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Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China

Do Pêssego Mordido à Resistência: A História da Homossexualidade na China


Por Sergio Viula


A história LGBTQ+ na China é antiga, rica e cheia de simbolismos poéticos. Muito antes das opressões modernas e das políticas de censura, relações homoafetivas eram celebradas em textos literários, pinturas e nas cortes imperiais. Termos como “o pêssego mordido” ou “a manga cortada” atravessaram séculos como metáforas de amor e desejo entre pessoas do mesmo sexo.

Mas, se por um lado o passado nos mostra momentos de tolerância e até prestígio para essas relações, a China contemporânea revela um contraste: descriminalização tardia, censura à comunidade LGBTQ+, repressão a espaços de acolhimento e direitos civis ainda negados.

Neste post, fazemos uma viagem no tempo para recuperar essa história e refletir sobre as vozes que, apesar de silenciadas, continuam a desafiar os limites impostos.


Antigamente: metáforas de amor e desejo

Mizi Xia e o Duque Ling de Wei – o “pêssego mordido”


Mizi Xia, jovem favorito do Duque Ling de Wei


Durante a era da Primavera e Outono (séc. IV a.C.), Mizi Xia, jovem favorito do Duque Ling de Wei, mordeu um pêssego e ofereceu a outra metade ao seu amante. Esse gesto se tornou símbolo de afeto e deu origem à expressão “o amor do pêssego mordido”, usada durante séculos para falar sobre relações homoeróticas.


Imperador Ai e Dong Xian – a “manga cortada”


Ilustração de Mizi Xia e o Duque Ling de Wei, na China de 500 a.C.;
naquela época, a bissexualidade era encarada como algo natural

Na dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), o imperador Ai Di viveu uma história de amor com o oficial Dong Xian. Conta a lenda que, para não acordar o amado adormecido sobre seu braço, o imperador cortou a própria manga. Daí nasceu a expressão “a paixão da manga cortada” — outra metáfora para relações entre homens.

Estudos históricos apontam que vários imperadores chineses foram abertamente bissexuais. Relações homoafetivas eram comuns entre as elites e, em muitas épocas, vistas como sinal de sofisticação cultural. Poetas, artistas e músicos celebravam o amor homoerótico sem a sombra da culpa ou da criminalização.


Literatura e registros históricos


O Poeta Bai Juyi


Na dinastia Tang (618–907), a poesia floresceu, e autores como Bai Juyi escreveram versos com delicadas alusões homoafetivas. Obras literárias e peças teatrais dos períodos Ming e Qing também retrataram romances entre pessoas do mesmo sexo, deixando um legado cultural que desmente qualquer ideia de que a homossexualidade seria uma “importação moderna” no país.


Amor Entre Mulheres: Vozes e Silêncios

Se os registros sobre amores masculinos já são fragmentados, os relatos sobre relações entre mulheres são ainda mais raros — mas eles existem e mostram que a resistência lésbica tem raízes profundas.


Teresa Xu, à esquerda, e Li Tingting compartilham um momento do lado de fora do salão de beleza onde as duas estavam se preparando para seu casamento. AP Photo/Mark Schiefelbein


Duì Shí: “Comer em Dueto”

No final da Dinastia Han (206 a.C.–220 d.C.), surgiu o termo duì shí (对食), que significa “comer em dueto”. Ele descrevia uniões íntimas entre mulheres — muitas vezes criadas e damas do palácio — que viviam juntas e eram chamadas informalmente de “marido e mulher”.


A Irmandade Golden Orchid

Na Dinastia Qing, a Golden Orchid Society (金兰会) foi um movimento de mulheres que rejeitavam casamentos arranjados e formavam irmandades intensas. Algumas uniões eram tão sérias que realizavam rituais formais de compromisso, e havia casos de suicídios coletivos para manter sua autonomia e seus laços afetivos.


Mojing Dang: O “Clube dos Espelhos”

Na província de Guangdong, o Mojing Dang (摩镜党) reunia mulheres que formavam pares e viviam como casais, desafiando a estrutura patriarcal. Seus pactos eram conhecidos como uma forma de resistência e, possivelmente, de amor romântico e sexual.


Wu Zao: A Poetisa Queer

Na Dinastia Qing, a poetisa Wu Zao (1799–1862) dedicou versos intensos a outras mulheres, em tons de amor e desejo. Sua obra demonstra que a homoafetividade feminina não apenas existiu, mas também encontrou expressão literária, ainda que de forma velada.


China contemporânea: avanços e desafios


Descriminalização e retirada da lista de doenças




A homossexualidade foi descriminalizada apenas em 1997 e, em 2001, deixou de ser considerada oficialmente uma doença mental na China. No entanto, o casamento igualitário e direitos de adoção ainda são negados à comunidade LGBTQ+.


Política dos “três não”

O governo chinês adota uma postura ambígua conhecida como “os três não”: não apoiar, não condenar, mas também não promover os direitos LGBTQ+. Essa neutralidade aparente, na prática, limita avanços e mantém a comunidade em estado de invisibilidade legal.


Casos emblemáticos de repressão e resistência

A estudante Qiu Bai processou o Ministério da Educação por livros didáticos que descreviam a homossexualidade como distúrbio — e conseguiu levar o caso à justiça, abrindo um precedente simbólico.

Uma mulher trans, conhecida como Ling’er, venceu um processo após ser submetida a “terapias de conversão” com eletrochoques, recebendo indenização inédita no país.

A famosa apresentadora trans Jin Xing, apelidada de “Oprah da China”, teve seus programas suspensos, refletindo a crescente censura à representação LGBTQ+.

Espaços históricos como o bar lésbico Roxie, em Xangai, fecharam sob pressão política, enquanto autores de fanfics gays foram presos em operações de repressão cultural.


Aceitação silenciosa




Apesar da censura, relatos de jovens LGBTQ+ mostram que grandes centros urbanos, como Chengdu e Pequim, têm espaços de convivência e redes de apoio mais abertos, embora sem reconhecimento oficial. Essa resistência cotidiana mantém viva a esperança de um futuro mais inclusivo.


Resgatando a memória, afirmando o futuro

Do “pêssego mordido” às histórias de amor imperial, passando pela poesia das dinastias e chegando à luta contemporânea contra a censura, a história LGBTQ+ da China mostra que o amor e o desejo não conhecem barreiras de tempo, cultura ou política.

Resgatar essa memória é mais que um ato histórico: é uma forma de empoderamento. É dizer para as gerações de hoje — na China e no mundo — que nossos afetos sempre existiram, resistiram e continuarão a florescer, por mais que tentem apagar nossas cores da história.

Porque, não importa onde ou quando, nós sempre estivemos aqui.

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Por Sergio Viula


A presença LGBTQ+ não é um fenômeno moderno — ela atravessa milênios, culturas e continentes. De faraós a filósofos, de poetas a conquistadores, a diversidade sexual e de gênero sempre fez parte da experiência humana. Conhecer essas histórias é resgatar vozes silenciadas e mostrar que a luta por visibilidade e respeito não começou ontem: ela é tão antiga quanto a própria civilização.

Neste post, revisitamos figuras históricas e textos clássicos que comprovam que o amor e o desejo entre pessoas do mesmo sexo — assim como identidades de gênero não conformes — sempre existiram, apesar de tantas tentativas de apagamento.

O rei egípcio Neferkare


Imagem do Faraó e sua mãe


O faraó Neferkare, provavelmente Pepi II, passava madrugadas com seu general favorito Sasenet. Embora os registros sejam escassos, esse episódio é lembrado como um exemplo de relações homoafetivas na história do Egito Antigo.

Safo de Lesbos (Grécia, séc. VII a.C.)


Safo


Poetisa da ilha de Lesbos, Safo amava e escrevia sobre mulheres. Seu nome deu origem ao termo "lésbica". Seus poemas, embora fragmentados, sobreviveram ao tempo e continuam a inspirar gerações com suas celebrações do amor e da beleza feminina.

Alexandre, o Grande (Macedônia/Grécia, 356–323 a.C.)


Alexandre e Heféstion


Rei da Macedônia e conquistador de um dos maiores impérios da Antiguidade, Alexandre teve uma relação afetiva profunda com Heféstion, seu general e amigo de infância, além de esposas. A figura de Alexandre tornou-se símbolo de poder, conquista e também de ambiguidade sexual, desafiando noções rígidas de masculinidade.

Mizi Xia e o Duque Ling de Wei (China, séc. IV a.C.)


Mizi Xia e o Duque Ling de Wei


Na China Antiga, Mizi Xia era o jovem favorito do duque de Wei. Um episódio famoso conta que ele mordeu um pêssego e deu a metade ao duque, que interpretou o gesto como sinal de amor. Essa história deu origem à expressão “o amor do pêssego mordido” para designar relações homoeróticas na literatura chinesa.


O Kama Sutra e a diversidade na Índia Antiga


Kama Sutra


Escrito entre os séculos III e IV d.C. por Vatsyayana, o Kama Sutra vai muito além das práticas sexuais: é uma obra sobre amor, estética, comportamento social e papéis de gênero. Surpreendentemente, reconhece explicitamente relações homoafetivas e identidades que hoje associamos à diversidade sexual e de gênero.

No Livro II (“Sobre a União Sexual”), há uma seção intitulada “Sobre os toques e carícias mútuas entre homens”. Vatsyayana descreve dois grupos principais:

Homens que se comportam como mulheres (comparáveis a pessoas trans femininas ou efeminadas).

Homens que têm desejos por outros homens, mas mantêm aparência e comportamento masculinos.

Um trecho adaptado afirma:

“Há homens que praticam a arte [do amor] como as mulheres. São chamados de klibas. Eles imitam os gestos e falas das mulheres e ocupam o papel feminino no ato sexual.”

O Kama Sutra também menciona relações entre mulheres, descrevendo as Sváyambhú, mulheres que se ligam romanticamente e sexualmente a outras mulheres, e usa o termo Sahaja, traduzido como “natural”, sugerindo que esse desejo era visto como parte da natureza humana.

Outro trecho interpretado diz:

“Algumas mulheres se satisfazem mutuamente com carícias e beijos, ou usando objetos. Essas mulheres são chamadas de svayambhú, e seu desejo é inato.”

Além disso, o texto reconhece o “terceiro gênero”, chamado Napumsaka, categoria que incluía pessoas intersexo, trans, eunucos e outras identidades de gênero não tradicionais.
Conclusão: a história não nos apagará

Essas narrativas mostram que o amor e o desejo entre pessoas do mesmo sexo, assim como identidades de gênero diversas, não são invenções modernas nem “modismos”. Elas existiram em diferentes épocas e lugares, apesar das tentativas de apagamento impostas por moralismos, religiões e regimes políticos.

Recuperar essas histórias é um ato de resistência. É afirmar que nós sempre estivemos aqui — e continuaremos a estar.

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