Os auto-proclamados defensores da moralidade



Moralidade, costumes e casamento: uma reflexão necessária


Por Sergio Viula


É impressionante a energia, o tempo e os recursos de toda espécie que os defensores da moralidade — leia-se, especialmente, os pregadores eletrônicos e seus congêneres menos abastados — empregam na defesa do que chamam de “moral”. Mas será que já pararam para pensar no que é, de fato, essa coisa que eles — e tantos outros — chamam de “moralidade”? Duvido muito.

Via de regra, pregam primeiro e pensam depois — quando pensam. Isso porque não cultivam o hábito da reflexão racional, descomprometida com crenças pré-estabelecidas. Submetem a razão à fé, transformando-a em sua serva. É uma relação sadomasoquista, na qual a fé assume o papel sádico, e a razão, o masoquista. A fé escraviza a razão, e esta se deixa dominar — até o sufocamento. Algemada à cama da superstição, é fustigada com o chicote do medo e da culpa. Por isso, duvido que esses pregadores — e seus fiéis, crédulos ouvintes — pensem de fato.

Um exemplo claro: todos eles defendem a moralidade como algo fixo, dado, imutável. No entanto, a moralidade não é outra coisa senão obediência aos costumes — sejam eles quais forem. E costumes são apenas a maneira tradicional de agir e de avaliar.

"Em toda parte onde os costumes não mandam, não há moralidade; e quanto menos a vida é determinada pelos costumes, menor é o cerco da moralidade. O homem livre é imoral, porque em todas as coisas quer depender de si mesmo e não de uma tradição estabelecida. Em todos os estados primitivos da humanidade, 'mal' é sinônimo de 'individual', 'livre', 'arbitrário', 'inabitual', 'imprevisto', 'imprevisível'."
(Nietzsche, Friedrich – “Aurora”, p. 23, Ed. Escala)

Quando um indivíduo age de modo diferente da tradição, seu ato — e ele próprio — são vistos como "imorais" pela sociedade que o cerca. E, se também estiver contaminado pelo mesmo sistema de valores, ele próprio sentirá culpa. Mas o que é, afinal, "tradição"? Nada mais do que uma autoridade superior à qual se obedece — quase sempre por medo e superstição.

Um momento… Se a moralidade advém dos costumes em vigor, quem sanciona esses costumes? Os legisladores, curandeiros, sacerdotes — ou seja, as esferas mais altas da hierarquia social, que, desde os tempos primitivos, se veem como representantes dos deuses. E é justamente por querer ditar costumes, segundo suas crenças e tradições, que pastores, pregadores e sacerdotes sem batina se lançam candidatos ao poder legislativo. Não estão interessados no Executivo — não têm preparo para gerir cidades, estados ou o país (especialmente os “políticos” evangélicos). Eles querem ser vereadores, deputados, senadores. É nessa esfera que se criam leis — leis que sancionam ou vetam comportamentos individuais, determinando penas judiciais conforme os costumes que pretendem manter ou impor. É um poder perigoso esse de moldar costumes pela força da lei.

Uma vez estabelecidos os costumes — e a moralidade que deles nasce —, qualquer tragédia passa a ser interpretada como punição divina. Está lançada a semente da caça às bruxas. As vítimas? Mulheres, judeus, gays, ciganos — qualquer grupo vulnerável, que seja alvo de inveja ou ódio velado. A história está repleta de exemplos assim.

Quando o domínio da moralidade baseada em costumes se impõe, toda forma de originalidade passa a ser vivida com culpa. Os melhores indivíduos têm, muitas vezes, uma existência desnecessariamente dolorosa por causa disso — e suas vidas se tornam menos frutíferas do que poderiam ser, caso percebessem o quão arbitrários e relativos são os costumes e valores de sua sociedade.

Entre tantos costumes que observamos no dia a dia, há um que costuma causar polêmica: o casamento entre pessoas do mesmo gênero. Há, inclusive, um projeto de lei estagnado no Congresso Nacional, travado pelo lobby de pastores e outros moralistas eleitos à base de pregações e ameaças apocalípticas proclamadas de púlpitos país afora — com destaque para os pentecostais e neopentecostais.

Vamos refletir sobre o casamento em si. Trata-se de um costume, uma tradição que acabou carregando em seu bojo uma certa moralidade — arbitrária, como todas. Dizem os moralistas: “Casamento é só entre homem e mulher.” De onde tiraram essa ideia? Das tradições, especialmente as religiosas.

Mas antes mesmo de falar sobre o gênero dos cônjuges, é preciso responder: o casamento é uma criação divina ou humana? Humana, é claro — assim como as divindades que o teriam instituído.

O casamento foi criado para proteger bens, aumentar riquezas e garantir a herança legítima. A filiação tinha mais a ver com posse do que com afeto. As mulheres, por sua vez, sempre souberam como atribuir filhos a homens que não eram seus verdadeiros pais — por medo ou interesse. Dar o nome de um homem a seus filhos era vital para evitar a desonra. Já os homens gostavam de reconhecer seus filhos para perpetuar seus nomes e suas posses.

Com o tempo, o casamento se popularizou — e se tornou um negócio lucrativo para diversas empresas. Seu verdadeiro sentido se perdeu, e passou a ser visto como algo sagrado, divino.

Ninguém precisa casar para amar. Mas muita gente casa sem amar. Se um homem e uma mulher podem se casar por conveniência ou interesse, por que dois homens ou duas mulheres não poderiam fazer o mesmo?

Há sociedades em que um homem se casa com várias mulheres; outras, em que uma mulher se casa com vários homens. A Sociologia e a Antropologia oferecem inúmeros estudos sobre isso. O que é exceção para nós pode ser regra para outros — e vice-versa.

Em diversos países europeus — e em alguns estados americanos —, o casamento entre pessoas do mesmo sexo já é uma realidade. E daí? Qual é o problema? Quando é que o Congresso Nacional vai legislar com base nos direitos dos indivíduos, e não nos interesses de moralistas retrógrados que se comportam mais como advogados de Satã do que promotores do tribunal divino?

É hora de reavaliar nossos valores, repensar nossos conceitos, questionar criticamente nossos costumes e tradições. Precisamos agir com liberdade e originalidade, exigindo nosso espaço — e respeitando o espaço do outro. E, acima de tudo: não votar em gente que, se pudesse, estaria abanando as fogueiras da Inquisição numa praça perto de você!

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