Trecho de entrevista com Judith Butler - 30 de março de 2025

Entrevista completa em inglês aqui:



Trecho de entrevista com Judith Butler publicada em vídeo em 30 de março de 2025


Eu entendo que essas pessoas estão sofrendo, eu entendo. Elas têm uma sensação de falta de direito, de que não têm um lugar no mundo. Talvez haja uma explicação social e econômica para o que aconteceu com elas. Como chegaram a esse ponto de alienação? Por que não têm empregos que lhes deem satisfação? Por que não fazem parte de comunidades que lhes mostrem outros valores? Acho que precisamos de uma análise histórica disso, o que significa suspender o julgamento. Não é só dizer: “Oh meu Deus, são pessoas terríveis.” Estamos perguntando: “Como essa coisa terrível aconteceu?” Na medida em que a extrema-direita radical é evangélica ou participa de uma forma de nacionalismo cristão, como ocorre não apenas nos Estados Unidos, mas também em lugares como a Hungria, o gênero passa a ser entendido como algo que desafia a primazia da família heterossexual e das diferenças distintas entre homens e mulheres — a suposta natureza divina do sexo e todas as ordens sociais que se baseiam nisso, inclusive a própria civilização.

Oli Dugmore: Judith Butler, bem-vinda de volta ao Politics.

Judith Butler: Joe, obrigada. Estou feliz por estar aqui, é um grande prazer.

Oli Dugmore: Para quem não está familiarizado com você ou não viu sua última entrevista, como você se apresentaria?

Judith Butler: Sou Judith Butler. Sou professora titular na pós-graduação da Universidade da Califórnia em Berkeley e autora de diversos livros, mais recentemente Who’s Afraid of Gender, publicado pela Penguin, agora disponível em versão de bolso — acessível para estudantes, eu acho.

Oli Dugmore: Acho que, como da última vez, é útil começar com uma breve definição de termos. Você poderia explicar o que a palavra "gênero" significa para você? Talvez fosse útil indicar onde seu uso do termo pode ser um pouco diferente da forma como outras pessoas o usam.

Judith Butler: Essa é uma ótima pergunta. Nos meus primeiros anos — talvez há 35 anos — eu tinha uma teoria de gênero. Publiquei e defendi essa teoria. Mas agora estou fazendo outra coisa, que não é oferecer uma definição de gênero, e sim acompanhar a forma como o termo se tornou um tema altamente inflamado na vida pública. Algumas pessoas usam “gênero” para se referir à identidade de gênero — como a pessoa se identifica: você é homem, mulher, ou se identifica de outro modo? Na história do feminismo, “gênero” era uma categoria de análise — uma forma de rastrear relações de poder, de pensar desigualdades sistêmicas, exclusões. Era uma estrutura para compreender como o poder é distribuído com base em ideias de masculinidade e feminilidade. Pode parecer estranho, mas eu não tenho uma definição única de gênero. Acho que estou mais interessada em como as pessoas se aproximam desse conceito e no que elas fazem com ele. Hoje, o termo tem tantos significados que é difícil acompanhar. Então, em vez de ser alguém que defende uma teoria de gênero específica, sou mais uma crítica que acompanha o que tem acontecido com esse termo. E isso é significativo, no sentido de que sim, acredito que muitas pessoas têm uma ideia falsa sobre o que é ou pode ser o gênero — mas eu não as retorno a uma definição única. Sugiro que considerem a variedade de abordagens que encontramos, por exemplo, nos programas de estudos de gênero. Não posso resolver esses debates. Mas é importante ver que existem os materialistas, os interseccionais, os pós-estruturalistas, os historiadores — e entre eles há diferenças profundas entre historiadores culturais e econômicos. Devemos manter essas abordagens abertas e valorizar a complexidade desses debates. Mas estamos vivendo uma época em que tudo isso está sendo silenciado — ou quando uma caricatura única do que é gênero substitui um campo de estudo realmente complexo, representado em toda universidade de pesquisa importante no mundo.

Oli Dugmore: Isso talvez não responda diretamente à pergunta, mas foi uma ótima resposta, para ser honesto.

Judith Butler: Obrigada.

Oli Dugmore: Sem falar especificamente sobre gênero, você me fez pensar se isso não faz parte de uma tendência acadêmica ou discursiva mais ampla de tentar reduzir e simplificar as coisas. Pode ser sobre gênero, economia, política — escolha o tema... pode ser política, economia, gênero — qualquer um desses temas está sendo simplificado.

Judith Butler: Sim, isso é parte de uma tendência anti-intelectual, onde se desconfia do pensamento crítico, da complexidade, da dúvida. As pessoas querem respostas simples. Mas vivemos em um mundo complexo, com histórias e estruturas complexas. E quando você simplifica demais, você também apaga vozes, histórias e experiências. Você não só fecha a porta para o pensamento crítico, como também exclui pessoas. É isso que está em jogo — uma luta sobre quem tem o direito de existir, de ser reconhecido, de ser ouvido. E isso não se limita ao gênero, mas é evidente no modo como gênero tem sido atacado. Pessoas trans, por exemplo, são colocadas como ameaças simbólicas a uma ordem tradicional. E isso serve a projetos políticos autoritários que se alimentam do medo.

Oli Dugmore: Então estamos vendo uma reação não só contra ideias, mas contra pessoas reais.

Judith Butler: Exatamente. E a retórica contra o “gênero” — entre aspas — tem servido como catalisador para movimentos reacionários em vários países. Isso aconteceu na Hungria, na Polônia, no Brasil, na Itália. Eles usam o termo “ideologia de gênero” como uma forma de nomear o inimigo — mas é um inimigo inventado. É uma forma de demonizar qualquer coisa que desafie a autoridade patriarcal ou nacionalista. E, ao fazer isso, colocam em risco a vida de pessoas que já são vulneráveis.

Oli Dugmore: O que você diria para quem tem medo dessas mudanças ou sente que está “perdendo seu lugar” no mundo?

Judith Butler: Acho que o medo é real. Há sofrimento real — pessoas se sentem deixadas para trás, sem oportunidades, sem sentido. Mas culpar minorias por isso é um desvio. Devemos olhar para as estruturas econômicas e sociais que criam esse sentimento de abandono. E precisamos construir solidariedade — não mais exclusão.

Judith Butler: Há um esforço, hoje, de simplificar conceitos complexos para transformá-los em armas políticas. “Gênero”, por exemplo, foi transformado em uma caricatura, esvaziado de sua riqueza teórica e empírica. As pessoas usam a palavra como se fosse uma ameaça, sem entender ou querer entender o que ela significa de fato. Isso é parte de uma campanha global de desinformação. E, frequentemente, isso vem acompanhado de ataques contra universidades, pesquisadores, professores e programas de estudos de gênero. A ideia é deslegitimar o saber crítico, especialmente aquele que desafia normas tradicionais de poder. Então, quando perguntam o que “gênero” significa para mim, eu respondo com mais perguntas do que definições. Porque é justamente o espaço do debate, da dúvida, da investigação que está sendo atacado. E eu quero defender esse espaço. Quero defender o direito de pensar criticamente sobre gênero, sobre identidade, sobre poder. Quero defender o direito das pessoas trans, não binárias, queer, de existirem sem serem demonizadas. Quero defender o direito de todos nós a uma linguagem mais ampla, mais justa, mais aberta. Porque sem isso, o que nos resta é o autoritarismo — a imposição de uma única verdade, de uma única forma de viver.

 E esse autoritarismo não é apenas político. Ele invade o cotidiano das pessoas — nas escolas, nas famílias, nos espaços públicos. Quando alguém é impedido de usar seu nome, de vestir-se como deseja, de ser reconhecido em sua identidade, isso é violência. É uma forma de dizer: “Você não pertence.” E isso não deveria ser aceitável em nenhuma sociedade que se diga democrática. Muitas vezes me perguntam: “Por que gênero importa tanto?” E eu respondo: porque é através do gênero que se controlam corpos, desejos, futuros. É através do gênero que se impõem normas sobre quem pode amar, trabalhar, andar na rua, viver com dignidade. E quando essas normas são questionadas, aqueles que detêm o poder reagem. Eles dizem que estão defendendo a “família”, a “moral”, a “civilização”. Mas o que estão realmente defendendo é o seu lugar exclusivo nesse mundo — um lugar construído sobre a exclusão dos outros.

É por isso que precisamos de solidariedade. Não apenas entre pessoas LGBTQIA+, mas entre todas as pessoas que querem viver em um mundo mais justo. A luta pelo reconhecimento de gênero é também uma luta contra o racismo, contra o classismo, contra o colonialismo. Não podemos separar essas lutas. O que está em jogo é o tipo de sociedade que queremos construir. Será uma sociedade que escuta as pessoas, que acolhe a diversidade, que protege os mais vulneráveis? Ou será uma sociedade que reforça fronteiras, normas rígidas, hierarquias violentas? Essa escolha está diante de nós todos os dias — nas leis, nas escolas, nas redes sociais, nas conversas em família. E cada um de nós tem um papel. Não se trata apenas de teoria. Trata-se de vida vivida. Trata-se de sobrevivência. Trata-se de dignidade.

Por isso escrevi Who’s Afraid of Gender? — para mostrar que o medo em torno do gênero é fabricado, e que ele serve a propósitos políticos muito claros. Querem que tenhamos medo uns dos outros. Querem que as pessoas sintam que seus filhos estão em perigo porque alguém usou o banheiro errado. Querem distrair as pessoas da verdadeira desigualdade: a econômica, a racial, a estrutural. Mas nós não precisamos aceitar essa lógica do medo. Podemos responder com cuidado, com escuta, com pensamento. Podemos reconstruir laços, comunidades, sentidos de pertencimento. E isso começa com reconhecer que gênero não é uma ameaça. Gênero é uma parte da vida humana. Uma parte que pode ser vivida de muitas maneiras, com alegria, com dignidade, com liberdade.

Oli Dugmore: Judith Butler, muito obrigado por esta conversa. Foi um enorme privilégio poder ouvi-la.

Judith Butler: Obrigada a você. Foi um prazer. E espero que sigamos todos pensando — e sentindo — juntos.

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