
Blog do Chico
Livre pensar, direitos humanos e transformação social
sexta-feira, 1 de abril de 2011
JAIR BOLSONARO É PORTA-VOZ DE MUITOS BRASILEIROS
O silêncio pode em algumas situações significar perigosa conivência. Por essa razão, não penso ser desejável e adequado simplesmente ignorar o episódio apenas com intuito de não jogar mais holofotes sobre alguém que pretende se alimentar dessas luzes da audiência. Ao contrário: há algumas reflexões importantíssimas que merecem ser feitas, a partir das lamentáveis e criminosas declarações feitas pelo capitão-deputado federal Jair Bolsonaro (PP/RJ) ao programa CQC, exibido pela TV Bandeirantes na segunda-feira, dia 28 de março.
Ao responder a questionamento da cantora Preta Gil sobre a possibilidade de um filho dele namorar uma negra e vociferar, em horário nobre, que "não vou discutir promiscuidade com quem quer que seja. Eu não corro esse risco. Meus filhos foram muito bem educados e não viveram em ambiente como, lamentavelmente, é o teu", Bolsonaro explicitou - e não pela primeira vez - duas ordens de preconceitos, simultaneamente: homofobia e racismo. Ardiloso, não demorou a avisar que "não havia entendido a pergunta" e tentou desculpar-se com o movimento negro, intensificando no entanto as investidas intolerantes contra homossexuais.
A estratégia é pensada: racismo, no Brasil, é crime inafiançável e tipificado pela Lei 7716, de 5 de janeiro de 1989. A pena pode chegar a cinco anos de prisão. A homofobia, ao contrário, ainda não é juridicamente considerada um crime. Daí a necessidade premente de aumentar a pressão sobre o Senado Federal em favor da aprovação do Projeto de Lei 122/2006, que criminaliza as práticas homofóbicas e as iguala ao crime de racismo.
No início do ano, por iniciativa da senadora Marta Suplicy (PT/SP), a proposta foi desarquivada e deverá ser analisada pela comissão de Direitos Humanos da casa, antes de chegar ao plenário. Aprová-la representaria, na avaliação do Movimento Não à Homofobia, "colocar o Brasil na vanguarda da América Latina, assim como o Caribe, como um país que preza pela plenitude dos direitos de todos seus cidadãos, rumo a uma sociedade que respeite a diversidade e promova a paz".
Liberdade de expressão???
Diante das reações imediatas e intensas dos movimentos sociais e dos setores progressistas da sociedade, e mais uma vez ardiloso, Bolsonaro apelou para o desgastado argumento do "estou sendo censurado, quero ter garantido meu direito à liberdade de expressão". Falso. O capitão-deputado mistura, no dito popular, alhos com bugalhos e procura confundir para tentar convencer. No limite, trocando em miúdos, o que ele faz é reivindicar o direito de ter preconceitos e de manifestá-los pública e impunemente. Estapafúrdio, um contra-senso. Uma atrocidade e aberração.
Porque certamente a Constituição Federal estabelece, em seu capítulo primeiro, artigo quinto, inciso nono que "é livre a expressão de atividade intelectual, artística, científica e de comunicação, independente de censura ou licença". No entanto, como bem lembra o advogado Rogério Faria Tavares em artigo publicado pelo Observatório da Imprensa, "o cidadão que, no ato de expressar-se, violar a integridade de qualquer outro membro do referido elenco de direitos, não está resguardado por qualquer garantia constitucional: incorre em flagrante desrespeito à Carta de 88 e deve sofrer as consequências correspondentes". O especialista completa: "quando o ato de expressar-se se dá fora do contexto jurídico apropriado, sua qualificação é outra: "abuso," "infração" ou "crime".
Direitos estão associados a deveres e a responsabilidades. A liberdade de expressão, pilar fundamental e insubstituível da democracia, uma das razões de ser do regime democrático, não é absoluta e deve estar conectada harmonicamente a outros preceitos constitucionais também importantíssimos para o funcionamento do Estado de Direito. A prerrogativa de dizer não pode atentar contra a dignidade de outro ser humano. Para construir uma analogia e guardadas as diferenças e devidas proporções: admitir que, em nome da liberdade de expressão, Bolsonaro pode vir a público para manifestar intolerâncias contra negros e homossexuais seria como aceitar que Hitler estava correto ao professar em seus discursos agressões contra os judeus, ciganos, imigrantes, mulheres, portadores de deficiência física, negros e homossexuais... Pois é...
Estimular o debate????
Não procede também a "justificativa" anunciada pelo CQC para convidar o capitão-deputado para a entrevista: o programa alegou que, por ser uma figura polêmica e sem papas na língua, Bolsonaro ajudaria a enfrentar tabus e a incentivar o debate. O "confundir para explicar" se manifesta novamente. Não há dúvidas que, em democracias, pluralidade e contraditório precisam ser fomentados, mas dentro dos marcos constitucionais e civilizatórios, da legítima e desejável divergência racionalizada, sem que representem apologia da intolerância, do preconceito e, no limite, do crime. É isso: debater significa apresentar ideias e argumentos - não incitar ou cometer crimes.
Lembra o jornalista Eduardo Guimarães, no Blog da Cidadania, que "toda vez em que você critica pessoas publicamente por suas características intrínsecas, tais como cor da pele, origem geográfica, crença religiosa ou comportamento sexual, entre outros, está, sim, discriminando, pondo à parte e condenando pessoas por uma faceta delas que não têm como mudar".
E eu recordo cá com meus botões que, em 1992, ao apoiar a decisão da escola Ursa Maior, na capital paulista, de recusar a matrícula da aluna Sheila Carolina de Oliveira, 5 anos, por ser portadora do vírus da Aids, o então presidente do Sindicato dos Estabelecimentos de Ensino do Estado de São Paulo (SEMESP), José Aurélio de Camargo, afirmou sem pudores que "a criança aidética já nasce com atestado de óbito assinado e portanto não precisa estudar". Abjeto, de embrulhar o estômago. Recuou em seguida, lamentando "o mal-entendido e dizendo que apenas desejava incentivar o debate sobre a doença". Cinismo leviano levado às últimas consequências. A propósito: o argumento do CQC ao explicar o espaço oferecido a Bolsonaro é de natureza bastante semelhante, não?
É preciso considerar ainda mais uma confusão deliberadamente incentivada pelo programa. Não raro, os professores nos deparamos em sala de aula com falas do tipo "você viu a reportagem feita pelo CQC? Ficou boa aquela entrevista feita pelo CQC, não?". Ora, entrevista e reportagem são conceitos e técnicas pertencentes ao campo do jornalismo (que faz pensar e incentiva reflexões); o CQC é um programa de entretenimento (que espetaculariza, provoca sensações e cutuca os instintos mais primitivos). Espertamente, o programa movimenta-se para se apropriar da chancela de credibilidade e reconhecimento sociais de que o jornalismo ainda dispõe. Faz humor (e nem vou entrar no mérito do tipo e da qualidade do humor que faz), mas alega informar. Mais uma vez, é preciso estar atento e saber separar o joio do trigo.
Ventos do fascismo
Não menos importante: Jair Bolsonaro cumpre atualmente o seu sexto mandato como deputado federal e recebeu em 2010, na última disputa, 120.646 votos, alcançando o posto de décimo-primeiro mais votado no Rio de Janeiro. "Logo, tem adeptos fiéis. Conta com financiadores perseverantes", reforça Saul Leblon, na Agência Carta Maior. Sugiro exercício bem simples: acompanhar cartas sobre o assunto que têm sido publicadas pelos jornais, nas seções dos leitores. Boa parte delas tece elogios à postura de Bolsonaro. Cuidado: o capitão-deputado está longe de ser uma caricatura; ao contrário, publiciza, reverbera e amplifica aquilo que muita gente no Brasil infelizmente pensa e defende: extermínio de pobres, perseguição às minorias, pena de morte, tortura, racismo, homofobia, ditadura...
Bolsonaro funciona como porta-voz de setores representativos e significativos da sociedade brasileira (só para lembrar, ao abrir a caixa de Pandora na eleição presidencial de 2010, José Serra conquistou cerca de 44% dos votos no segundo turno). O comportamento do capitão-deputado e as falas dele - e o respaldo social que recebem - nos levam a duas importantes reflexões finais. Primeiro: conseguimos, os setores progressistas, vencer a disputa presidencial nas três últimas eleições - mas estamos certamente falhando na construção de hegemonia de valores e princípios. Segundo (e como consequência da anterior): os ventos do fascismo insistem em soprar despudoradamente por aqui.
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