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Homossexualidade na milenar civilização chinesa

Homossexualidade na milenar civilização chinesa



Por Sergio Viula


O amor e o desejo durante a China Qing podem ter sido muito mais complexos do que os registros oficiais sugerem. Documentos da corte mencionam imperadores com jovens favoritos masculinos, enquanto romances, poemas e diários de viajantes descrevem afeto entre homens sem constrangimento. No entanto, ensaios confucionistas e códigos legais condenavam tais práticas. Isso levanta questões: esses registros refletem relacionamentos genuínos ou são apenas estilo literário, boatos ou exageros?

Na Cidade Proibida, o ambiente de protocolo rígido e vigilância constante convivia com rumores de relações próximas entre imperadores, eunucos e cortesãos. A intimidade, muitas vezes não registrada oficialmente, poderia existir entre aqueles obrigados à lealdade e à discrição. A poesia e a arte também carregavam significados ambíguos: versos e pinturas aparentemente neutros poderiam ocultar gestos de afeto ou desejo, deixando aos leitores modernos a tarefa de interpretar sinais sutis. O poeta Yuan Mei, por exemplo, elogia jovens estudantes em suas obras, sem que seja possível distinguir entre admiração estética e interesse pessoal.

No teatro e na ópera, jovens atores masculinos interpretavam papéis femininos, despertando admiração que os mecenas podiam transformar em laços pessoais ou simplesmente em prestígio social. Comerciantes ricos, principalmente em cidades portuárias, mantinham “favoritos” masculinos, proporcionando-lhes educação, conforto e até casamento em alguns casos. Esses arranjos poderiam ser tanto uma forma de exibir status quanto uma expressão de afeto. A vida rural também mostra flexibilidade: registros apontam uniões entre homens em pequenas comunidades, possivelmente como soluções econômicas ou sociais, mas que lembram estruturas de companheirismo quase matrimoniais.

A evidência, embora dispersa e ambígua, sugere que desejos e relações do mesmo sexo existiam em diferentes contextos sociais na China Qing — da corte imperial às aldeias rurais — mas frequentemente permaneciam velados, disfarçados de conveniência política, tradição literária ou necessidade econômica.

Para pensar:

O estudo dessas práticas revela a complexidade das relações humanas em uma sociedade marcada por rígidos códigos morais e sociais. Amor, desejo e afeto podiam coexistir com normas confucionistas, muitas vezes codificados na arte, na literatura ou em relações de poder e sobrevivência. Mais do que registros claros, os vestígios históricos convidam à reflexão sobre como interpretamos os laços afetivos em culturas passadas, lembrando que os sentimentos humanos muitas vezes desafiam categorias rígidas e atravessam o tempo com sutileza e ambiguidade.

Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China

Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China


Por Sergio Viula


A história LGBTQ+ na China é antiga, rica e cheia de simbolismos poéticos. Muito antes das opressões modernas e das políticas de censura, relações homoafetivas eram celebradas em textos literários, pinturas e nas cortes imperiais. Termos como “o pêssego mordido” ou “a manga cortada” atravessaram séculos como metáforas de amor e desejo entre pessoas do mesmo sexo.

Mas, se por um lado o passado nos mostra momentos de tolerância e até prestígio para essas relações, a China contemporânea revela um contraste: descriminalização tardia, censura à comunidade LGBTQ+, repressão a espaços de acolhimento e direitos civis ainda negados.

Neste post, fazemos uma viagem no tempo para recuperar essa história e refletir sobre as vozes que, apesar de silenciadas, continuam a desafiar os limites impostos.


Antigamente: metáforas de amor e desejo

Mizi Xia e o Duque Ling de Wei – o “pêssego mordido”


Mizi Xia, jovem favorito do Duque Ling de Wei


Durante a era da Primavera e Outono (séc. IV a.C.), Mizi Xia, jovem favorito do Duque Ling de Wei, mordeu um pêssego e ofereceu a outra metade ao seu amante. Esse gesto se tornou símbolo de afeto e deu origem à expressão “o amor do pêssego mordido”, usada durante séculos para falar sobre relações homoeróticas.


Imperador Ai e Dong Xian – a “manga cortada”


Ilustração de Mizi Xia e o Duque Ling de Wei, na China de 500 a.C.;
naquela época, a bissexualidade era encarada como algo natural

Na dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), o imperador Ai Di viveu uma história de amor com o oficial Dong Xian. Conta a lenda que, para não acordar o amado adormecido sobre seu braço, o imperador cortou a própria manga. Daí nasceu a expressão “a paixão da manga cortada” — outra metáfora para relações entre homens.

Estudos históricos apontam que vários imperadores chineses foram abertamente bissexuais. Relações homoafetivas eram comuns entre as elites e, em muitas épocas, vistas como sinal de sofisticação cultural. Poetas, artistas e músicos celebravam o amor homoerótico sem a sombra da culpa ou da criminalização.


Literatura e registros históricos


O Poeta Bai Juyi


Na dinastia Tang (618–907), a poesia floresceu, e autores como Bai Juyi escreveram versos com delicadas alusões homoafetivas. Obras literárias e peças teatrais dos períodos Ming e Qing também retrataram romances entre pessoas do mesmo sexo, deixando um legado cultural que desmente qualquer ideia de que a homossexualidade seria uma “importação moderna” no país.


Amor Entre Mulheres: Vozes e Silêncios

Se os registros sobre amores masculinos já são fragmentados, os relatos sobre relações entre mulheres são ainda mais raros — mas eles existem e mostram que a resistência lésbica tem raízes profundas.


Teresa Xu, à esquerda, e Li Tingting compartilham um momento do lado de fora do salão de beleza onde as duas estavam se preparando para seu casamento. AP Photo/Mark Schiefelbein


Duì Shí: “Comer em Dueto”

No final da Dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), surgiu o termo duì shí (对食), que significa “comer em dueto”. Ele descrevia uniões íntimas entre mulheres — muitas vezes criadas e damas do palácio — que viviam juntas e eram chamadas informalmente de “marido e mulher”.


A Irmandade Golden Orchid

Na Dinastia Qing, a Golden Orchid Society (金兰会) foi um movimento de mulheres que rejeitavam casamentos arranjados e formavam irmandades intensas. Algumas uniões eram tão sérias que realizavam rituais formais de compromisso, e havia casos de suicídios coletivos para manter sua autonomia e seus laços afetivos.


Mojing Dang: O “Clube dos Espelhos”

Na província de Guangdong, o Mojing Dang (摩镜党) reunia mulheres que formavam pares e viviam como casais, desafiando a estrutura patriarcal. Seus pactos eram conhecidos como uma forma de resistência e, possivelmente, de amor romântico e sexual.


Wu Zao: A Poetisa Queer

Na Dinastia Qing, a poetisa Wu Zao (1799–1862) dedicou versos intensos a outras mulheres, em tons de amor e desejo. Sua obra demonstra que a homoafetividade feminina não apenas existiu, mas também encontrou expressão literária, ainda que de forma velada.


China contemporânea: avanços e desafios


Descriminalização e retirada da lista de doenças




A homossexualidade foi descriminalizada apenas em 1997 e, em 2001, deixou de ser considerada oficialmente uma doença mental na China. No entanto, o casamento igualitário e direitos de adoção ainda são negados à comunidade LGBTQ+.


Política dos “três não”

O governo chinês adota uma postura ambígua conhecida como “os três não”: não apoiar, não condenar, mas também não promover os direitos LGBTQ+. Essa neutralidade aparente, na prática, limita avanços e mantém a comunidade em estado de invisibilidade legal.


Casos emblemáticos de repressão e resistência

A estudante Qiu Bai processou o Ministério da Educação por livros didáticos que descreviam a homossexualidade como distúrbio — e conseguiu levar o caso à justiça, abrindo um precedente simbólico.

Uma mulher trans, conhecida como Ling’er, venceu um processo após ser submetida a “terapias de conversão” com eletrochoques, recebendo indenização inédita no país.

A famosa apresentadora trans Jin Xing, apelidada de “Oprah da China”, teve seus programas suspensos, refletindo a crescente censura à representação LGBTQ+.

Espaços históricos como o bar lésbico Roxie, em Xangai, fecharam sob pressão política, enquanto autores de fanfics gays foram presos em operações de repressão cultural.


Aceitação silenciosa




Apesar da censura, relatos de jovens LGBTQ+ mostram que grandes centros urbanos, como Chengdu e Pequim, têm espaços de convivência e redes de apoio mais abertos, embora sem reconhecimento oficial. Essa resistência cotidiana mantém viva a esperança de um futuro mais inclusivo.


Resgatando a memória, afirmando o futuro

Do “pêssego mordido” às histórias de amor imperial, passando pela poesia das dinastias e chegando à luta contemporânea contra a censura, a história LGBTQ+ da China mostra que o amor e o desejo não conhecem barreiras de tempo, cultura ou política.

Resgatar essa memória é mais que um ato histórico: é uma forma de empoderamento. É dizer para as gerações de hoje — na China e no mundo — que nossos afetos sempre existiram, resistiram e continuarão a florescer, por mais que tentem apagar nossas cores da história.

Porque, não importa onde ou quando, nós sempre estivemos aqui.

Mitos Chineses e a Diversidade Sexual: Histórias de Amor, Gênero e Transformação



Organizado por Sergio Viula


Ao contrário do que pensam aqueles que acreditam desmerecer a diversidade sexual ao dizerem que são "importações do Ocidente", os modos de encarar a homossexualidade e a transgeneridade entre povos antigos é muito mais antiga do que qualquer movimento social contemporâneo. A mitologia chinesa, por exemplo, é rica e diversificada nesse sentido. Ela reflete uma vasta gama de crenças culturais, religiosas e sociais acumuladas ao longo de milênios. Temas como a homossexualidade e transgeneridade aparecem em mitos, contos folclóricos e práticas religiosas que transcendem os tempos. Veja um pouco dessa riqueza abaixo:

Homossexualidade nos Mitos Chineses

A ideia de relações homossexuais aparece frequentemente na mitologia e no folclore chineses. Muitas histórias atribuem tais relações a figuras divinas, espíritos e até animais míticos, sinalizando uma aceitação ou, ao menos, uma curiosidade cultural em relação ao tema em certos períodos históricos.

1. "Vento Sul" e os Espíritos Associados

O termo "vento sul" era usado poeticamente para se referir à homossexualidade, uma expressão que remonta à crença de que o amor entre pessoas do mesmo sexo teria origem nas regiões míticas do sul. Essa visão foi amplamente influenciada por tradições xamânicas, pré-taoístas e pré-confucionistas.

Figuras mitológicas como Yu o Grande, o lendário fundador da Dinastia Xia, e seu pai, Gun, são por vezes associados à diversidade sexual, ainda que essas interpretações possam ser reflexos de análises contemporâneas de textos antigos. Outros, como Lan Caihe, um dos Oito Imortais do Taoísmo, são celebrados pela fluidez de gênero e sexualidade.

2. Contos de Dragões e Homens Velhos

Histórias de dragões que formam relações ou cometem atos de violência sexual com homens mais velhos são comuns em narrativas folclóricas. Por exemplo, no conto do agricultor de sessenta anos que encontra um dragão em circunstâncias traumáticas, há uma relação simbólica entre poder, idade e desejo que permeia muitas dessas histórias.

3. Tu Er Shen, o Deus Coelho

A figura de Tu Er Shen é talvez uma das mais conhecidas quando se trata da relação entre mitos e homossexualidade. Transformado em uma divindade após sofrer injustiça, ele é venerado como o protetor do amor e do sexo entre pessoas do mesmo sexo. Embora tenha sido esquecido durante séculos, sua adoração foi restaurada em Taiwan, onde um templo dedicado a ele em Yonghe atrai peregrinos, especialmente da comunidade LGBTQIA+.

Transgeneridade nos Mitos Chineses

A transgeneridade é igualmente abordada em várias histórias, muitas vezes refletindo a fluidez de gênero em um contexto espiritual ou religioso.

1. Lan Caihe: O Imortal Ambíguo

Entre os Oito Imortais, Lan Caihe se destaca por sua apresentação de gênero ambígua. Nas representações artísticas e literárias, Lan aparece frequentemente com roupas que misturam elementos masculinos e femininos, desafiando categorizações binárias de gênero. Ele é celebrado por sua liberdade espiritual e por viver além das convenções sociais.

2. Histórias de Transformação

Espíritos e divindades na mitologia chinesa frequentemente mudam de forma, incluindo mudanças de gênero. Essas transformações, muitas vezes, são associadas a atos de compaixão, missão divina ou exploração da essência da dualidade do yin e yang, que incorpora o equilíbrio entre masculino e feminino.

3. O Papel de Kuan Yin

Embora não especificamente transgênero, Kuan Yin, a bodhisattva da compaixão, apresenta uma história de gênero significativa. Originalmente um homem chamado Avalokiteshvara nas tradições budistas indianas, Kuan Yin tornou-se uma figura feminina na cultura chinesa, simbolizando a capacidade de transcender gênero em favor de compaixão e aceitação universais.

4. Espíritos e Seres de Gênero Fluido

No folclore, espíritos de raposas (huli jing) e outras entidades sobrenaturais frequentemente mudam de forma e gênero para enganar ou seduzir humanos. Essas histórias, embora muitas vezes moralizantes, também ilustram uma compreensão cultural da fluidez de gênero como parte do mundo espiritual.

O Significado Cultural e Religioso

A aceitação ou a rejeição da homossexualidade e da transgeneridade nos mitos chineses variou ao longo do tempo. Enquanto as tradições confucionistas enfatizaram normas sociais rígidas, incluindo papéis de gênero e reprodução, o taoísmo e o budismo frequentemente ofereceram uma visão mais flexível, incorporando histórias e práticas que desafiavam as normas heteronormativas e cisnormativas.

Os mitos chineses que abordam homossexualidade e transgeneridade são mais do que simples histórias; eles oferecem uma janela para os valores e as transformações culturais de uma sociedade ao longo do tempo. Esses relatos mostram como, mesmo em uma cultura rica em tradições conservadoras, sempre houve espaço para diversidade e fluidez em narrativas que conectam o humano ao divino.

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