Por Sergio Viula
Originalmente publicado no AASA
Com vistas a criar e manter uma identidade nacional, os judeus recorreram ao conceito de raça eleita. Entretanto, a simples ideia de que Jeová teria escolhido Abraão, seu filho Isaque e seu neto Jacó para darem origem a um povo separado – significado primordial da palavra santo – já colocava o povo judeu em contraposição a todo e qualquer povo que não fosse judeu, obviamente.
Porque és povo santo ao Senhor teu Deus; e o Senhor te escolheu, de todos os povos que há sobre a face da terra, para lhe seres o seu próprio povo.Deuteronômio 14:2 O desprezo pelo não judeu, ou seja, o gentio, aquele que é de outras gentes da terra, fica claro quando Jeová proíbe que os judeus comam animal que morra espontaneamente, mas permite que os judeus o sirvam como alimento ao estrangeiro ou o vendam a este:
Não comereis nenhum animal morto; ao estrangeiro, que está dentro das tuas portas, o darás a comer, ou o venderás ao estranho, porquanto és povo santo ao Senhor teu Deus. (…) Deuteronômio 14:21 A preocupação dos escritores bíblicos era sempre a de que os judeus agissem de modo diferente, não necessariamente melhor, que os povos ao seu redor. De fato, muitas leis judaicas eram extremamente cruéis e tendenciosas. Mas, Moisés e a classe sacerdotal fazia questão que seus súditos fossem fiéis aos estatutos de Jeová, afinal essa era a garantia de que suas despensas estariam sempre cheias e prole alimentada, uma vez que eles comiam das oferendas feitas no tabernáculo e, mais adiante, no templo de Salomão. O trabalho dos sacerdotes e seus assistentes era intermediar os sacrifícios. E no caso de ofertas pacíficas, ou seja, que não fossem holocaustos, eles ganhavam uma parte. O grifo é meu:
Falou mais o Senhor a Moisés, dizendo: Fala aos filhos de Israel, dizendo: Quem oferecer ao Senhor o seu sacrifício pacífico, trará a sua oferta ao Senhor do seu sacrifício pacífico.
As suas próprias mãos trarão as ofertas queimadas do Senhor; a gordura do peito com o peito trará para movê-lo por oferta movida perante o Senhor. E o sacerdote queimará a gordura sobre o altar,porém o peito será de Arão e de seus filhos. Levítico 7:28-31 Sobre a exigência de que os judeus mantivessem hábitos e costumes diferentes dos povos ao redor, Moisés diz o seguinte:
Não fareis segundo as obras da terra do Egito, em que habitastes, nem fareis segundo as obras da terra de Canaã, para a qual vos levo, nem andareis nos seus estatutos. Levítico 18:3 Israel, nome que um anjo supostamente teria dado a Jacó – afinal, era melhor ser chamado de “aquele que luta com Deus e prevalece” (Israel) do que “suplantador”, “usurpador” (Jacó) – veio a ser o nome do povo exclusivo de Deus; exclusividade da qual só os judeus se gabavam. Agora, imagine um povo supostamente santo, ou seja, separado dos demais para a glória de Jeová, cujo nome, cada vez que fosse mencionado, trouxesse à mente a ideia de quem tenta “furar fila”, “passar à frente”, “tomar o lugar de outro”. Não admira que tenham inventado essa história de Jacó lutando com anjo.
Então disse: Não te chamarás mais Jacó, mas Israel; pois como príncipe lutaste com Deus e com os homens, e prevaleceste. Gênesis 32:28 Foi essa mentalidade separatista, um verdadeiro apartheidinternacional e inter-racial, de outros povos que gerou uma moral exterminadora das diferenças na teoria e na práxis judaica. Até, porque Israel não tinha território. As terras que eles estavam para invadir e usurpar (ah, Jacó!) eram de outros povos, instalados ali havia séculos. Vejamos o caso emblemático dos midianitas. Vejam que nenhum daqueles homens sobrou:
E pelejaram contra os midianitas, como o Senhor ordenara a Moisés; e mataram a todos os homens. Números 31:7 Só teve um problema: Os guerreiros de Israel pouparam as mulheres e as crianças. Moisés e o sacerdote Eleazar reprovaram esse ato de “misericórdia”, que não era tão bondoso assim. Na verdade, o interesse era de ordem sexual e escravagista. Mas, de novo, o temor de Moisés e do sacerdote Eleazar era que as mulheres ensinassem os filhos e as filhas de Israel a viverem como os filhos e as filhas de Midiã. Então, a ordem de Moisés foi clara:
Agora, pois, matai todo o homem entre as crianças, e matai toda a mulher que conheceu algum homem, deitando-se com ele. Porém, todas as meninas que não conheceram algum homem, deitando-se com ele, deixai-as viver para vós. Números 31:17-18 Esse “deixai-as viver para vós” significava literalmente que os homens de Israel poderiam desvirginar as meninas midianitas. Será que isso parece humanista o suficiente para você? Bem, não deveria.
O mais irônico é que o próprio Moisés, quando fugia do Egito, casou-se com Zípora, uma mulher midianita, filha de um sacerdote de Midiã chamado Reuel. Nem isso demoveria o sanguinário Moisés de praticar tanta violência contra o povo de sua própria esposa e de seu sogro, a quem ele devia a vida, pois foi ele quem o acolhera no meio do deserto quando fugia do Egito depois de matar um egípcio que maltratava um hebreu. Ah, e só para constar, seu primeiro filho, Gérson, também nasceu na terra de Midiã. (Êxodo 2:1-25)
Esse ato de poupar as virgens para uso próprio colaborou para fortalecer a ideia de que virgindade é símbolo de pureza. Se elas são consideradas mais puras porque são virgens, então, a abstinência sexual é uma forma de santidade. Não demora muito e logo se deriva daí que o ato sexual deve ser praticado dentro de limites muito rígidos e claramente estabelecidos pela lei mosaica. Mas outros aspectos da vida dos judeus não deixavam de ser afetados pela ascese javista: a dieta, a indumentária, a higiene pessoal, a quem a mãe deu à luz – menino ou menina. Sim, porque até isso entrava na lista de impurezas.
Aqui está o que diz Levítico 12:2-8. As partes em colchetes são comentários meus. Fala aos filhos de Israel, dizendo: Se uma mulher conceber e der à luz um menino, será imunda sete dias, assim como nos dias da separação da sua enfermidade, será imunda.
E no dia oitavo se circuncidará ao menino a carne do seu prepúcio.
[Entenda-se por “dias da separação da sua enfermidade” os dias do seu ciclo menstrual. Vejam que a menstruação era considerada uma terrível impureza e o parto também. Maria fez cumpriu todas essas exigências quando teve Jesus. Era ela imunda? A Igreja Católica diz que ela era virgem antes do parto, permanecendo virgem depois dele – imaculada, ou seja, sem mancha, impureza ou pecado. Contudo, ela seguiu esse procedimento com relação a si mesma e ao menino Jesus, ispis letteris. E agora, José?]
Depois ficará ela trinta e três dias no sangue da sua purificação; nenhuma coisa santa tocará e não entrará no santuário até que se cumpram os dias da sua purificação.
[Mulher em resguardo, assim como a menstruada, não participava de culto, nada de missa, nada de igreja. Você conhece alguma que siga isso hoje? Obviamente, não. Quando ficam em casa, fazem-no por conveniência, não por ascese.]
Mas, se der à luz uma menina será imunda duas semanas, como na sua separação; depois ficará sessenta e seis dias no sangue da sua purificação.
[Ou seja, se a infeliz da parturiente tivesse um filho macho, ficava imunda metade do tempo: uma semana. Mas se tivesse uma fêmea, ficava imunda por duas semanas. As meninas já nasciam rotuladas como sendo um fardo maior que os meninos.]
E, quando forem cumpridos os dias da sua purificação por filho ou por filha, trará um cordeiro de um ano por holocausto, e um pombinho ou uma rola para expiação do pecado, diante da porta da tenda da congregação, ao sacerdote.
[A rola é o pássaro, hein, gente! Não tem nada a ver com a rola do marido. Piadinhas à parte, esses animais eram sacrificados de modo muito semelhante aos costumes de vários povos ao redor, inclusive os africanos que sacrificam aos Orixás. Nisso, Jeová não era tão diferente dos demais Deuses, mas a oferta tinha que ser feita no tabernáculo – em qualquer outro lugar seria abominação – e realizada por um sacerdote da família de Arão, irmão de Moisés, de acordo com as prescrições para esses holocaustos no Levítico. No final das contas, muito furdunço para nada!]
O qual o oferecerá perante o Senhor, e por ela fará propiciação; e será limpa do fluxo do seu sangue; esta é a lei da que der à luz menino ou menina.
[A mulher só se tornava limpa de novo depois desse sacrifício de sangue. Cada vez que uma judia paria, vários animais morriam. O que tem o Flu com as valsas? kkk]
Mas, se em sua mão não houver recursos para um cordeiro, então tomará duas rolas, ou dois pombinhos, um para o holocausto e outro para a propiciação do pecado; assim o sacerdote por ela fará expiação, e será limpa.
[Como Maria e José eram pobres, foi exatamente essa oferta que eles fizeram, como se vê em Lucas 2:21-24: “E, quando os oito dias foram cumpridos, para circuncidar o menino, foi-lhe dado o nome de Jesus, que pelo anjo lhe fora posto antes de ser concebido. E, cumprindo-se os dias da purificação dela, segundo a lei de Moisés, o levaram a Jerusalém, para o apresentarem ao Senhor (Segundo o que está escrito na lei do Senhor: Todo o macho primogênito será consagrado ao Senhor); e para darem a oferta segundo o disposto na lei do Senhor: Um par de rolas ou dois pombinhos.” ]
Na tentativa de separar Israel dos outros povos e seus costumes, Moisés chamou de abominação coisas tão díspares quanto comida e sexo, principalmente porque os costumes desses povos estavam geralmente associados ao culto a outros Deuses – e cultuar outros Deuses significava prestar obediência a outros sacerdotes, videntes, oráculos que não os da tribo de Levi, que não por coincidência era justamente a tribo de Moisés, Arão e Miriã – todos filhos de Joquebede, como dizem os livros de Êxodo 6:26 e de Números: E o nome da mulher de Anrão era Joquebede, filha de Levi, a qual nasceu a Levi no Egito; e de Anrão ela teve Arão, e Moisés, e Miriã, irmã deles.Números 26:59
Vejamos alguns exemplos de abominação segundo a lei mosaica: Todo o inseto que voa, que anda sobre quatro pés, será para vós uma abominação. Levítico 11:20 [Mas, espere um momento: não existem insetos de quatro patas. Moisés precisava ter prestado mais atenção às aulas de biologia. Pior que ele repetiu isso três versículos adiante, em Levítico 11:23] Todo o [peixe] que não tem barbatanas ou escamas, nas águas, será para vós abominação. Levítico 11:12 [Filé de cação é abominação, hein, galera!]
Mas todo o que não tem barbatanas, nem escamas, nos mares e nos rios, todo o réptil das águas, e todo o ser vivente que há nas águas, estes serão para vós abominação. Levítico 11:10 [Casquinha de siri, risoto de camarão, moqueca de arraia, entre outras iguarias deliciosas da culinária brasileira, são abominações. Povo capixaba, baiano, carioca, cearense está todo perdido. Amazonense, paraense e outros povos que vivem perto de grandes rios e no pantanal estão lascados, porque o que eles já comeram de peixe sem escama na vida não está no gibi –tudo abominação!]
Também todo o réptil, que se arrasta sobre a terra, será abominação; não se comerá. Levítico 11:41 [Quem já comeu cobra está roubado.]
Não sacrificarás ao SENHOR teu Deus, boi ou gado miúdo em que haja defeito ou alguma coisa má; pois abominação é ao SENHOR teu Deus.Deuteronômio 17:1 [Boi manco, bode cego, só para citar dois exemplos, eram abominação, mas não foi Deus quem os fez assim? Vai entender…]
As imagens de escultura de seus deuses queimarás a fogo; a prata e o ouro que estão sobre elas não cobiçarás, nem os tomarás para ti, para que não te enlaces neles; pois abominação é ao Senhor teu Deus.Deuteronômio 7:25 [Ah, os bons católicos espanhóis que se apoderaram do ouro, da prata e das pedras preciosas que compunham as esculturas de deuses astecas, maias e incas! Eles não imaginavam que até esses metais e pedras preciosas eram abominação. E tem muito desse ouro nas próprias igrejas da Santa Madre, inclusive no Vaticano.]
Quando também um homem se deitar com outro homem, como com mulher, ambos fizeram abominação; certamente morrerão; o seu sangue será sobre eles. Levítico 20:13 [Ah, observem que a palavra abominação que os crentes de hoje tanto gostam de atribuir às relações homossexuais era a mesma usada se referir ao camarão, ao siri e à arraia? Detalhe: Vejam que não há menção às mulheres que se deitam com outras mulheres como se fossem homens. A questão primordial aqui era a homoafetividade (termo que eles desconheciam completamente). A questão era de outra ordem: a preocupação era com o “desperdício” de sêmen. Sobre isso, recomendo a leitura de uma post meu no Blog Fora do Armário.] Não trarás o salário da prostituta nem preço de um sodomita à casa do Senhor teu Deus por qualquer voto; porque ambos são igualmente abominação ao Senhor teu Deus. Deuteronômio 23:18 [Aqui a prostituta e o sodomita são postos juntos, porque a única noção que os judeus tinham das relações entre homens era a da prostituição motivada por interesses econômicos ou prostituição ritual, inclusive masculina, durante os cultos aos Deuses da fertilidade. De novo, Jeová não admite concorrentes.]
Nem te deitarás com um animal, para te contaminares com ele; nem a mulher se porá perante um animal, para ajuntar-se com ele; confusãoé. Levítico 18:23 [Auto láááá! A palavra para o sexo com animais é simplesmente confusão. O quêêêê??? Vejam o meu grifo lá. Quer dizer que oferecer um bezerro manco é abominação, mas trepar com ele é só confusão?? E tem gente que leva a sério essa joça?]
Bem, voltando à premissa básica desse artigo, tudo o que Israel fez para se diferenciar de outros povos poderia ser considerado hoje como tendo sido motivado por xenofobia. Não foi mero etnocentrismo, porque não se trata apenas de julgar outras culturas a partir da sua, o que já é suficientemente problemático, mas de exterminar todo modo de viver que não se encaixe na paranoia mosaica.
O cristianismo e o islamismo, crias não desejadas do judaísmo, têm seguido essa mesma linha no que diz respeito à sexualidade, especialmente à homossexualidade. Felizmente, percebendo a insensatez das interpretações literais desses textos, com aplicações diretas sobre os direitos civis de lésbicas, gays, bissexuais e transgêneros (LGBT), muitos rabinos têm tomado uma posição pró-casamento igualitário. Transcrevo abaixo um texto que eu considero muito interessante para essa discussão. O artigo é de autoria de Ivan Paulo Salgado sobre isso, postado no site deconchinha: A ação menos controversa e mais comum tomada pelos reconstrucionistas, conservadores, e os reformistas é apoiar a igualdade civil para gays e lésbicas. O CCAR, Conselho Rabínico Reformista, a partir 1977, passou a descriminalizar o sexo homossexual e acabou com toda a discriminação baseada na orientação sexual.
Mas como contornar a proibição aparentemente inequívoca bíblica contra a homossexualidade? Muitos que procuram estabelecer plenos direitos religiosos para gays e lésbicas apontam a natureza involuntária da homossexualidade. Os halakhic (legalistas) acreditam que como a homossexualidade se refere a alguém que, embora ordenado a fazer algo, realmente não consiga obedecer. Como no judaísmo, só se pode responsabilizar uma pessoa quanto a suas obrigações religiosas se ela pode livremente optar por cumprir. Assim, algumas autoridades judaicas argumentam que a homossexualidade não é escolhida, assim não pode ser proibida.
Na verdade, o movimento da Reforma do Judaísmo não condena o sexo homossexual, e as pessoas abertamente homossexuais são elegíveis para admissão em escolas rabínicas. Além disso, o movimento de Reforma aprova cerimônias rabínicas de casamentos entre pessoas do mesmo sexo. No entanto, eles não consideram o casamento homossexual como equivalente ao casamento heterossexual. Considerando que o casamento heterossexual é referido como Kiddushin (palavra hebraica para santo). Mesmo assim há rabinos que aplicam este termo para relações homossexuais.
Daniel Siegel, o diretor da escola rabínica ALEPH argumenta que Aliança para a Renovação Judaica, aprovou o casamento homossexual especificamente porque que a santidade não deve ser limitada apenas a certas pessoas e a determinadas relações. No Judaísmo reconstrucionista, o casamento homossexual é considerado um valor religioso. Usando esse princípio como ponto de partida, Rebecca Alpert argumentou que a recusa do governo israelense em reconhecer o casamento homossexual viola as liberdades religiosas.
Alguns rabinos do movimento conservador também se apoiam no conceito de que um indivíduo não tem nenhuma escolha real quanto ao sexo homossexual. Em dezembro de 2006, Comitê do Movimento Conservador aprovou duas teshuvot (posições) contraditórias sobre a homossexualidade. Rabinos, sinagogas e outras instituições conservadoras podem não permitir cerimônias de casamento homossexuais e não contratar rabinos ou cantores abertamente gays ou lésbicas. Por outro lado, podem simplesmente optar por fazê-lo. Ambas as posições são consideradas válidas.
Nos últimos anos, tem havido uma maior consciência da presença de gays e lésbicas nas tradicionais comunidades judaicas. Numerosas organizações e grupos de apoio existem para gays que estão interessados em manter um estilo de vida tradicional judaica. Steven Greenberg, rabino ortodoxo, educador e gay escreve e ministra palestras sobre as possibilidades de gays e lésbicas na comunidade ortodoxa. Finalmente, o documentário “Trembling Before G-d” (Tremendo perante Deus), sobre gays judeus ortodoxos, teve um impacto significativo no aumento da consciência sobre a homossexualidade no mundo ortodoxo Judeu.
Gostaria de ressaltar, antes de encerrar, que este movimento pró-revisão e pró-inclusão também está se dando nos dois outros monoteísmos: o cristianismo e o islamismo. Basta, a título de exemplificação, citar a Igreja Anglicana na Inglaterra, a Igreja da Escócia (de linha presbiteriana) e a Igreja Presbiteriana dos EUA. Mas há outras, especialmente aquelas criadas com uma visão inclusiva desde o final da década de 60, como é o caso daMetropolitan Community Church, fundada por Troy Perry.
Isso acontece porque nenhuma dessas religiões é um bloco monolítico. Existem judeus, cristãos e muçulmanos progressistas e secularizados o suficiente para quererem reformas baseadas em princípios humanistas. Já os literalistas não são sempre tão literalistas assim. Eles ignoram tudo o que consideram conveniente ignorar. Um exemplo interessante é a proibição mosaica de que pessoas com necessidades especiais sejam sacerdotes, pastores ou o que o valha. O legislador foi muito claro em Levítico 21:17-20: Fala a Arão, dizendo: Ninguém da tua descendência, nas suas gerações, em que houver algum defeito, se chegará a oferecer o pão do seu Deus.
[Oferecer o pão do seu Deus = exercer o sacerdócio no tabernáculo.]
Pois nenhum homem em quem houver alguma deformidade se chegará; como homem cego, ou coxo, ou de nariz chato, ou de membros demasiadamente compridos,
[Homens com necessidades especiais não podem ser sacerdotes, segundo a lei mosaica. Mas, um momento… nariz chato é defeito? Quem é padre ou pastor africano ou afrodescendente, dá um glória a Deus aí! E o que a mulherada está fazendo no pastorado e no sacerdócio de algumas igrejas protestantes? Moisés jamais autorizou mulheres no ministério sacerdotal. Eita, religião machista do cacete, literalmente.]
Ou homem que tiver quebrado o pé, ou a mão quebrada, ou corcunda, ou anão, ou que tiver defeito no olho, ou sarna, ou impigem, ou que tiver testículo mutilado.
[Testículo??? O que isso tem a ver com o exercício do sacerdócio? Pastor com vitiligo também está perdido, porque isso era visto como defeito impeditivo. Ué, anão não pode ser sacerdote ou pastor? Outra coisa, eu conheço pastor corcunda numa igreja neopentecostal que eu frequentei quando era novo convertido. E agora?]
A desculpa que eles usam quando alguém cita essas passagens absurdas é que isso fazia parte da velha aliança. Segundo eles, o sacrifício de Cristo – veja a necessidade de sempre se matar alguém para obter o favor divino, e mesmo que Cristo tenha sido o último, lá está a Eucaristia para renovar o horror da crucificação a cada missa ou culto – aboliu tudo isso ou quase tudo, porque quando se trata de relações sexuais entre pessoas do mesmo sexo, eles querem manter o veto e expandi-lo para as lésbicas que nem sequer são citadas ali. Além disso, os conceitos contemporâneos de homossexualidade, direitos civis, casamento igualitário e famílias homoparentais são coisas com as quais Moisés nem sonhava, e que pertencem a uma moral e a uma ética que Moisés seria incapaz de conceber.
Todavia, seus sucessores tentam tornar tudo isso menos estúpido num mundo muito mais esclarecido do que aquele em que escravos supersticiosos passaram a invasores inflados pela crença de que eram o povo de propriedade exclusiva de Deus que podia matar, saquear, escravizar e fazer muitas outras coisasnada abomináveis (#sóquenão), desde que fosse para a maior glória de Jeová e para o fortalecimento do único povo portador de sua revelação – os próprios judeus.
De fato, há muita coisa a ser resgatada nesse passado (não tão distante) horripilante e cruel do judaísmo e de seus dois robustos filhotes, o cristianismo e o islamismo, mas eu prefiro deixar os mortos enterrarem seus próprios mortos, porque vive mais leve quem carrega menos peso. E religião, em última análise, é peso morto. Há, contudo, pessoas LGBT que encontram caminhos religiosos não castradores da sexodiversidade ou das identidades transgêneras. Algumas têm trabalhado duro para mudar a cara feia dos três grandes monoteísmos, bem como de religiões animistas ou politeístas que porventura tenham bebido em fontes homofóbicas e transfóbicas ao longo dos séculos.
Na verdade, tudo isso faz parte do direito humano à liberdade de crença e de agremiação. Felizmente, porém, muitas pessoas LGBT cresceram como ateias e assim permanecem, havendo também aquelas que vieram a ser ateias a partir de sua própria experiência religiosa submetida ao crivo incontornável do ceticismo. Pessoalmente, figuro nesse último segmento, valendo dizer que qualquer condescendência minha para com a ideia de que Deus ou Deuses disseram isso ou aquilo se dá apenas para o bem do argumento que norteia esse artigo. Penso que falar com Deus não faz de ninguém um doido, mas se ele responder, procure um psiquiatra.
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