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“Fronteiras Borradas”: feminismos essencialistas, política antigênero e os riscos de um novo apagamento

“Fronteiras Borradas”: feminismos essencialistas, política antigênero e os riscos de um novo apagamento



Por Sergio Viula

Com informações da ANTRA e do Sexuality Policy Watch


Está disponível o relatório “Fronteiras Borradas: Movimentos Feministas e de Mulheres e Política Antigênero no Brasil”, uma publicação fundamental para compreender os novos embates dentro do campo feminista e os riscos que as correntes transexcludentes representam para a democracia e para os direitos humanos no país.

O estudo é resultado de uma parceria entre o Observatório de Sexualidade e Política (SPW), o Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ da UFMG (NUH/UFMG) e a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA), com apoio da Ação Educativa, do Cladem Brasil, de Criola, do Ipas Brasil e da campanha Nem Presa Nem Morta.

A pesquisa mapeia o ecossistema dos feminismos essencialistas e transexcludentes no Brasil, analisando quem são, de onde vêm e como atuam essas correntes que se articulam cada vez mais com o campo antigênero, o ultraconservadorismo e a extrema direita.

Cartografia de um fenômeno em expansão

Combinando revisão de literatura, análise de redes sociais e entrevistas com ativistas e pesquisadoras/es, o relatório traça uma cronologia da presença e da atuação das correntes feministas essencialistas no Brasil desde 2013 — momento em que o campo ultraconservador iniciou sua ofensiva de larga escala contra o debate de gênero na educação.

O documento mostra que, a partir de 2015, essas vertentes ganharam espaço ao liderar campanhas contra a Lei de Alienação Parental, explorando o discurso dos “direitos maternos” e estabelecendo pontes com atores políticos da ultradireita. Durante o governo Bolsonaro, algumas figuras e coletivos desse campo ganharam legitimidade institucional, aproximando-se de órgãos públicos e conquistando visibilidade.

Mas foi após a derrota de Bolsonaro em 2022 que essas articulações se intensificaram e ganharam contornos mais sólidos — o que torna urgente a reflexão proposta pelo relatório: como o “borramento” das fronteiras entre feminismos progressistas e discursos de ódio pode afetar as lutas por igualdade de gênero e diversidade sexual.

Um emaranhado que atravessa o espectro político

A análise de redes sociais realizada pelo estudo revela um campo complexo e ambíguo, que vai da esquerda à extrema direita, mostrando como figuras e coletivos operam como “pivôs” entre polos ideológicos distintos. Essa imersão e interação das correntes essencialistas no universo feminista mais amplo produz um borramento perigoso de fronteiras, onde discursos biologicistas e antitrans acabam disfarçados de defesa das mulheres.

O relatório identifica ainda um deslocamento crescente dessas correntes para a direita do espectro político, além de conexões diretas com clusters da extrema direita nacional e internacional. O resultado é um campo híbrido, mas cada vez mais marcado por práticas e discursos transfóbicos, que ecoam as agendas antigênero e ameaçam conquistas históricas do movimento feminista e LGBTQIA+.

Efeitos e impactos: do “confusionismo” à transfobia aberta

As entrevistas com ativistas e pesquisadoras/es apontam para os efeitos deletérios dessa presença ampliada: o crescimento de um “confusionismo” dentro do próprio feminismo e a ativação de camadas profundas de transfobia, inclusive em setores progressistas e nos circuitos acadêmicos.

Os estudos de caso apresentados no relatório ilustram esse impacto com clareza.

O primeiro examina os ataques sistemáticos ao Ministério das Mulheres desde sua recriação em janeiro de 2023 — ataques conduzidos, em grande parte, por grupos feministas essencialistas.

O segundo reconstrói a polêmica em torno da missão da Relatora Especial da ONU para a Violência contra as Mulheres e Meninas, destacando como os vínculos da relatora com setores transexcludentes levaram ao adiamento da visita, e ao debate sobre o lugar das pessoas trans nas agendas internacionais de direitos humanos.

Democracia, gênero e o desafio de reagir

Ao reunir análises de redes sociais, entrevistas e estudos de caso, Fronteiras Borradas constrói uma primeira cartografia abrangente do fenômeno no Brasil. A pesquisa mostra que, embora os discursos contra os direitos trans não sejam novidade, sua escala e influência cresceram de forma alarmante no contexto pós-Bolsonaro.

Esse avanço tem efeitos concretos — tanto na política institucional quanto no cotidiano das pessoas trans e LGBTQIA+.

Por isso, o relatório defende respostas firmes dos feminismos inclusivos e do campo progressista mais amplo, envolvendo o ativismo, a academia, os direitos humanos, a mídia e as instituições públicas.

Mais do que um diagnóstico, Fronteiras Borradas é um alerta: compreender as novas fronteiras — e o borramento entre elas — é essencial para proteger o sentido democrático e plural das lutas por gênero, sexualidade e igualdade.

🔗 Acesse o relatório completo: https://drive.google.com/file/d/1BsurilU0_VId9LPg5dDfMf2lrxL07rb2/view?usp=sharing


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Comentário deste blogueiro


O feminismo que exclui pessoas trans não é feminismo — é biologicismo disfarçado de libertação. Ao negar o direito à existência plena das pessoas trans, essas correntes reproduzem exatamente as opressões que dizem combater.

Como lembra o relatório, não há emancipação possível quando se recorre à exclusão como método.

A igualdade de gênero só é verdadeira quando inclui todas as identidades e corpos.

Leia mais sobre feminismo e mulheres trans aqui: https://www.xn--foradoarmrio-kbb.com/2025/06/a-mulher-solidaria-com-outras-mulheres.html

Você se sente em perigo?


MATRIA: quando a “defesa das mulheres” vira plataforma contra pessoas trans


Nos últimos anos, uma organização com sede no Sul do Brasil vem ganhando espaço nas redes e na política sob o nome de MATRIA – Associação de Mulheres, Mães e Trabalhadoras do Brasil. Em seus próprios termos, a entidade afirma atuar pela proteção dos direitos de mulheres e crianças “com base no sexo biológico”, posicionando-se como “independente e suprapartidária”.

À primeira vista, o discurso parece inofensivo — afinal, quem seria contra defender mulheres e crianças? Mas basta olhar mais de perto para perceber que boa parte das ações e campanhas da Matria tem um alvo específico: as pessoas trans.


Entre o discurso e a prática

Em seu site e nas redes, a Matria declara-se comprometida com a “realidade material do sexo” e com políticas públicas que considerem o “sexo biológico” como critério central. Na prática, isso tem significado oposição a políticas que reconhecem a identidade de gênero, como cotas para pessoas trans em universidades e concursos públicos, uso de banheiros conforme a identidade de gênero e dados oficiais sobre violência contra a população trans.

Em 2024, a entidade chegou a enviar um ofício ao Ministério dos Direitos Humanos contestando as estatísticas que apontam o Brasil como o país que mais mata pessoas trans no mundo. Também entrou com ação civil pública contra a Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC) por manter cotas específicas para pessoas trans.

A Matria também costuma promover pesquisas e campanhas que tentam associar o reconhecimento de direitos trans à “ameaça” aos direitos das mulheres cis. Um exemplo foi a divulgação de uma pesquisa que apontava rejeição popular ao uso de banheiros femininos por mulheres trans — pesquisa amplamente criticada por reforçar estereótipos transfóbicos e basear-se em premissas duvidosas.


O discurso da exclusão disfarçado de proteção

Grupos de direitos humanos, como a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais), classificam a Matria como parte do movimento antitrans, responsável por disseminar desinformação e influenciar políticas públicas excludentes.
De acordo com a ANTRA, a retórica da Matria é semelhante à de movimentos conhecidos como “feminismo radical trans-excludente” (TERF), que defendem um feminismo centrado apenas em mulheres cisgênero e negam a legitimidade das identidades trans.

Em vez de somar forças na luta contra o patriarcado e a violência estrutural, essas correntes acabam dividindo o movimento feminista e alimentando o preconceito que já oprime tantas pessoas.


Por que isso importa

O discurso da Matria reflete uma tendência global: usar a linguagem dos direitos humanos para restringir direitos humanos.
Ao reivindicar o “direito das mulheres” como justificativa para barrar avanços das pessoas trans, essas organizações tentam redefinir o que é feminismo e quem merece proteção.
Mas a verdade é simples: nenhum direito das mulheres cis depende da exclusão das mulheres trans.

A luta por igualdade de gênero só faz sentido se incluir todas as identidades que enfrentam o machismo, a misoginia e o patriarcado. Dividir para conquistar é a estratégia mais antiga do opressor — e nós não podemos cair nessa armadilha.


O que o Fora do Armário reafirma

O Blog Fora do Armário reafirma que mulheres trans são mulheres.
Que homens trans e pessoas não binárias merecem o mesmo respeito e proteção que qualquer cidadão.
E que nenhuma organização pode se apropriar da linguagem dos direitos humanos para justificar a exclusão de quem mais precisa deles.


A defesa da dignidade humana não pode ter asteriscos.

Acesse o DOSSIÊ MATRIA produzido pela ANTRA  em parceria com pesquisadores aqui: 

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Nota Técnica sobre Acesso à Saúde de Crianças Trans - ACESSO À SAÚDE DE CRIANÇAS TRANS - via ANTRA


PDF ORIGINAL AQUI:

Transcrito para essa postagem por Sergio Viula

Nota Técnica sobre Acesso à Saúde de Crianças Trans

ACESSO À SAÚDE DE CRIANÇAS TRANS


NOTA TÉCNICA DO MODELO TRANSPATOLOGIZANTE AO CUIDADO TRANSESPECÍFICO

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS (ANTRA)


Nota Técnica sobre Acesso à Saúde de Crianças Trans

Do modelo transpatologizante ao cuidado transespecífico

Esta nota técnica visa orientar familiares, profissionais de saúde e a comunidade escolar sobre o acompanhamento de crianças trans em circuitos de cuidado.

Como citar este documento:
Associação Nacional de Travestis e Transexuais. (2023). Nota técnica sobre acesso à saúde de crianças trans: do modelo transpatologizante ao cuidado transespecífico. Brasil: ANTRA.


A Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA) elaborou o presente documento com a colaboração de diferentes profissionais, ativistas e integrantes da sociedade civil, unidos pelo interesse comum em revisar os modos de acompanhamento de crianças e jovens trans.

Esses acompanhamentos frequentemente exigem laudos e diagnósticos que produzem barreiras significativas ao acesso a serviços de saúde adequados.

O objetivo central é orientar familiares e profissionais sobre a construção de cuidados com crianças trans. Para tanto, é fundamental que essas práticas estejam fundamentadas nos direitos humanos e se engajem no enfrentamento de possíveis disparidades e violações éticas.

Assim, são apresentados procedimentos de cuidado que não reforçam discursos medicalizantes sobre as vivências trans — práticas que devem, ao contrário, fortalecer suas existências e cidadanias. Trata-se de um cuidado que não busca “descrever” ou “atestar” uma verdade sobre o gênero, mas aposta no caráter produtivo da diversidade na infância.

¹ Chamamos de Nota Técnica por se tratar de um documento elaborado por técnicos especializados, profissionais de saúde, pesquisadores e ativistas, que se debruçam sobre os direitos e a garantia de cuidados para crianças e jovens trans.
O documento apresenta uma análise aprofundada, contendo histórico e fundamento legal, baseados em pesquisas, artigos, teses e outros marcos teóricos. Surge da necessidade de fundamentação formal e da construção de informações específicas sobre a população trans menor de 18 anos, oferecendo alternativas para a tomada de decisões.
² CRPRS, 2016.

ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS


SUMÁRIO
1. INTRODUÇÃO .................................................................................................................. 5
2. CONTEXTUALIZAÇÃO HISTÓRICA ........................................................................6
3. CISHETERONORMATIVIDADE ................................................................................. 8
4. CONSTRUÇÃO DA TRANSEXUALIDADE COMO UM “PROBLEMA
MÉDICO” ................................................................................................................................9
5. DESLOCANDO DIRETRIZES DE ACOMPANHAMENTO ...............................10
6. DIAGNOSTICAR NÃO É O MESMO QUE CUIDAR DA SAÚDE DE CRIANÇAS
TRANS ....................................................................................................................................13
7. ALIANÇAS ENTRE FAMÍLIA E ESCOLA ...............................................................15
8. COPRODUZINDO O CUIDADO COM AS CRIANÇAS TRANS .....................18
9. DESPATOLOGIZAR É DIMINUIR A HOSTILIDADE CIENTÍFICA ...............22
10. CONCLUSÃO ...............................................................................................................23
11. RECOMENDAÇÕES ....................................................................................................25

12. REFERÊNCIAS ............................................................................................................ 30 

1. Introdução

1.1 Compreendemos crianças trans como aquelas que não atendem às expectativas do sexo designado ao nascimento e se reconhecem para além do referencial binário “menino” ou “menina”, baseado na interpretação externa de dados fisiológicos usados para demarcar compulsoriamente um gênero⁴.

1.2 Usamos o termo “trans” como alusão a uma vasta gama de experiências nas quais circulam identidades diversas — dentre elas, travestis, mulheres e homens trans, pessoas não binárias autodeclaradas trans, gênero-diversas, transmasculinas, fluidas, queer, dentre tantas outras. Essas identidades não devem ser reduzidas ao simples trânsito de “um lugar fixo” para “outro lugar fixo”. “Trans” supõe, assim, o deslocamento de uma suposta estabilidade para a vivência de uma identidade em aberto⁵.

1.3 Classificações diagnósticas, apesar de apontadas como promotoras de cuidado, também são utilizadas para patologizar, segregar, tutelar e criminalizar pessoas em razão de suas identidades desviantes⁶. Esses usos não podem ser ignorados ao avaliarmos os modos de acompanhamento para crianças trans, especialmente quando exercidos por profissionais de saúde — um processo iatrogênico que constitui uma violação de direitos humanos contra pessoas trans⁷.

1.4 Tais infâncias não se referem a taxonomias clínicas, formas adoecidas ou impróprias de ser no mundo, mas, antes de tudo, à possibilidade de transitar e viver um crescimento com menos prescrições. Por divergirem do roteiro sexual previamente reduzido ao genital e às expectativas psicossociológicas, tratam-se de expressões infantis que demandam cuidados e acolhimentos éticos capazes de protegê-las de sanções culturais, religiosas e científicas⁸.

1.5 Entendemos o processo de transição como um conjunto de ações que visa contribuir para a criação de um ambiente social, familiar e político confortável e acolhedor para jovens e crianças trans, sobretudo na primeira infância. Isso inclui desde simples adequações de nomes e pronomes, experimentação de vestimentas diversas e compromissos ético-políticos de não imposição de normas de gênero até, sobretudo, a implementação de uma abordagem não patologizante dessas infâncias. Tais ajustes devem considerar o desejo expresso da criança, podendo ser revisitados sempre que ela demonstrar necessidade.

1.6 Esta Nota Técnica tem como base diretrizes de diferentes materiais, como o documento Trans Pathways⁹, as Normas de Atuação da Associação Profissional Mundial para a Saúde Transgênero (WPATH) e tratados internacionais dos quais o Brasil é signatário, como os Princípios de Yogyakarta e o Relatório da CIDH sobre pessoas transgêneras e gênero-diversas e seus direitos sociais, culturais e ambientais¹⁰. Há, ao longo deste documento, um esforço para considerar as especificidades da América Latina e do contexto brasileiro.


2. Contextualização Histórica

2.1 Frequentemente, crianças trans se deparam com obstáculos no acesso à saúde¹¹. Esses desafios decorrem de fatores como: (1) ausência de formação profissional adequada; (2) práticas pautadas por valores morais; (3) falta de compreensão ou busca de informação adequada por parte dos responsáveis; e (4) protocolos clínicos que reforçam relações hierárquicas e patologizantes¹².

2.2 O acesso de crianças trans a serviços de saúde torna-se ainda mais difícil diante do crescimento de Projetos de Lei antitrans apresentados nas casas legislativas brasileiras, com alegações alarmistas sobre uma suposta “epidemia trans na infância”¹³ ¹⁴.

2.3 A inscrição da transexualidade no rol de patologias mentais remonta à década de 1970, promovida por médicos e psicólogos afastados das demandas da comunidade trans¹⁵.

2.4 Além das propostas conservadoras mais explícitas, observa-se uma ofensiva psiquiátrica às infâncias trans por meio da medicalização como paradigma de assistência.

2.5 A Resolução CFM nº 2.265/2019 veda qualquer intervenção hormonal ou cirúrgica em crianças pré-púberes. O bloqueio hormonal é permitido apenas a partir do estágio Tanner II da puberdade, enquanto a hormonização cruzada é recomendada a partir dos 16 anos. Procedimentos cirúrgicos só são autorizados após os 18 anos¹⁶.

2.6 A Resolução CFP nº 01/2018 estabelece que profissionais da psicologia não devem utilizar instrumentos ou técnicas que reforcem preconceitos contra pessoas trans e travestis, devendo refletir sobre a naturalização da cisgeneridade em suas práticas¹⁷.

2.7 Importante destacar que esta Nota não defende o acesso de crianças trans a procedimentos hormonais ou cirúrgicos. Seu foco está no acolhimento ético e na promoção de cidadania.


3. Cisheteronormatividade

Cisheteronormatividade refere-se à interseção entre heteronormatividade — que privilegia relações heterossexuais — e cisnormatividade — que considera normais apenas as identidades de gênero que coincidem com o sexo designado ao nascimento. Esses sistemas regulatórios moldam as atividades sociais, as políticas públicas e a organização do cuidado em saúde¹⁸-²².

Crianças que não se encaixam nos padrões pré-formatados de “garoto” ou “garota” são frequentemente vistas como “em risco” e tratadas como problemas a serem corrigidos. A imposição de percursos cisheterossexuais como os únicos aceitáveis configura uma das formas mais comuns de violência normativa.


4. Construção da Transexualidade como “Problema Médico”

A seguir, apresenta-se uma linha do tempo sobre a patologização da transexualidade nos principais manuais de classificação médica:

DSM – Associação Norte-Americana de Psiquiatria:

  • DSM-III (1980) – Desordem de identidade de gênero na infância (N: 302.60)

  • DSM-III-R (1987) – Mesma classificação

  • DSM-IV (1994) – Desordem de identidade de gênero (N: 302.xx)

  • DSM-IV-TR (2000) – Mesma classificação

  • DSM-V (2013) – Disforia de gênero na infância (N: 302.6)

CID – Organização Mundial da Saúde:

  • CID-9 (1976) – Transtorno da identidade psicossexual

  • CID-10 (1990) – Transtorno de identidade de gênero na infância (F64.2)

  • CID-11 (2019) – Incongruência de gênero na infância (HA61)

CFM – Conselho Federal de Medicina:

  • Resolução nº 1.482 (1997) – Cirurgias de redesignação

  • Resoluções subsequentes (2002, 2010, 2013, 2019) – Regulação do processo transexualizador no SUS

CFP – Conselho Federal de Psicologia:

  • CRPRS / APA (2015) – Diretrizes para práticas psicológicas

  • Resolução nº 01/2018 – Normas de atuação para psicólogas/os com pessoas trans

  • 2020 em diante – Reforço de práticas não medicalizantes e reflexões sobre infância trans

5. Deslocando Diretrizes de Acompanhamento

A histórica inscrição das identidades trans na nosologia produz uma suposta necessidade de correspondência entre o sujeito e um quadro de sintomas. Entendemos que a despatologização é um giro no campo da saúde. Ao não buscar mais uma proporção entre "ser trans" e "ser avaliado", as práticas de cuidado devem considerar a demanda para determinar como será feito o processo de acolhimento, e não o contrário. Não existe "a" criança trans, universal e mensurável; o que existem são crianças, no plural, que não correspondem a um script atribuído a elas.

Deve-se ter como prioritário o desmonte de discursos e práticas que estimulam uma atmosfera de assédio em relação às crianças trans, que consideram que a saúde precisaria tutelar desproporcionalmente para "evitar prováveis arrependimentos" e "futuras confusões na vida adulta". Tal pânico incrementa a noção de que devam existir "garantias" em uma transição. Crianças trans, por outro lado, precisam ser enxergadas em suas complexidades, contradições e heterogeneidades.

5.1. A despatologização das identidades trans e travestis se refere a um movimento global pela retirada da transexualidade do rol de doenças mentais e, portanto, da ruptura do monopólio médico sobre o cuidado à saúde. Entendemos que não há exame clínico capaz de atestar a ocorrência de um "desvio de gênero", pois masculinidades e feminilidades são produções históricas e psicossociológicas. Despatologizar é uma bandeira ainda atual, que representa o papel histórico de aglutinação de forças em busca da desnaturalização do gênero.

5.2. Busca-se também enfrentar o que tem sido nomeado como "diagnóstico de gênero", ideia baseada na presunção de sofrimento intenso, em que "desconforto persistente", "sentimento de inadequação" e "prejuízo social" são apresentados como manifestações máximas da transexualidade. Nessa perspectiva, ser trans é ser considerado doente, errado ou disfuncional. No entanto, tal diagnóstico só seria possível se houvesse ampla concordância sobre as fronteiras entre masculino e feminino.

5.3. Diagnósticos de gênero inscrevem crianças não normativas em regimes de investigação, prescrição e enquadramento médico-psicológico. Visualizam a criança por uma lente cumulativa — menino, adolescente, adulto, idoso — como se tornar-se adulto significasse apagar singularidades. Diagnosticar gênero é confundir identidade com patologia, desvalorizando a autodeterminação infantil e submetendo-a a critérios técnicos.

5.4. Juridicamente, qualquer nomeação sobre a condição trans deve respeitar a autodeterminação de gênero, tornando desnecessárias burocracias clínicas, diagnósticas ou tutelas de terceiros. Esse é um desafio que mobiliza grupos e entidades de direitos humanos globalmente.

5.5. Toda promoção de saúde a populações vulneráveis deve considerar a repercussão social de suas classificações. A construção do pensamento científico deve ser democrática e protagonizada pela comunidade trans. Pessoas trans não devem ter seu reconhecimento legal condicionado a avaliações medicalizantes, que perpetuam práticas abusivas sob o pretexto de neutralidade.

5.6. A interpelação institucional das identidades de gênero e sexualidade expõe a transição como processo desviante, nutrindo silenciamentos e feedbacks sociais pejorativos baseados em imaginários patológicos.

5.7. Despatologizar não é buscar passabilidade — isto é, parecer cisgênero — como forma de bem-estar. Instituições que adotam a passabilidade como política correm o risco de reforçar o modo cis como ideal. Crianças trans devem ser reconhecidas em sua autenticidade, sem comparações com crianças cis.

5.8. Diretrizes de acompanhamento devem evitar tutelas. Crianças trans precisam de informação, apoio e espaços seguros para exercer sua criatividade. A ideia de que meninas trans são "meninos transtornados", ou que crianças estão "indecisas" e devem "definir-se logo", precisa ser descartada.

5.9. Não há evidências suficientes de que duvidar ou acelerar o processo de experimentação de gênero gere efeitos positivos. A imposição de espaços terapêuticos como obrigação parte da criação de um problema para oferecer uma suposta solução. Muitas vezes, o "diagnóstico de gênero" impede que experiências legítimas ocorram livremente.

5.10. Não se justifica a criação de novas diretrizes médicas para tratar o que não deve ser considerado patologia. Respeitar nome social e pronomes já promove melhora significativa na saúde mental de crianças trans. A presença de acolhimento familiar e social está diretamente relacionada a maior autoestima, confiança e qualidade de vida.

6. Diagnosticar Não É o Mesmo que Cuidar da Saúde de Crianças Trans

Questões como “o que faz com que uma criança seja trans?” ou “quais são as boas práticas em consultório?” são legítimas, mas não justificam diagnósticos. Segundo Sam Winter (2017), o diagnóstico como justificativa para ajudar não se sustenta quando se analisa experiências trans dissidentes.

6.1. Crianças enfrentam dificuldades como o divórcio dos pais ou pressões escolares, mas isso não legitima diagnósticos como “síndrome da aspiração educacional” ou “transtorno matrimonial”. Analogamente, uma criança negra desejar ser branca não configura um “transtorno racial”.

6.2. A crença de que crianças trans seriam psiquicamente danificadas institui uma ideia de prejuízo. No entanto, práticas de cuidado desvinculadas de patologização demonstram que esse prejuízo não se sustenta.

6.3. Setores da saúde guiados por uma lógica psicopatológica muitas vezes reforçam os problemas que desejam solucionar. A patologização está ligada ao regime de medicalização para além da cisnormatividade.

6.4. O argumento de que o diagnóstico é necessário para acesso ao SUS é frequente. No entanto, isso perpetua o afastamento do enfrentamento das causas estruturais da transfobia. O foco deve estar em enfrentar as causas do sofrimento e não apenas gerenciar os danos.

6.5. A questão não é “fazer ou não fazer”, mas “como fazer”. A escuta, a articulação com outras políticas públicas e o enfrentamento da transfobia podem ser realizados sem diagnóstico.

6.6. O “diagnóstico de gênero” distancia jovens e crianças trans do acesso à saúde universal. Há poucos espaços de acolhimento, e estes frequentemente funcionam em caráter de pesquisa.

6.7. Pessoas trans frequentemente relatam que suas demandas gerais de saúde não são atendidas. A estigmatização como doentes contribui para esse afastamento.

6.8. Identidades trans e travestis não pertencem ao domínio exclusivo da saúde, mas sim ao campo dos direitos humanos. Os transfeminismos propõem alternativas de cuidado além das propostas psicopatológicas.

6.9. Profissionais de saúde devem escutar os movimentos sociais e abandonar a ideia de um “núcleo de gênero” localizado na subjetividade dos indivíduos. Ciência e gênero não são neutros ou apolíticos.

6.10. A mudança da CID-10 para a CID-11 deslocou a transgeneridade para o capítulo de condições relacionadas à saúde sexual, mas isso não resolve todos os desafios. Ainda faltam dados sobre a realidade social de crianças trans, suas experiências e formas de interpelar as instituições.

7. Alianças Entre Família e Escola

O diagnóstico pode funcionar como salvo-conduto para familiares, protegendo-os de acusações de permissividade ou má influência. No entanto, isso representa ganhos secundários e arriscados, que não devem substituir garantias jurídicas e culturais para essas famílias.

7.1. Diagnosticar crianças trans não deve ser estratégia para amenizar os efeitos da violência. Áreas da saúde devem evitar práticas cisnormativas que expõem essas crianças a discriminações.

7.2. Pais, mães e cuidadores devem ser reconhecidos sem depender de enquadramentos biomédicos. A proteção legal e institucional deve ser garantida independentemente disso.

7.3. Escolas devem combater o bullying e a exclusão de crianças trans em esportes, banheiros ou uso de uniformes. Crianças trans não são ameaça às demais; todas precisam de proteção.

7.4. Mudanças em nomes ou pronomes não são decisões imutáveis. Pequenos ajustes devem ser respeitados para garantir o bem-estar e a liberdade de experimentação.

7.5. Muitos adultos cis não reconhecem crianças trans como sujeitos. Isso as coloca sob avaliação de profissionais despreparados ou guiados por paradigmas patologizantes.

7.6. As infâncias devem ser pensadas em suas particularidades emocionais, redes afetivas e ambivalências. O gênero da criança não deve ser o centro de sua vida.

7.7. A despatologização convida à reflexão crítica sobre os efeitos das práticas científicas na saúde infantil. É preciso ouvir mais e interpretar menos.

7.8. A ideia de uma educação “compatível com a infância” ainda carrega ideais conservadores. O medo do fim do binarismo sustenta essas visões.

7.9. Famílias devem garantir o direito à integridade corporal e mental de crianças, bem como o exercício da autoatribuição identitária, sem envolver modificações corporais.

8. Coproduzindo o Cuidado com as Crianças Trans

A patologização do gênero está ligada a crenças cisnormativas que tornam impensável a existência de crianças fora do binarismo. Despatologizar é também adotar uma postura crítica diante das tecnologias corporais e rejeitar a ideia de um “terceiro gênero”.

8.1. O modelo transpatologizante exige desconforto, certeza e estabilidade como critérios de transição. Ele busca sintomas e validações externas para uma identidade.

8.2. Crianças trans são frequentemente mal atendidas por profissionais que não as entendem ou acolhem. Em vez disso, há pânico, terapias reparativas e exigências de certeza precoce.

8.3. O cuidado transespecífico propõe uma abordagem mais sensível e aberta, que reconhece a diversidade das experiências infantis. Em vez de perguntar "trans, por quê?", devemos perguntar "trans, de que forma?".

Tabela Comparativa: Modelo Transpatologizante vs. Cuidado Transespecífico

Modelo Transpatologizante

Cuidado Transespecífico

Centralidade do psiquiatra.

Profissionais como suporte, não autoridade.

Tutela parental reforçada.

Protagonismo da criança respeitado.

Ênfase no binarismo.

Gênero como campo aberto e plural.

Criança como sintoma.

Criança como sujeito legítimo.

Avaliação multidisciplinar rígida.

Cuidado compartilhado com escola, família e comunidade.

Prevenção de "arrependimentos".

Confiança nas escolhas provisórias da criança.

Busca por adaptação social.

Fortalecimento de identidades singulares.


8. Coproduzindo o Cuidado com as Crianças Trans

Por cuidado transespecífico, defendemos que a saúde, seja ela médica, psicológica ou assumida de outra forma, produza estratégias criativas para repelir leis antitrans, a transfobia institucional e o estigma associado a crianças trans. A transição, desde essa perspectiva, refere-se a um outro modo de aculturamento, não a um adoecimento psíquico. Consequentemente, a moral compartilhada que regula nossa noção de corpo passa a ser o problema central, não as demandas individuais. A lição tomada, a partir da revisão crítica de diversos textos e pesquisas sobre infâncias trans, leva-nos a pautar que nossas ações estejam menos voltadas para a dimensão dos consultórios, com a predominância de ações individualizantes entre profissional e pessoa atendida, e mais para a vida pública.

Sair do modelo transpatologizante para o cuidado transespecífico significa entender que crianças trans são cidadãs merecedoras de autonomia e conhecimento, a dizer, que não devem ser privadas de informações que lhes ajudem a se sentir protegidas de outras crianças e adultos.

É importante advogar pelo status de cidadania para crianças trans, porque práticas socioculturais e políticas regulatórias que operam em torno de suas infâncias produzem impacto na maneira como elas veem a si mesmas e em como suas escolhas futuras serão percebidas.

Embora existam diferenças entre adultos e crianças, reconhece-se que crianças intervêm no meio social, repercutem afetos e desassossegam os rumos do desenvolvimento normativo. Crianças são entidades políticas, sobretudo porque suas ações produzem efeitos no mundo. Tudo isso gera implicações éticas subjetivas para a constituição da juventude, e certamente projeta o que virá a ser entendido como “bom adulto”.

A demonstração de infâncias trans como desvio ou “demanda médica” se revela arbitrária e discriminatória, sobretudo por carecer de utilidade clínica. Questionamos a correlação direta que se estabelece entre “ser uma criança que desafia predicados sociais” e a subsequente exposição a mecanismos médicos, jurídicos e pedagógicos de subjetivação.

As ciências da saúde podem se engajar em práticas não (cis)normativas, nas quais familiares e profissionais de saúde são desencorajados a esperar que crianças sejam “masculinas” ou “femininas”, pois as infâncias são múltiplas e não precisam ser reduzidas a duas únicas posições.

Estimulamos que adultos envolvidos com esse fenômeno entendam crianças trans em sua integralidade, no que se refere a suas histórias de vida, indagações, receios e agenciamentos, a dizer, entendam-nas para além de suas identidades.

Torna-se imperativo não guiar encontros e consultas com crianças trans por noções como “macho-para-fêmea”, “criança uterina”, “sexo masculino” e demais expressões de cunho biologizante, consideradas como “discriminações retroativas”. Tais noções se referem a formas de situar a diversidade na qualidade de antinatureza, e recomenda-se serem evitadas, por invocar modelos psicopatológicos e descrever identidades trans e travestis como ameaças. Recomendamos o uso da expressão “sexo designado”, quando absolutamente necessária.

É preciso combater sentidos proibitivos que se colem a infâncias não (cis)normativas, mas igualmente produzir sentidos positivos que tragam algum grau de otimismo frente à realidade frágil que pleiteiam. Para que suas existências sejam mais do que toleradas e possam ser expansivas e visíveis, caso o desejem. Crianças trans precisam ter seus gêneros entendidos como legítimos, dignos e valiosos, e qualquer protocolo de saúde interessado em recebê-las deve enxergá-las como sujeitos políticos. De outra forma, estaremos assumindo que haveria um desejo oculto de que crianças não fossem trans — e não seria esse um limite importante para a dimensão do cuidado?

A recepção negativa, por parte de equipes de saúde, a pacientes que apresentam identidades de gênero diversas, deve ser entendida como própria de um escopo mais amplo de hostilidade científica — cuja saída só pode ser pensada com e não apesar de crianças trans.

9. Despatologizar é Diminuir a Hostilidade Científica

Frente a polêmicas e falsas denúncias de que crianças estariam sendo operadas “à força” ou “cedo demais”, vemos uma oportunidade estratégica para reafirmar alianças com ativismos intersexo, que há anos denunciam, como informam diferentes estudos, a forma como crianças têm seus corpos violados por decisões super impostas a elas.

A mutilação de crianças é um tema que exige graus mais elevados de cuidado e ponderação, por isso vemos como contraproducentes as antecipações catastróficas dirigidas a experiências que não são acolhidas pela perspectiva hegemônica da diferença sexual.

Se crianças trans não acessam serviços cirúrgicos, diagnosticar, então, a serviço do quê? Crianças trans não precisam continuar convivendo com a fantasia de que são “incongruentes” apenas para trazer conformação a familiares ou para que limites da pretensa normalidade infantil sejam preservados. A população trans, especialmente crianças e jovens, precisa ser alvo de políticas públicas (também na educação, na cultura; não apenas na saúde) e de outras iniciativas voltadas a validar suas experiências, entendidas como legítimas a partir do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) — lei que não faz qualquer distinção entre crianças cis e trans.

Tudo o que vier a trazer prejuízos à saúde de tais infâncias pode ser assistido sem que haja a inevitabilidade de um diagnóstico ligado ao seu gênero. Escuta-se e trata-se o sujeito, não a classificação que este porta. A ênfase dessa premissa é justamente ter o sujeito como foco, suas perspectivas, saberes e experiências, enfim, tudo que produz vida sem aprisionamentos.

O que orientamos que seja feito, caso seja necessário produzir algum documento clínico, é que se aborde a história de vida da criança (como é sua interação com os fenômenos do mundo, os não-humanos, a comunidade, a natureza, as instituições, escola, família, a linguagem, os afetos e a relação consigo mesma), desde uma perspectiva ligada aos direitos humanos.

De todo modo, entendemos que não existe uma “clínica boa” ou uma “clínica ruim”, mas que o viés clínico sempre exige um conjunto de pressuposições que acabam por classificar, enquadrar e fixar. Frente às exaustivas teorizações, que não foram capazes de criar um novo status social para crianças trans, consideramos importante evitar qualquer etiologia da transexualidade. A saída pelos direitos humanos nos soa mais estratégica justamente porque a relação do cuidado não fica restrita à prática clínica, e sim permanece aberta em práticas que são diversas em suas variadas dimensões.

10. Conclusão

Dentro de um contexto onde o espantalho de uma suposta “ideologia de gênero” se apresenta como ameaça à regra cisheteronormativa, observamos com preocupação as insistentes tentativas, alegadamente não ideológicas, em cisgenerificar crianças compulsoriamente, impondo que todo e qualquer esforço de assegurar as infâncias trans seja criminalizado, proibido, negado e afastado, respaldando a progressiva institucionalização da transfobia.

Por meio das recomendações que compõem esta Nota Técnica, defendemos um fazer crítico, onde boas práticas em saúde não se referem a melhores métodos de investigação sobre uma verdade quanto ao gênero, mas à coprodução de novos sentidos sobre o corpo. O que crianças trans podem esperar de uma saúde implicada e engajada com a diferença, afinal, é que esta produza ações coletivas e caminhos mais salubres para o laço social.

Vemos como crucial uma atualização no que se entende como serviços de saúde, para que estejam compatíveis com necessidades populares, e não reverberem discursos psicopatológicos, que moralizam infâncias em suas matrizes epistêmicas e práticas profissionais. Crianças trans não precisam acompanhar as ruminações adultas sobre veracidade ou artificialidade de seu gênero, pois são merecedoras de uma infância onde isso não seja uma “questão”.

Despatologizar é apostar menos na tutela ou na compaixão, e mais no poder político e transformativo da saúde. A transfobia deve ser enfrentada na sua dimensão civil, política, econômica e cultural. Por isso, devem ser levadas em consideração as implicações humanitárias do ato de promover avaliações clínicas generalistas frente à diversidade sexual e de gênero.

Sempre que for necessário falar sobre transexualidades, travestilidades e transgeneridades, profissionais e familiares precisam ter em mente que essas experiências facilmente são ligadas a pressupostos de “agonia”, “padecimento” e “inadequação”. Reconhecer isso nos convida a um exercício analítico em relação à maneira com que nos relacionamos com a diversidade, para evitar dar como “garantido” e “superado” o estigma de enfermidade acompanhado pelo diagnóstico. Ou ainda, para evitar fomentar o imaginário de que a diversidade é um “gênero raro” — ela é um posicionamento crítico, não um adensamento do/no problema.

Crianças têm direito a exercer gêneros e sexualidades distintos daqueles que são socialmente esperados. Devem ter acesso a um ambiente familiar onde seja possível a transição social. Devem ser convidadas a participar do processo de escolha de suas roupas, bem como sobre o modo como gostariam de ser chamadas. Resumidamente, devem ter direito à participação nas decisões que afetam suas vidas: o reconhecimento da condição de sujeito é uma bandeira central no pensamento transfeminista.

A relação entre cuidado e crianças trans é recente, e precisa ser fortalecida, sobretudo, à luz da luta histórica pelo fim da patologização.

11. Recomendações

I. Mapear e produzir dados sobre as infâncias trans e travestis no Brasil. Com destinação de recursos específicos para que sejam realizados levantamentos que versem sobre raça, etnia, classe, sexualidade, regionalidade e outros marcadores sociais, em busca de incentivar a formulação de políticas e demais iniciativas, tanto estatais quanto privadas, que estejam orientadas à promoção de uma cidadania integral, e não apenas nosológica.

II. Criar, destinar e/ou aumentar o financiamento de serviços públicos para crianças trans. Espera-se que tais serviços não tenham caráter somente experimental, voltado à pesquisa, e que seja ampliada a rede de oferta em todos os estados, sendo contratados profissionais trans, revendo não apenas o quadro de funcionários, mas também os valores e as direções do serviço, com formação crítica e permanente. Não se deseja somente o acesso ou a contratação, deseja-se também participar de maneira democrática da construção do pensamento científico e do controle social.

III. Aprender e se interessar ativamente por outros letramentos coproduzidos com crianças trans.


Fortaleça as visões de mundo das crianças trans e permita que o modo como entendem o corpo também gere mudanças no mundo adulto, sobretudo nos paradigmas ligados à maturação humana. Crianças não são mais saudáveis só porque são “meninos cis” ou “meninas cis”, de acordo com essa estrita leitura sobre a fisiologia.
Cunha, 2021.
Kara, 2017.
Suess, 2020b.

IV. Desconfiar e colocar em suspenso algumas coisas que se lê.


A integridade mental, corporal e a experimentação de gênero são direitos humanos. Ao invés de perguntar “o que faz com que a criança seja trans?”, considere compreender formas de ser trans. Apostar em experiências onde a transição também possa ser vivida sem grandes elucubrações. É uma criança, divirtam-se. Esse é um momento oportuno para resgatar o brincar e o lúdico em direção à impermanência.

V. Produzir e encontrar algum sentido diante dessa nova realidade.


Qual é o limite do cuidado quando se cuida reprovando, impondo ou gerando sofrimento? Não haveria tanto rechaço à transição se não tivéssemos inúmeros discursos que dão suporte a essa rejeição. Sem algum nível de satisfação em conviver com uma criança trans, pode ser que a transição seja vivida como um fracasso e que partes do núcleo familiar, profissional e pedagógico introjetem imagens e gramáticas antitrans como sinônimo do que se entende por infância. Não é indicado que crianças trans sintam como se elas fossem um estorvo.

VI. Escutar mais e intervir menos.


A criança não está doente porque sua identidade de gênero não corresponde ao sexo que lhe foi atribuído no nascimento. Isso será vivido como um problema apenas caso assim seja decidido, por isso se mantenha disponível e solidário. Jovens que transicionam com apoio dos pais têm uma rede melhor, e sentem mais segurança do que jovens que transicionam por conta própria. Desabafe com amigos, faça supervisão, terapia ou busque apoio com outros responsáveis. Existem atualmente algumas entidades de pais e responsáveis, como Mães pela Diversidade e Mães da Resistência, Mães do Arco-Íris, Mães da Liberdade, ONG Minha Criança Trans que, em diálogo com movimentos trans, podem se revelar muito mais úteis do que um carimbo de profissionais de saúde.

VII. Responder dúvidas e informar às crianças dos desdobramentos de suas escolhas.


A métrica “cedo demais para saber disso” pode existir em algum momento, mas não precisa ser uma constante. É melhor que as crianças enxerguem pais, mães, responsáveis, professores e profissionais de saúde como aliados, do que como antagonistas ou opressores de sua identidade. Atue a favor da criação de um espaço emocional defensor da capacidade de errar, se contradizer e ter dúvidas, e até de, quem sabe, re-elaborar-se como pessoa. Não espere coerência o tempo todo. Tudo é novo para você e para a criança também: o gênero é cheio de contradições.

VIII. Conversar com as escolas para que adotem posturas anti-discriminação e anti-bullying.


Diversidade é um tema que atravessa todo e qualquer debate, espere que possibilitem ampliar as escolhas e as opções de banheiro, de uniforme e instalações para dormir ou outras segregadas por gênero. Acompanhando tais alternativas, o nome e os pronomes devem respeitar o desejo expresso da criança. Não estimule que estudantes trans permaneçam em escolas que não tomem questões de gênero e sexualidade como temas que precisam ser debatidos. É preciso que as Secretarias Municipais e Estaduais de Educação, bem como o Ministério da Educação, se posicionem firmemente pelo direito dos estudantes trans ao uso do nome social e ao banheiro de acordo com o gênero com o qual se identificam nos ambientes escolares.

IX. Estudar e ler outras pessoas trans, para evitar um excesso de especulação.


Assim como os currículos escolares, as grades dos cursos superiores precisam inserir discussões sobre corpos e subjetividades trans, para que profissionais de saúde não permaneçam tão alheios a um grupo que tem elaborado exaustivas denúncias sobre arbitrariedades clínicas ao longo do tempo.

X. Ajudar as crianças a estarem com outras crianças como elas.


Esse é o aspecto central. A melhor forma de estar presente para as crianças é permitindo que elas convivam e (des)construam suas experiências entre pares. Não há linearidade, há o agora. Procure curtir a ausência de certeza. O fracasso de algumas projeções pode ser doloroso, mas também potente e transformador. Quando o filho se torna filha, a mãe de um filho passa a ser a mãe de uma filha. Toda transição é coletiva. É preciso desinibir os ouvidos para se relacionar com crianças sem tanta hostilidade.

XI. Participar da vida pública.


Crianças trans e seus familiares têm direito à sociabilidade. Orientamos que instituições busquem formas de acolher e respeitar a diversidade sexual e de gênero, incluindo medidas para diminuir discursos de ódio, assédio e violência, estendendo-se a pais, familiares e outras parentalidades que acolhem crianças.

XII. Navegar em direção a uma despatologização crítica, não apenas institucional.


É se comprometer a buscar algo de saudável nas experiências de dissidência. Circule, movimente-se, conviva com pessoas menos cis e menos heterossexuais. Apoie a cena Trans do seu município. Procure saber onde se encontram. A revisão da economia do cuidado também passa pelo fortalecimento de profissionais trans e travestis. Saúde vai além do uma-a-um. Despatologizar é importante, ainda.


Participaram da construção desta Nota:

  • Amana Mattos, Professora Associada do Instituto de Psicologia da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Coordenadora do DEGENERA - Núcleo de Pesquisa e Desconstrução de Gêneros.

  • Bruna Benevides, Secretária de articulação política da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA). Coordenadora do Pré-vestibular Social PreparaNem (Niterói).

  • Camillo de Sousa Miranda Carvalho Lima, Médico pela Universidade Federal do Maranhão (UFMA). Psiquiatra do Núcleo de Cuidados a Pessoas Trans e Travestis do município de Taboão da Serra-SP.

  • Emilly Mel Fernandes De Souza, Coordenadora do Fundo Positivo, integrante da Comissão de Direitos Humanos (CFP).

  • Marco Aurélio Máximo Prado, Coordenador do Núcleo de Direitos Humanos e Cidadania LGBT+ (NUH).

  • Keila Simpson, Doutora Honoris Causa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ), Presidenta da Associação Nacional de Travestis e Transexuais (ANTRA).

  • Sofia Favero, Integrante da Associação e Movimento Sergipano de Transexuais e Travestis (AMOSERTRANS).

  • Tatiane Miranda, Pediatra, Mestra em Ciências da Saúde pela Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG).

  • Viviane Vergueiro, Integrante dos coletivos de Transs pra Frente, LABTRANS (UFRB) e ODARA (IFRJ).

Arte visual, revisão e Design:

  • Marina Luísa Almeida, Ilustração para a Capa.

  • Viviana de Paula Corrêa, Responsável pela revisão ortográfica.

  • Raykka Rica, Design Gráfico e Diagramação.


ASSOCIAÇÃO NACIONAL DE TRAVESTIS E TRANSEXUAIS


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  • Conselho Federal de Psicologia. (2015). Recomendações de práticas não medicalizantes para profissionais e serviços de educação e saúde. Grupo de Trabalho Educação e Saúde do Fórum sobre Medicalização da Educação e Saúde. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2015/06/CFP_CartilhaMedicalizacao_web-16.06.15.pdf

  • Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução nº 01 de 2018 - Estabelece normas de atuação para as psicólogas e os psicólogos em relação às pessoas transexuais e travestis. https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/01/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-01-2018.pdf 

Relatório da ANTRA: Brasil continua sendo o país que mais mata pessoas travestis e transexuais

Por Sergio Viula


Conheça o site da ANTRA
https://antrabrasil.org/



O Dia da Visibilidade Trans, que é comemorado todo dia 29 de janeiro, deveria ser um dia para falarmos sobre as conquistas já efetivadas e os desafios que ainda se colocam diante da comunidade transgênera brasileira.

Infelizmente, não é o caso. O que mais tem se destacado nessa data nos últimos anos é a violência letal sofrida por pessoas travestis e transexuais no Brasil.

Não que as pessoas transgêneras não estejam conquistando (a duras penas) espaços negados às mesmas há pouquíssimo tempo. Todos já vimos pessoas travestis e transexuais estudando, pesquisando e lecionando nas universidades, atuando na mídia, fazendo sucesso em canais do YouTube, trabalhando em repartições públicas, etc. O número ainda é pequeno, mas é fato que elas e eles estão aí. Digo elas e eles, porque me refiro às mulheres travestis e transexuais e aos homens trans, logicamente.

O Dia 29 de janeiro, portanto, foi pensando para dar visibilidade às pessoas transgêneras, mas acabou se tornando também um dia de lamento e profunda comoção, pelo menos para os serers humanos que conseguem exercer a virtuosa capacidade da empatia.

E por quê?

Porque nesse dia, a ANTRA (Associação Nacional de Travestis e Transexuais) publica os resultados finais de sua pesquisa sobre violência transfóbica letal no Brasil. E somente pessoas extremamente apodrecidas por dentro seriam capazes de ignorar esse assunto propositadamente ou demerecê-lo cinicamente.


O Relatório da ANTRA

Divulgado nesta quarta-feira 29, o relatório revela que o Brasil continua sendo o país que mais mata travestis e transexuais no mundo, seguido pelo México (65 mortes) e pelos Estados Unidos (31 mortes).

Observem que o Brasil matou 90% mais que o segundo colocado nesse macabro ranking de 2019.

Outra coisa que chama atenção é que o Brasil caiu de uma posição que já era horrível para uma que é treze pontos percentuais pior no tocante à segurança das pessoas LGBT. Isto quer dizer que no ranking de países seguros para a população LGBT, o país despencou do 55º lugar em 2018 para o 68º em 2019.

Ainda segundo o relatório, São Paulo foi o estado que mais matou travestis e transexuais em 2019. Foram 21 assassinatos - o que representa um aumento de 50% dos casos em relação a 2018, quando o número de mortes era de 14 indivíduos travestis ou transexuais.

Empatados em segundo lugar nesse terrível ranking de violência letal contra pessoas transgêneras, estão o Ceará e a Bahia (com 40 casos cada) e em terceiro lugar vem o Rio de Janeiro, que teve 37 pessoas travestis e transexuais assassinadas no mesmo período.

Cerca de 24% menor que o número encontrado pelo relatório do ano de 2018 (163 mortes), o relatório do ano passado, que foi divulgado hoje, contabiliza 124 assassinatos de pessoas trans, sendo 121 travestis e mulheres transexuais e três homens trans.




De acordo com o gráfico acima, produzido por Bruna Benevides, nota-se uma queda no número de assassinatos desde 2017, ano em que esse número atingiu seu ápice.

A média, porém, entre 2008 e 2019 foi de 118 crimes por ano - o que é simplesmente inadimissível e precisa ser combatido por meio de políticas públicas por parte do Estado e mobilização por parte da sociedade civil.

Estancando o fluxo de violência já em casa


Nada é mais urgente do a conscientização de pais e outros familiares de pessoas trans e travestis sobre o direito de seus filhos e/ou parentes se expressarem de acordo com o gênero com o qual se identificam e serem tratados pelo nome de sua escolha.

O epicentro de toda essa violência que explode nas ruas é, na maioria esmagadora das vezes, a família. Uma rápida olhada nos perfis dos familiares da maioria das pessoas transexuais e travestis revela que a incompreensão da família e a violência doméstica são geralmente insufladas por crenças religiosas transfóbicas.

Pessoas trans e travestis amadas e respeitadas como tais no seio familiar dificilmente ficarão expostas a maior parte das situações de vulnerabilidade socioeconômica que acabam por colocá-las de frente com seus agressores e assassinos.


NÃO DEIXE DE LER
'Travesti não é banguça' e transfobia é crime

https://www.xn--foradoarmrio-kbb.com/2019/12/travesti-nao-e-banguca-e-transfobia-e.html 


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