Grupos identitários e empoderamento



Por Sergio Viula


Quando a gente olha para as redes sociais, especialmente o Facebook, que oferece inúmeras maneiras de compartilhamento e comentários facilmente multiplicados por um sem-número de pessoas, a gente pode tomar três rumos: entrar na dança e fazer a mesma coisa, ignorar tudo isso como uma grande perda de tempo, ou produzir conteúdo na contra-mão dessa onda macabra. É preciso multiplicar as notícias, as imagens e os comentários positivos e construtivos, aqueles que estimulam um viver mais leve e dono de si sem perder de vista o que precisa ser modificado nas estruturas que nos cercam e que nos constituem sem que o percebamos. 

Em outras palavras, não se trata de vivermos em estado de 'Poliana', sempre achando que tudo é bom e faz bem e que inevitavelmente acabará bem. Por outro lado, não podemos fazer a hiena Hardy, personagem dos desenhos infantis que só sabia dizer "Oh, vida! Oh, azar!".

Por isso, procuro equilibrar a participação nos debates dos quais tomo parte com uma atitude que seja ao mesmo tempo firme, mas gentil e até mesmo bem-humorada. Procuro evitar que vozes rancorosas me levem a falar do mesmo jeito. Algumas chegam ao ponto do xingamento para tentar extrair o pior de seus interlocutores. Não vai rolar comigo. 

Ainda que em mim haja bem e mal, como em qualquer um - não como algo metafísico -, não cultivarei o mal para o alimentar a satisfação dos maldosos mordendo a isca (risos). Antes, procurarei promover o que é belo, bom e justo, na medida das minhas forças, para o bem de todos, inclusive daqueles que não percebem que há mais sabedoria em multiplicar o que fortalece uma existência alegre e produtiva, ainda que perpassada por tristezas em alguns momentos, do que fazer o incendiário ou a incendiária que quer mesmo que tudo se exploda.

Claro que a vida não é só alegria, mas se tem uma coisa que torna a vida mais forte e mais gostosa é a alegria. Quando a tristeza se apresenta, sua fonte tem que ser identificada e corrigida no melhor das nossas forças. Nenhum de nós viverá sem experimentar sofrimento, mas não sobreviverá se for dominado pela tristeza.

O sofrimento não dignifica ninguém automaticamente


Esse falando em sofrimento, é importante reconhecer que há sofrimentos que não dependem de nossa vontade ou ação, mas boa parte do que sofremos poderia ser evitado (e tomara que ainda possa ser superado), como é o caso do que sofremos como fruto de decisões ruins, atitudes negativas diante da vida e de outros seres humanos, dos quais dependemos mais do que imaginamos, ou mesmo de mal funcionamento físico e mental. 


Algumas das fontes de sofrimento são constituídas pelo círculo social mais imediato e, graças às redes sociais, pode ser provocado por interações com pessoas que nem conhecemos. 

Felizmente, não dependemos de todas essas pessoas. Por outro lado, não podemos viver absolutamente sós e soberanos. Não somos soberanos nem mesmo sobre nossos desejos, alguns deles facilmente driblados, enquanto outros são praticamente donos de nós mesmos.

Na verdade, a hostilidade e a toxidade que rolam nas redes sociais podem agravar o estado de angústia, ansiedade e depressão em pessoas que são mais suscetíveis a tais sentimentos devastadores.

Em contrapartida, compartilhar coisas boas pode produzir o efeito contrário em muitas pessoas. A felicidade alheia pode ser inspiradora. Todavia, até isso não é tão simples quanto parece. Há quem fique angustiado, ansioso e deprimido por ver a felicidade alheia, muitas vezes porque mede a própria vida pela do outro e pensa que a sua não vai tão bem se a do outro está tão boa. É muita falta de maturidade, mas é mais comum do que imaginamos. Como lidar com gente assim? Se esconder? Não. Para que fingir viver mal ou fingir que está tudo bem para agradar gente neurótica? As duas coisas seriam uma estupidez, para dizer o mínimo.


O que me impressiona é o número de pessoas que ainda têm aquela crença em 'olho gordo', 'inveja', 'olho grande' - seja lá o nome que se dê -, que impede muita gente de vivenciar tranquilamente algum momento especial e até de compartilhá-lo tranquilamente. Fica aquele 'medinho' de que algo possa dar errado se alguém colocar o tal 'olho gordo'. Isso, porém, não passa de superstição - e como todas elas - sem o menor fundamento. 

Não é do olho alheio que o ser humano deve ter receio, mas da língua (a sua própria e a dos outros). Essa, sim, pode destruir muita gente, inclusive sem que o dono da língua mexa um dedo. Basta fomentar o ódio por meio de mentiras e calúnias, pois sempre haverá algum idiota mais suscetível a esse tipo de manipulação disposto a passar a faca no alvo da calúnia e da difamação sem a menor noção de respeito à dignidade alheia. 



No Facebook, por exemplo, muita gente está só esperando uma oportunidade para colocar sua má índole em ação em nome dos 'bons costumes', ou da família, ou mesmo de um ou outro grupo minoritário. Sim, existem extremistas em toda parte e não se pode alimentá-los. 

Gente ressentida, recalcada e revoltada vai continuar sendo assim, não importa o que se faça ou o que se diga com a intenção de tornar o mundo menos cinzento, porque o cinza está dentro dessas pessoas. Mas isso não deve nos impedir de vivermos a nossa vida independentemente do que pensam os outros, desde que o nosso modus vivendi não viole os direitos de ninguém.

No meu caso, não tenho medo ou constrangimento de comentar sobre minhas alegrias e tristezas. Claro que há coisas muito pessoais que a gente não compartilha com ninguém ou que só compartilha com aqueles que são escolhidos como muito cuidado para serem nosso amigos com A maiúsculo.



A vida não é só alegria. Mesmo quando a tristeza dura pouco, ela incomoda muito. Ano passado, por exemplo, eu fui demitido de uma empresa onde trabalhei por 10 anos. Não tive o menor problema em compartilhar isso com os amigos, mesmo não sabendo ainda como seria meu futuro mais imediato. 

Mas, em vez de ficar chorando ou de explodir quando recebi o comunicado da demissão, fui buscar minhas coisas na minha sala e transferir alguns arquivos para um pen drive por serem pessoais, apesar de relacionados ao trabalho. 

Ali mesmo, enviei uma carta para uma empresa que já havia demonstrado interesse no meu trabalho uns quatro anos antes. Ou seja, no mesmo dia em que fui demitido de uma, busquei outra e recebi resposta positiva para participar do processo seletivo que começaria dali a alguns dias. Resumindo: Não fiquei desempregado mais do que o mês que já seria meu mês de férias. 

E o que quero dizer com tudo isso? 

Quero dizer que não basta ter qualificação e experiência. É preciso ter iniciativa e inteligência para se mover por esse mercado cada vez mais complexo que configura as relações de trabalho no Brasil.


Qualificação sem iniciativa não garante nada, 
mas iniciativa sem qualificação pode ser extremamente extenuante.


Infelizmente, por causa da discriminação contra LGBT e de outros tipos de preconceitos violentos, muita gente deixa de frequentar a escola e acaba ficando à margem do mercado de trabalho formal. Não podemos fechar os olhos para a necessidade de oferecer a essas pessoas condições reais de conclusão de seus estudos básicos e médios para que possam conseguir um emprego formal e fazer um curso técnico, politécnico ou em nível de bacharelado acadêmico para terem oportunidades melhores. 

Se não houver oportunidade, elas terão muita dificuldade ou até mesmo completa impossibilidade de conquistar um espaço nesse mercado. 

Por outro lado, se houver oportunidade, mas faltar iniciativa, persistência, ambição saudável por parte dessas mesmas pessoas, elas não chegarão a lugar algum. 

Há casos, porém, nos quais as coisas não são tão simples assim. Um morador de rua, mesmo que tenha uma capacitação profissional e esteja de banho tomado e relativamente bem vestido para uma entrevista de emprego não passará se não tiver documentos em dia e residência. Quando lhe perguntarem onde mora, se ele disser "ali embaixo do viaduto tal na avenida tal com a rua tal", esse desabrigado não vai passar nem da primeira fase. Nesses casos, é preciso mais do que apenas vontade de vencer - o que já é raro quando se trata de gente que perdeu tudo há muito tempo e não tem mais esperança. O discurso que chama esse indivíduo de vagabundo é outra forma de ignorância virulenta e violência.

Não somos uma ilha, pois precisamos de uma rede de colaboradores para podermos crescer. Mas também não somos indispensáveis ao funcionamento do mundo. Por isso, não podemos nos dar ao luxo de esperar que o mundo nos carregue no colo. É preciso manter isso em mente. Também é preciso manter em mente que ninguém precisa pisar nos outros para chegar onde deseja - o outro não é pavimento. Eu nunca pisei nem admiti ser pisado por ninguém porque sempre tive em mente que trabalho é, antes de tudo, uma relação de troca e de respeito. Se não for, não vai rolar. E como o mundo é muito grande, ninguém tem que aceitar o chicote para ter acesso ao cocho.

Aqui em casa, por exemplo, os dois trabalham muito, mas a renda familiar está longe de ser grande. Dividimos as despesas mensais e precisamos planejar muito para podermos curtir alguns bons momentos em nosso tempo livre. 

Para cada momento de lazer que a gente curte ou para cada coisa que a gente compra, muita coisa tem que ser deixada para depois. Há divertimentos que muita gente curte todo final de semana (e que não tem nada de errado) que reduzimos e até cortamos totalmente para que pudéssemos fazer o que realmente nos interessa mais. Não dá para ter tudo, mas não precisamos ter tudo para termos o suficiente.

Para se ter alguns pequenos prazeres, será preciso aumentar a renda familiar ou reduzir as despesas que imperceptivelmente vão minando os recursos, afetando até momentos que deveriam ser muito tranquilos, como é o caso das férias.

Andre e eu estivemos em Gramado durante a semana passada. Um dos lugares mais lindos onde almoçamos foi um restaurante todo amadeirado, com lareira acesa, cadeiras de madeira maciça revestidas de peles de carneiro, buffet livre sem qualquer ressalva sobre a quantidade de carne consumida - um luxo! Sabe quanto custou o almoço de cada um de nós nesse lugar fantástico? Meros 26 reais, ou seja, mais barato que um Big Mac com Coca-Cola e fritas, mas incomparavelmente melhor. A pergunta que fica é a seguinte: Será que é preciso gastar muito para se ter qualidade? Não. É preciso ser inteligente e paciente para encontrar o que se deseja pelo preço que se pode pagar, ou simplesmente chegar à conclusão de que não se precisa daquilo e seguir adiante.


Viena Fondue - Gramado-RS


Cito isso como exemplo do que podemos fazer quando planejamos, pesquisamos e nos disciplinamos em termos de gastos financeiros.

É claro que para muitas pessoas, até esse pouco que nos dá tanta alegria ainda é inacessível. E isso é sintoma de vários outros problemas enfrentados por essas pessoas na sociedade. Problemas que podem ser perpassados por restrições baseadas em racismo, homofobia, transfobia, etc.


Lugar de fala ou de falácias?


Antes de tudo, é importante garantir que todos entendam que é preciso ouvir atentamente as pessoas que falam sobre sua identidade e as delícias e dores de ser quem é. Isso, porém, não dá a ninguém o monopólio discursivo sobre o que quer que seja. Tomemos, a título de exemplo, Jean Wyllys e Fernando Holiday. Os dois são gays e são políticos, mas qual dos dois realmente acrescenta algo à comunidade gay e demais comunidades identitárias quando usam seu 'lugar de fala' para discutir assuntos relacionados à comunidade gay? A resposta parece óbvia, mas é possível que nem mesmo aqui estejamos todos de acordo. A pergunta que salta é: Basta ser gay para ter razão no tocante às pautas da comunidade gay?

Isso pode ser aplicado a todos os outros grupos identitários e os indivíduos que se inserem neles.

Infelizmente, muitas das pessoas afetadas por esses preconceitos reproduzem as mesmas discriminações sofridas quando se trata do relacionamento com os outros. A internalização do ódio acaba se traduzindo em motivação para odiar também. Se o indivíduo não trabalhar isso em si mesmo, muitas vezes com a ajuda de outras pessoas, entendendo de onde vem seus sentimentos e procurando erradicá-los, superá-los mesmo, ele ainda será escravo daquilo que combate ou do que reclama.

Além disso, a estratégia de usar o jargão 'lugar de fala' para calar o outro só funciona com nossos aliados, não com nossos verdadeiros oponentes. O resultado é que as pessoas que nos ouvem e defendem se calam e as que nos desprezam e atacam continuam falando. 




Quando alguém diz "o grupo X é muito discriminado, por isso temos que ter paciência com algumas atitudes de quem faz parte do grupo X quando se exacerba", eu penso: 

É verdade que o grupo X é discriminado e é verdade que a pessoa que faz parte dele tem razões para estar revoltada, mas não é pelo ataque ao "grupo Y" ou ao "grupo W" que as injustiças praticadas contra o "grupo X" serão resolvidas ou desfeitas. Pelo contrário, praticar injustiça contra outras pessoas, sejam quais forem suas características identitárias, só aumenta os níveis de injustiça e infelicidade de um modo geral, em vez de reduzir os níveis de violência, injustiça e tristeza. E se o "grupo X" é vítima dessas coisas, estará dando um tiro no próprio pé ao promovê-las, ainda que pareça estar levando a melhor em relação a outros naquele determinado momento.

Existe um maniqueísmo horroroso em andamento. É algo que funciona assim: Se ele é heterossexual, deve ser homofóbico; se é homem, deve ser machista; se é branco, deve ser racista; se gay, deve ser transfóbico ou bifóbico; se não é miserável, deve ter culpa pela miséria alheia. Quem adota esse tipo de pensamento presume que todos são culpados até que se prove o contrário - o que é um contrassenso às noções mais básicas do Direito. Não percebem que o que é preciso fazer, na verdade, é modificar as estruturas sociais que perpetuam injustiças, em vez de apedrejar quem luta árdua e honestamente para manter a cabeça fora d'água e ainda encontra tempo e forças para se solidarizar com pessoas de fora de seu próprio grupo identitário. 

Se você ainda tem um emprego e depende dele, você não é um privilegiado, mas um lutador que ainda consegue se manter em pé. De um dia para o outro, você pode estar desempregado e não conseguir sequer alugar um minúsculo quarto na parte mais pobre do bairro. 



Classe média com CLT e salário baixo?

O que é essa tão propalada classe média que os mais desprovidos consideram rica e que, infelizmente, também pode cair no engano de pensar que é realmente rica? Ora, se você não pode ficar desempregado por um ano sem cair na mais absoluta miséria, você não está longe do cara que mora embaixo da ponte. Ele já pode ter estado exatamente no lugar onde você se encontra hoje, enquanto come uma pizza com seu vale-restaurante num shopping center popular. Amanhã, você pode estar no dele. Tudo o que a gente considera muito seguro é muito mais frágil do que a gente pensa. 

Não é preciso ser muito inteligente para perceber que, graças ao racismo existente na cabeça de muitos e nas estruturas sociais, um negro tem menos chances de conseguir um emprego do que um branco com as mesmas qualificações. Às vezes, o negro tem mais qualificações do que o branco, mas, ainda assim, o empregador o dispensa. Isso é racismo, é claro. Mas o candidato branco, apesar de ter levado vantagem, não favoreceria o negro se desistisse da vaga. Mais ainda: Estaria desempregado depois disso sem causar um só arranhão na estrutura racista que ele mesmo repudia. Não se pode culpar esse candidato branco pela não contratação daquele candidato negro, mas também não se pode cruzar os braços e dizer que é assim mesmo. Esses maniqueísmos é que não resolvem o problema.

Esse caso hipotético tão comum poderia ser ilustrado por outros indivíduos: um homem e uma mulher, um homem cis gay e um homem trans, uma mulher cis lésbica e uma trans. As pessoas cis levam vantagem nesse processo, mas isso não as torna inimigas daquelas que são preteridas. Ambas estão sujeitas às mesmas estruturas e relação de forças, cada qual com suas especificidades. E muitas pessoas cis, só para citar um grupo, estão cientes disso e querem oportunidades iguais, mesmo que isso não as afete diretamente. 

Homens e mulheres gays também ficam em desvantagem diante de homens e mulheres heterossexuais na maioria das vezes.

Agora pense numa pessoa de classe média diante de outras que estão em situação de pobreza extrema. Ao contrário do que pensam alguns que repetem jargões sem reflexão mais séria, esse homem ou mulher de "classe média" não é responsável pela miséria daquele que está desabrigado ou sobrevivendo como catador de latinhas ou de papelão. Pelo contrário, muitas vezes são essas pessoas consideradas 'classe-média' que se solidarizam com os que estão na mais absoluta miséria. É mais fácil ver gente de classe média-baixa socorrendo gente que é vítima de calamidades naturais ou de guerra do que gente de classe realmente alta, mas até mesmo entre os super ricos, existem aqueles que se mobilizam em prol de causas humanitárias, como já vimos muitas vezes entre celebridades e grandes empresários. Nenhum de nós é só vítima ou só culpado pelo que acontece no mundo, mas alguns de nós estamos tirando água da canoa, enquanto outros estão perfurando o casco.

É uma falácia pensar que a pobreza não possa ser erradicada ou que para ser erradicada, é preciso atacar quem tem mais. O que é realmente preciso é criar acesso e garantir que todos possam usufruir dos mesmos.

Muitas vezes, as pessoas sabotam a si mesmas. Os motivos são os mais variados, mas a maioria deles tem a ver com falta de educação. Por exemplo, muitas pessoas não se dão conta de coisas tão simples como os custos para se criar um filho. Muita gente pobre acaba tendo três, quatro, cinco filhos! Alguns muito cedo na vida. 


Não romantize tanto a realidade: isso aqui não dura um ano.
Filho é para o resto da vida.


Duvida que filhos custem uma fortuna? Olhe o quadro a seguir:


Fonte: https://www.mongeralaegon.com.br/blog/dinheiro/artigo/quanto-custa-criar-um-filho


Agora, veja só. Em 2016, nasceram no Brasil 2.790.000 bebês. Para 2018, a estimativa do IBGE aponta que o Brasil vai fechar o ano com 3.003.585. Segura o tchan, amarra o tchan

Filho tem que ser programado e já chegar com ninho garantido. Mesmo assim, nada garante que vai ser fácil. Há muitas variáveis - desde o jogo da genética até o desenvolvimento de uma psiquê saudável em meio a uma sociedade tão doente, especialmente doente de fundamentalismos ignóbeis e mortíferos.


Neuroses de estimação são igualmente destrutivas

E falando nas neuroses que caracterizam as relações sociais, está se tornando cada vez mais comum ouvir pessoas contrapondo figuras como 'gay branco de classe média' à 'travesti preta proletária' (ou vice-versa). O que muitos não percebem é que estão falando de uma abstração. Quem são as pessoas rotuladas dessa maneira? Será que o bem-estar de uma exclui o da outra? O que desejam aqueles ou aquelas que pretendem estabelecer antagonismos entre os indivíduos assim rotulados ou relações de causalidade entre a felicidade de um e as dores do outro, seja qual for o grupo identitário (ou social)?

Será que há especificidades em cada caso? Claro que há. Mas para cada grupo que você nomeia como gay, lésbica, bissexual ou transgênero, existem inúmeras variáveis. Nenhum deles é um bloco monolítico. E um não precisa ser minimizado para que o outro seja respeitado, seja quem for.

A quizumba chega a tal ponto que as pessoas ficam querendo controlar até mesmo com quem o outro vai se relacionar. Lésbicas feministas extremistas recriminam lésbicas que amam mulheres trans, alegando que estas são homens disfarçados que desejam violá-las (como assim, Lombardi?). 





Algumas mulheres transexuais que se identificam como trans heterossexuais nutrem rancor contra homens gays, fazendo questão de se distanciar deles ao máximo, muitas vezes, como sintoma das injúrias que sofreram nas mãos de homofóbicos que as chamavam de "viadinhos", reportando-se a noções de masculinidade nelas por parte de gente que não faz diferença entre gênero e orientação sexual, misturando homofobia e transfobia na prática. 

Alguns homens gays são recriminados por outros gays porque amam homens transexuais. Os gays que os recriminam fazem o mesmo que fazem homofóbicos contra todos eles: Focam na genitália. No caso desses gays, a recriminação é porque um homem trans não tem pênis. O mesmo falocentrismo que leva mulheres lésbicas feministas radicais a rejeitarem mulheres trans não operadas age aqui de modo reverso na cabeça dos gays que recriminam o amor entre um gay cis e um trans.

Bissexuais, considerados por alguns gays, lésbicas e transexuais, os quais se identificam como heterossexuais em seu desejo, são considerados enrustidos, covardes, confusos ou promíscuos - nada mais longe da verdade! Bissexuais são apenas pessoas que podem se apaixonar por uma pessoa de um gênero ou de outro, com pênis ou vagina - o que não significa que não possam amar uma pessoa intensa e fielmente em relacionamentos estáveis e satisfatórios para ele(a) e seu parceiro(a). 

Agora, sabe quem adora esse pandemônio todo? Fundamentalistas religiosos, gente ultraconservadora de direita e/ou de esquerda, e pessoas que juram que não estão associadas aos tais, mas que reproduzem os mesmos discursos daqueles e que são incapazes de ouvir os que as alertam sobre esses equívocos.

Mas se engana quem pensa que é todo mundo igual no que diz respeito à ignorância, ao ódio ou à indiferença. A solidariedade entre pessoas de todos esses grupos identitários é visível sob diversas formas. Mulheres lésbicas e homens gays cisgêneros que se solidarizam com mulheres e homens trans, e vice-versa. Pessoas bissexuais cisgêneras ou transgêneras que são abraçadas por mulheres e homens homossexuais cis ou trans. E a força que essa solidariedade produz é muito maior do que muitos imaginam.

Mas é importante que não confundamos amizade, simpatia, empatia e cooperação com a obrigação de ter que dizer 'amém' para tudo que o outro faz por palavras ou atos. Ser amigo, aliado ou simpatizante não dispensa o senso crítico, a coragem e a gentileza de dizer aos amigos/amigas que estão errados quando se equivocarem.

Comentários

  1. Adorei o texto. Acredito que somente a solidariedade poderá potencializar o verdadeiro sentido de empoderamento. Existe no momento a forma inapropriada do uso dos termos sobre classe, sexualidade, gênero e raça no senso comum. Muitas pessoas têm utilizado essas instâncias como se cada uma delas fosse uma caixa isolada da outra. Usuam para se protegerem das violências que a sociedade normativa impõe como se cada um desses terrenos fossem nulos ao outro. Esses instâncias se sobrepõem como efeitos em movimento. Um gay branco rico pode não vai sofrer violação de direitos igual a um gay negro pobre, porque isto está na ordem do direito; e o direito se constitui na ordem social- sociedade. Mas os mesmos podem estar sofrendo violência, de ordem diferente, muito parecidas por serem gays; porque a violência está na ordem da cultura. Existem grandes diferenças entre violação e violência que devem ser refletidas sob a questão do preconceito e discriminação. E tenho visto que o discurso que se tem hoje sobre culpar alguém por ser gay branco que tem mais privilégios que o gay negro me parece, como vc disse, maniqueismo sim, porque não se analisa a situação em si, mas universalmente no sentido de ambas palavras, a violação e a violência se tornam coisas iguais e de mesmo nível. Acho que sofremos preconceito de ambos lados da moeda e a reprodução dela se faz como algo situacional na tentativa de se diferenciar, ou seja na tentativa de tentar classificar quem é mais ou menos dissidente. Estamos todas e todos no mesmo barco das desigualdades sociais e quando esse barco furar, não sobrará ninguém. Um bom exemplo está na história. Na época antes da instalação do nazismo, Hitler era a favor da homossexualidade. Quando ganhou para o III reich, ele considerou todos os seus aliado LGBT. Mas muitos LGBT alemães dessa época, que se diga que a sociedade lgbt alemã era a nais avançada, se colocavam diferenciados um dos outros pelo sentido de classe, pois haviam aquelas e aqueles de classe alta que discriminacam as de classe baixa. Porém, meses depois da entreda de Hitler ao poder, ele mudou de ideia conforme o regimento de seu partido que aderia fortemente a lei da moral e dos bons costumes. O que aconteceu? Ele mandou matar todos os seus homens de confiança homossexuais. E mandou para os campos de concentração outros tantos. Foi o grande massacre, chamado "noite das facas longas". Ou seja, enquanto estivermos nos diferenciando pelos signos que nos diferenciam estaremos nos vulnerabilizando cada vez mais para o sistema heteronormativo de sempre. Gostei muito do texto. Podemos depois papear muito sobre este texto. Abraços

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  2. Excelenes pontuações, Alexandre Nabor. Obrigado pela leitura atenciosa e pela contribuição com esse maravilhoso comentário.

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