O que é gênero? (Judith Butler)

O que é gênero?
Judith Butler / Big Think 

Traduzido por 
Sergio Viula 



Judith Butler: O que é gênero?
Falando para o canal Big Think




Então, existem muitas teorias diferentes sobre gênero, e a minha é apenas uma delas. Às vezes, pessoas que realmente odeiam o gênero me apontam como a responsável por ter inventado isso, mas isso não é verdade. Na minha visão, todo mundo tem uma teoria sobre gênero, e o que quero dizer com isso é que todos têm certas suposições sobre o que o gênero é ou deveria ser. E, em determinado momento da vida, nos perguntamos: "Uau, de onde veio essa suposição?" (Judith ri).

Neste ponto, estou menos preocupada com qual teoria está certa ou errada, porque o ataque ao gênero também é um ataque à democracia. Temos o poder e a liberdade de criar vidas mais vivíveis para nós mesmos, onde os corpos possam ser mais livres para respirar, se mover e amar, sem discriminação e sem medo da violência.

Sou Judith Butler, professora distinta na pós-graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley. Ensino literatura, filosofia e teoria crítica, e sou mais conhecida por meus dois livros sobre gênero: Problemas de Gênero e Corpos que Importam, do início dos anos 1990. Meu trabalho foi traduzido para mais de 27 idiomas.

Eu insisto que o que significa ser mulher, ou mesmo ser homem ou qualquer outro gênero, é uma questão em aberto.

Temos uma série de diferenças biológicas, então não as nego, mas não acho que elas determinem quem somos de uma forma definitiva. No centro dessas controvérsias está a distinção entre sexo e gênero. Mas qual é essa distinção? Como devemos pensá-la?

O sexo geralmente é uma categoria atribuída a bebês, que tem importância no mundo médico e jurídico. Já o gênero é uma mistura de normas culturais, formações históricas, influência familiar, realidades psíquicas, desejos e vontades. E nós temos voz nisso.

Minha vida foi influenciada pelos anos 1960 e pelos movimentos sociais que surgiram nessa época. Cresci no lado leste de Cleveland, em uma comunidade judaica, e, quando estava no ensino médio, já era politicamente ativa. Mas também fazia cursos universitários de filosofia.

Nos meus 20 anos, percebi que não foram apenas os judeus que foram capturados e exterminados pelo regime nazista. Foram pessoas queer, gays e lésbicas, pessoas com deficiência, pessoas doentes, trabalhadores poloneses, comunistas. Minha percepção era de que era preciso ampliar a lente e entender que muitas pessoas foram alvo de políticas genocidas e que há diferentes formas de opressão. Continuo convencida de que precisamos conhecer a história para garantir que ela não se repita e que devemos buscar justiça não apenas para o grupo ao qual pertencemos, mas para qualquer grupo que sofra de maneira semelhante.

Nos anos 1970 e 1980, fiz parte de um movimento de pessoas que estavam repensando o gênero naquela época. A teoria queer estava surgindo, em um diálogo complexo com o feminismo. Questões trans ainda não haviam se tornado parte da nossa realidade contemporânea, então era um momento em que fazíamos perguntas como: "O que a sociedade fez de nós e o que podemos fazer de nós mesmos?"

Havia algumas vertentes do feminismo às quais me opus. Uma delas defendia que as mulheres eram, fundamentalmente, mães e que a maternidade era a essência do feminino. Outra via o feminismo como uma questão de diferença sexual, mas definiam essa diferença sempre presumindo a heterossexualidade. Ambas me pareceram equivocadas.

Eu sempre acreditei que as pessoas não deveriam ser discriminadas com base no que fazem com seus corpos, em quem amam, em como se movem ou como se apresentam. O que eu estava dizendo era que o sexo atribuído ao nascimento e o gênero que lhe ensinam a ser não deveriam determinar como você vive sua vida.

Às vezes, as pessoas apontam Problemas de Gênero como o marco inicial da teoria de gênero, mas outras pessoas já trabalhavam nessa área antes de mim, como Gayle Rubin, Juliet Mitchell e Simone de Beauvoir.

Simone de Beauvoir foi uma filósofa existencialista e feminista que escreveu O Segundo Sexo na década de 1940. Seu argumento central era que "não se nasce mulher, torna-se mulher" – ou seja, o corpo não é um fato imutável. Ela abriu a possibilidade de uma diferença entre o sexo atribuído ao nascimento e o sexo que se torna ao longo da vida.

Gayle Rubin, uma antropóloga, escreveu um artigo extremamente influente chamado O Tráfico de Mulheres. Ela argumentava que a família era uma estrutura cuja função era reproduzir o gênero e que um de seus objetivos era manter a heterossexualidade como norma.

Outro aspecto interessante do trabalho de Rubin foi sua relação com a psicanálise. Ela sugeriu que havia uma enorme repressão envolvida no processo de "tornar-se" homem ou mulher e que, para se conformar às normas de gênero, era necessário reprimir diversas possibilidades de ser, sentir, agir e amar que não se encaixavam nesses padrões.

Então, a antropologia, a psicanálise – tudo isso já fazia parte do debate antes de Problemas de Gênero.

Quando escrevi Problemas de Gênero, muitas pessoas tratavam o gênero como um fato natural ou uma realidade sociológica, mas não como algo que poderia ser construído e reconstruído.

A performance é importante nesse sentido: nós encenamos quem somos. E qualquer pessoa que estude performance sabe que existem performances em nossa vida que não são meras imitações, não são falsas.

Quando o filósofo J.L. Austin cunhou o termo "performativo", ele tentava entender enunciados legais. Por exemplo, quando um juiz diz "Eu os declaro marido e mulher", isso não é uma ficção – isso aconteceu de fato.

Agora, e se disséssemos que, ao vivermos nossas vidas como um determinado gênero, estamos realmente tornando esse gênero real, fazendo algo acontecer?

Quando pessoas gays e lésbicas começaram a se assumir, ou quando pessoas trans começaram a viver abertamente, algo mudou no mundo. Ao aparecer, falar e agir de certas maneiras, a realidade mudou. E continua mudando.

Estamos vendo os termos mudarem. Não falamos mais de família, mulher, homem, desejo e sexo da mesma maneira. Até mesmo o Cambridge Dictionary reconhece que algo mudou (Judith ri).

O performativo é um ato que faz algo existir ou um ato que tem consequências reais. Ele muda a realidade.

Mesmo entre pessoas progressistas e liberais que conheço, às vezes há resistência em relação aos direitos trans, direitos gays e lésbicos ou mesmo aos direitos das mulheres. Dizem que são questões secundárias ou que os incomodam.

Mas, nos EUA, aprendemos a falar de forma diferente sobre pessoas negras e sobre mulheres. E sim, pode ter sido difícil aprender a usar uma nova linguagem. Talvez tenhamos tido que ajustar nossos hábitos. Mas errar faz parte do aprendizado, especialmente quando estamos aprendendo algo novo.

Hoje, estou menos interessada em defender uma teoria sobre gênero e mais preocupada em encontrar formas criativas e eficazes de combater os ataques ao gênero.

Muitas pessoas que se recusam a permitir que pessoas trans se definam temem que sua própria auto definição seja desestabilizada.

Mas será que o gênero de alguém é realmente necessário e universal, ou é algo que emerge de maneira complexa em cada um de nós?

A liberdade é uma luta porque há muitas forças no mundo que nos dizem para não sermos livres com nossos corpos.

Vivemos em uma democracia e assumimos que vivemos de acordo com princípios como igualdade, liberdade e justiça. Mas estamos sempre aprendendo o que esses conceitos realmente significam.

Precisamos ocupar esses conceitos e mostrar que as lutas por justiça racial, igualdade e liberdade de gênero são parte essencial de qualquer luta democrática.

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Via Big Think

Traduzido por Sergio Viula

Vídeo fonte: https://youtu.be/UD9IOllUR4k?si=q6EVfV-K3v0mOaBs

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