-lo sem entender porque ama, e suspirar, perdido: “Diadorim é minha neblina”. O mito sem neblina de Lampião é um tributo à intolerância.

Lamparinas na terra de Lampião... 15 mil fazem Parada Gay na terra do cangaceiro


Cangaceiro sim, e bem gay! Serra Talhada faz história com sua primeira Parada LGBT 🏳️‍🌈🌵💋


Quem diria, hein? Na terra de Lampião, o rei do cangaço, quem mandou foi o glitter, o batom, o trio elétrico e a coragem de ser quem se é.

No sábado, 3 de outubro, a cidade de Serra Talhada, no sertão de Pernambuco, mostrou pro Brasil inteiro que ser nordestino e ser LGBT não só combinam, como marcham juntos — de salto, com plumas e ao som de muito orgulho. Segundo a Polícia Militar, foram 15 mil pessoas nas ruas! E olha que teve gente tentando dizer que "não era o lugar pra isso"… Pois foi, sim. E foi lindo!

A cidade, a 420 km do Recife, ficou dividida nos dias que antecederam o evento. Mas quando o trio da cantora Michele Monteiro saiu pelas ruas às 20h, o que se viu foi uma avalanche de cor, festa e resistência. A concentração começou às 16h na Praça Manoel Pereira Lins, e logo chegaram caravanas de cidades vizinhas e até da capital. Serra Talhada virou um tapete arco-íris no meio do sertão!

Mas o grande destaque da noite — e não tem como negar — foi o grupo Cangagay, com cerca de dez integrantes vestidos de cangaceiros em versão rosa choque. Isso mesmo: chapéu de couro com penas e plumas, batom na cara, leque rosa numa mão, espingarda rosa na outra. Uma releitura queer e poderosa da figura mais temida e mítica do Nordeste.

Foi o cangaço reinventado: agora armado de orgulho, ousadia e um brilho que nem o sol do sertão apaga.

Essa primeira parada de Serra Talhada foi muito mais do que um evento: foi um recado claro de que a luta por direitos e visibilidade chega a todos os cantos — inclusive onde nunca se esperava.

E se alguém ainda duvida que o Nordeste também é território LGBT, basta olhar as fotos dessa noite histórica.

Lampião que me perdoe, mas o cangaço agora também usa salto alto. Aceita que dói menos!

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