Sexo, Gênero e Identidade: Uma Perspectiva Científica
Sexo, Gênero e Identidade: Uma Perspectiva Científica
Definições de Mulher, Homem e Pessoa Não-Binária
Por Sergio Viula

Uma mulher é uma pessoa cuja identidade de gênero se alinha com as características sociais, comportamentais, culturais e/ou físicas que ela associa à feminilidade.
Semelhantemente, um homem é alguém cuja identidade de gênero se alinha com as características que ele associa à masculinidade.
Uma pessoa não-binária é aquela cuja identidade de gênero não se alinha nem com sua percepção de masculinidade, nem com sua percepção de feminilidade.
O uso de “e/ou” indica que a identidade de gênero pode se alinhar com diferentes características simultaneamente, não sendo necessário que todas se apliquem ao mesmo tempo. Assim, mesmo que uma mulher apresente comportamentos ou aparência tradicionalmente masculinos, ela continua sendo uma mulher se essa for sua identidade de gênero; e um homem, mesmo com comportamentos ou aparência tradicionalmente considerados femininos, continua sendo homem se essa for sua identidade de gênero.

Em outras palavras, mulheres "masculinizadas" e homens "efeminados" não são necessariamente pessoas trans, visto que a transgeneridade refere-se à condição de uma pessoa cuja identidade de gênero difere do sexo que lhe foi atribuído no nascimento — o que não é o caso de alguém simplesmente estereotipado como "mulher masculinizada" ou "homem efeminado".
Sexo e Gênero: Distinções Fundamentais
Sexo refere-se às características biológicas e anatômicas associadas ao masculino ou feminino, incluindo cromossomos, genitália, gônadas e composição hormonal.
Gênero, por outro lado, é uma construção social que envolve papéis, comportamentos, normas culturais e identidades atribuídas a cada sexo.

Tentar definir "homem" ou "mulher" exclusivamente com base em características biológicas ignora a complexidade da identidade de gênero e a diversidade humana. Por isso, conceitos como "macho" e "fêmea" não equivalem a "homem" e "mulher" do ponto de vista da identidade.
Em outras palavras, "homem" e "mulher" são categorias construídas socialmente, que dialogam com fatores culturais, comportamentais e psicológicos, enquanto "macho" e "fêmea" se referem ao sexo biológico, baseado em critérios fisiológicos e reprodutivos. Portanto, uma pessoa pode ter sexo biológico masculino (macho) e ainda se identificar como mulher, ou ter sexo biológico feminino (fêmea) e se identificar como homem.
Sexo Biológico: Uma Realidade Multivariada
Sexo é tipicamente categorizado como binário, mas na prática é multivariado. Nenhum marcador isolado determina o sexo de um indivíduo.

É possível falar de diferentes dimensões do sexo biológico:
- Dimensão cromossômica: XX, XY ou variações como XXY, X0
- Dimensão genética: Genes que influenciam o desenvolvimento sexual
- Dimensão gonadal: Ovários, testículos, gônadas ovotestes (órgãos que apresentam tanto tecido ovariano [produtor de óvulos] quanto tecido testicular [produtor de esperma], reforçando que o sexo não é realmente binário)
- Dimensão fenotípica: Genitália, seios, pênis, vulva
- Dimensão hormonal: Níveis de testosterona, estrogênio, progesterona
Nenhum desses marcadores isoladamente equivale a “homem” ou “mulher”.
Pessoas Intersexo: Uma Realidade Comum e Invisibilizada
Pessoas intersexo possuem características sexuais que não se encaixam claramente nos padrões médicos e sociais para corpos femininos ou masculinos.

Segundo a ONU, entre 0,05% e 1,7% da população mundial é intersexo, o que equivale a cerca de 136 milhões de pessoas — aproximadamente a população da Rússia. Muitas são classificadas como homens ou mulheres por conveniência. Geralmente, não desejam ser categorizadas como “terceiro sexo”, mas buscam reconhecimento, representação e respeito por sua identidade. No Brasil, existe uma associação que trabalha pelos direitos das pessoas intersexo. Ela se chama ABRAI (Associação Brasileira Intersexo). Conheça o trabalho deles: https://abrai.org.br/
O Caso dos Guevedoces

Um exemplo emblemático são os guevedoces, uma população na República Dominicana. Esses indivíduos nascem com genitália externa feminina devido a uma deficiência na enzima 5-alfa-redutase, que impede a conversão adequada de testosterona durante o desenvolvimento fetal. Ao nascer, muitas dessas pessoas são identificadas por médicos e familiares como meninas, mas, durante a puberdade, experimentam um aumento considerável nos níveis de testosterona, o que leva ao desenvolvimento de testículos e pênis. A partir desse momento, muitos guevedoces passam a viver como homens. Este caso evidencia que sexo biológico e identidade de gênero nem sempre estão alinhados e que categorias rígidas, baseadas apenas em genitália ou cromossomos, são insuficientes.
Síndrome de Swyer
Outra condição que ilustra a diversidade biológica é a síndrome de Swyer, na qual indivíduos com cromossomos XY apresentam fenótipo feminino. Pessoas com essa síndrome podem ter genitália externa feminina e gônadas subdesenvolvidas, geralmente denominadas gônadas estéreis, que não produzem óvulos nem espermatozoides. Apesar disso, algumas mulheres com síndrome de Swyer conseguiram engravidar utilizando óvulos doados e técnicas de reprodução assistida, como a fertilização in vitro, já que possuem útero funcional.

Essa condição demonstra que o sexo cromossômico (XY) não determina de forma absoluta o fenótipo ou a capacidade reprodutiva, reforçando que sexo biológico e identidade de gênero são conceitos distintos. De forma análoga, embora menos comum, existem situações em que pessoas com cromossomos XX podem desenvolver características típicas masculinas ou, em casos intersexo, homens podem ter útero ou outros tecidos reprodutivos femininos. Esses exemplos mostram que categorias rígidas baseadas apenas em cromossomos ou órgãos sexuais não capturam toda a complexidade da biologia humana e da identidade de gênero.
Sexo e Gênero Não São Sinônimos
O consenso científico, aceito por grandes associações médicas, como a American Medical Association (AMA) e a American Psychiatric Association (APA), por sociedades de endocrinologia, pela Organização Mundial da Saúde (OMS) e por diversos sociólogos e antropólogos, é que sexo e gênero são conceitos distintos e nem sempre congruentes. Sexo refere-se às características biológicas e fisiológicas, incluindo cromossomos, gônadas, genitália e composição hormonal, enquanto gênero envolve papéis sociais, comportamentos, normas culturais e identidades subjetivas. Negar essa distinção é comparável a negar fatos amplamente comprovados, como a eficácia de vacinas, a teoria da evolução ou a forma esférica da Terra, pois ignora evidências científicas consolidadas.

Identidade de gênero é uma construção social que depende da autoidentificação do indivíduo, assim como acontece com identidades políticas ou religiosas. É uma forma de expressão e reconhecimento pessoal que não se reduz ao sexo atribuído ao nascimento, nem a características físicas observáveis. Essa perspectiva permite compreender a diversidade humana de maneira mais ampla, incluindo pessoas transgênero, não-binárias e intersexo, cujas experiências demonstram que identidade de gênero e sexo biológico não são necessariamente alinhados, mas igualmente válidos e respeitáveis.
Vale ressaltar que aquilo que se costuma denominar como "disforia de gênero", ou o desconforto significativo que uma pessoa sente em relação ao gênero atribuído ao nascer, tem bases biológicas reconhecidas pela ciência. Pesquisas indicam que fatores genéticos, hormonais pré-natais e neurobiológicos podem influenciar a identidade de gênero. Estudos com gêmeos sugerem uma componente hereditária, enquanto alterações na exposição a hormônios sexuais durante o desenvolvimento fetal podem afetar estruturas cerebrais ligadas à percepção de gênero. Neuroimagem mostra que regiões do cérebro de pessoas trans podem se assemelhar mais ao gênero com o qual se identificam do que ao sexo atribuído ao nascimento. Condições intersexuais, como guevedoces ou síndrome de Swyer, evidenciam que sexo biológico não é estritamente binário e contribuem para a diversidade de experiências de gênero. Embora fatores culturais e psicossociais influenciem a expressão de gênero, eles não “causam” disforia. Assim, a identidade de gênero é intrínseca, legítima e deve ser respeitada para garantir saúde mental e bem-estar.
A Complexidade do Critério Biológico
Alguns argumentos populares tentam definir “homem” ou “mulher” com base na capacidade reprodutiva ou em características anatômicas rígidas. No entanto, reproduzir não é um critério válido para determinar gênero: muitas pessoas cisgênero não podem ou não desejam se reproduzir, mas isso não as torna menos homens ou mulheres. De forma semelhante, embora mulheres sejam tipicamente anatômica e cromossomicamente fêmeas, nem sempre é o caso; homens são tipicamente XY, mas podem apresentar variações genéticas como XXY ou X0.

A ciência moderna demonstra que o sexo biológico deve ser entendido como um espectro de características, incluindo cromossomos, gônadas, genitália e hormônios, e que o modelo binário “homem-mulher” é apenas uma convenção prática, não uma regra absoluta da natureza. Essa perspectiva permite incluir pessoas intersexo, assim como casos específicos como os guevedoces da República Dominicana — que nascem com genitália feminina e desenvolvem órgãos sexuais masculinos na puberdade — e a síndrome de Swyer, em que indivíduos XY podem desenvolver fenótipo feminino e até gerar filhos com óvulos doados. Tais evidências reforçam que categorias rígidas de “homem” e “mulher” não capturam a complexidade do sexo biológico nem a diversidade das identidades de gênero.
Conclusão: Inclusão e Reconhecimento
Negar a diversidade de sexo e gênero não é apenas ignorar evidências científicas consolidadas, mas também desconsiderar experiências reais de milhões de pessoas. Respeitar a identidade de gênero, baseada na autoidentificação, é fundamental para garantir inclusão, dignidade e direitos humanos, prevenindo discriminação, violência e marginalização. Quando a transgeneridade é demonizada, criminalizada ou desconsiderada socialmente, os indivíduos enfrentam consequências graves: maiores índices de depressão, ansiedade, suicídio, abuso físico e psicológico, exclusão escolar e profissional, além de barreiras ao acesso a serviços de saúde adequados.

No Brasil, em 2024, foram registrados 122 assassinatos de pessoas trans e travestis, evidenciando que o país continua sendo o mais letal para essa população no mundo. Além disso, o Disque 100 registrou 4.482 violações de direitos humanos contra pessoas trans em 2023, incluindo agressões físicas, psicológicas, discriminação e ameaças. Estudos também indicam que pessoas trans têm até 16 vezes mais chances de sofrer de depressão e 11 vezes mais de ansiedade em comparação com a população geral, devido à transfobia estrutural e barreiras no acesso à saúde.
A sociedade como um todo também sofre prejuízos quando se nega ou se deslegitima a identidade de gênero. Políticas públicas que não reconhecem pessoas trans contribuem para desigualdades estruturais, aumento da violência social e desperdício de potencial humano. Por outro lado, o reconhecimento e o respeito à autoidentificação promovem coesão social, inclusão e bem-estar coletivo.
Compreender o gênero como construção social e o sexo como um sistema biológico multivariado permite perceber a complexidade da experiência humana, sem reduzir indivíduos a estereótipos, simplificações ou casos isolados. Excluir ou ignorar essa realidade significa perpetuar injustiças, reforçar preconceitos e negar direitos fundamentais a pessoas trans e intersexo, enquanto aceitar e validar essas identidades contribui para sociedades mais justas, inclusivas e saudáveis.
Assista a esse vídeo para mais alguns pensamentos: Autodeterminação e gênero










Comentários
Postar um comentário
Deixe suas impressões sobre este post aqui. Fique à vontade para dizer o que pensar. Todos os comentários serão lidos, respondidos e publicados, exceto quando estimularem preconceito ou fizerem pouco caso do sofrimento humano.