Da escravidão do vício ao vício de ser escravizado
Ontem, dia 13 de maio, foi celebrado o Dia da Abolição da Escravatura no Brasil. Também foi dia de Preto Velho nas tradições afro-brasileiras. O belo negro e a bela negra, tais como são todos os filhos da África, foram reconhecidos como homens e mulheres livres. Daí até a inclusão plena, um longo caminho tem sido percorrido, porém ainda não concluído.
Num dia em que se celebra o pretenso fim da escravidão (ainda tem trabalho escravo no Brasil, lamentavelmente), decidi escrever esse post para falar, paradoxalmente, na abolição da liberdade - essa que se perde sempre que o corpo - bem como a consciência dele resultante - são submetidos a algum tipo de vício.
Irmãos gêmeos de uma mesma matriz (a cocaína), o crack e o oxi conseguiram ser piores que a mãe. Pouca coisa pode ser mais desagradável, degradante, horripilante do que ver esses humanos se arrastando em trapos, debaixo de uma camada espessa de sujeira, exalando o cheiro insuportável da mais absoluta degradação do corpo humano, só que ainda vivo. Será que existe algo pior do que essa gente perambulando e emporcalhando qualquer lugar onde possam vegetar dia e noite? Existe!!! O descaso do Estado, do empresariado e da sociedade civil como um todo.
Contudo, não consigo evitar uma pergunta que continua latejando na minha cabeça: "Pra quê?" Muita gente virá com "porquês", mas nenhum deles é suficiente em si mesmo. Pobreza e sofrimento precisam ser erradicados e isso depende muito do Estado, do empresariado e da sociedade civil. Entretanto, a pobreza e o sofrimento não são razões suficientes para a sujeição de si mesmo a essa irracionalidade completa.
Pra quê? - volto à vaca fria. Qual é o objetivo de queimar e inalar ou aspirar uma fumaça que surge de componentes químicos perigosíssimos, incluindo água de bateria, querosene, etc? Qual é o objetivo, propósito, ganho que se pode alcançar com a escravidão voluntariamente assumida que resulta do uso dessas e de outras drogas semelhantes?
Gente que anda como o povo da fictícia cidade de "Ensaios sobre a Cegueira", criada por José Saramago. Gente que vive podre de sujeira no corpo, no meio do lixo, definhando sob o pior dos odores que se pode exalar em vida.
Essas pessoas desfiguradas em todos os sentidos estão formando verdadeiras colônias de "cracudos", ou como são chamadas: Cracolândias. Na ânsia de fumar mais uma pedra. Gente que se entrega à miséria total. Pior: Governo, polícia e médicos têm sido incapazes de cuidar, reprimir e reintegrar socialmente esse povo.
No meio dessa miséria, entram uns pastores auto-intitulados de "recuperadores de viciados". Eles abrem "centros de recuperação" - qualquer casa ou sítio onde os viciados possam se acumular para cantar louvores , fazer orações, ouvir pregações, "exorcizar" seus "demônios".
É fato que algumas coisas mudam depois que eles entram nesses "centros de recuperação": tomam banho, vestem-se com roupas limpas, cortam o cabelo, barbeiam-se... e continuam orando, cantando, ouvindo pregações até começarem a pregar também. Porém, para garantir todo esse "bônus", eles tem que arcar com o "ônus" de saírem pelas ruas a pedir esmolas em ônibus e trens, carregando uma latinha metida a cofre e um folheto (que recolherão de volta depois que tiverem mendigado alguns trocados).
Ah, sim, eles pregam, e nessa prédica, falam o pior de si mesmos e o melhor de Jesus, da igreja e da "casa de recuperação". Depois, descem e pegam o próximo ônibus ou entram no próximo vagão de trem, repetindo esse ritual dia após dia, anos a fio, envelhecendo sem se integrarem ao mercado de trabalho. Não estudam, exceto o que o pastor indica nos círculos bíblicos; não trabalham com carteira assinada, e provavelmente exercerão esse mesmo "ministério da palavra" como único meio de subsistência, fazendo a roda girar de novo em torno do próprio eixo.
Dizendo a todos que deixaram a escravidão do vício, não percebem que nunca deixaram o vício da escravidão. Apenas trocaram de senhor, de capataz. Antes eram o crack, o oxi e outras drogas; agora são os dogmas religiosos. Antes, o traficante controlava a vida deles. Agora, é o sacerdote e o pastor que dominam suas consciências. Antes, o que ele ganhava ficava na droga. Agora, o que ele ganha fica na "obra". Antes, vivia marginalizado no vício. Agora, está viciado na marginalidade, pois continua sem emprego regulamentado, sem educação técnica ou acadêmica, sem um lar para chamar de seu, sem senso crítico a respeito do que acontece ao seu redor. Envergonha-se e gloria-se de seu passado a um só tempo, mas não consegue criar seu futuro a partir de aspirações mais humanistas, racionais, existencialmente mais relevantes. Contenta-se com a anestesiante esperança de entrar no céu e ser chamado filho de deus, depois de ter cansado de ser chamado de filho da p-u-t-a. Enquanto isso, casa-se, desde que a mulher (tem que ser um mulher, mesmo que ele seja gay) pense muito semelhantemente a ele e esteja disposta a gerar uma penca de filhos, aos quais mal vai conseguir criar.
Assumir a própria liberdade com todo o risco e potencial que ela apresenta pode ser desesperador, mas submeter-se à escravidão de uma substância química ou de uma crença alienante não é muito melhor. Esse pode ser exatamente um dos maiores riscos dessa mesma liberdade que essa gente tanto quer evitar. A droga e o dogma totalizantes podem ser exatamente a concretização dos maiores medos que esse indivíduo quer estancar, mas aos quais só faz alimentar.
Quer saber? Na vida existem coisas muito boas para que alguém se submeta ao crack, ao oxi ou ao "ópio" do dogma.
Pelo amor de Zeus, vai ler um livro! Vai curtir uma obra de arte! Vai ver um filme! Vai caminhar na praia! Vai fazer amor! Vai dormir uma boa noite de sono! Vai ver um show! Vai pescar! Vai trabalhar! Vai estudar! Vai pesquisar algo relevante para a vida, para a humanidade, para a felicidade própria e dos outros! Ou vai simplesmente tocar uma punheta ou um siririca! Só não vem encher meu saco com o fedor da "craco-cagalândia" ou com a pentelhação do testemunho dos "crentudos"!
Vão descobrir a alegria de serem donos de si mesmos!
Agora, se prefeituras, legisladores municipais, governos e legisladores estaduais se preocupassem tanto com os dependentes de crack e oxi quanto se preocupam em caçar vendedores ambulantes visando maior arrecadação de impostos sobre a circulação de mercadorias, as drogas talvez não estivessem devorando uma parte cada vez maior da sociedade brasileira, que por sua vez poderia ser inteligente o suficiente para, pelo menos, ficar longe dessa merda toda!
Meu amigo, estou por inteiro contigo!
ResponderExcluirAdorei essa da "pentelhação do testemunho dos "crentudos".
Sem nada a acrescentar!
Beijos
Que jóia, Mandrag! É bom saber que esse post não é apenas a minha voz, mas a sua e de outras pessoas que estão com esse grito preso na garganta.
ResponderExcluirUm abraço, amigão!
Sergio Viula
Sérgio.
ResponderExcluirAdorei o seu post. Vou partilhar, doa a quem doer.
Já vi e vejo muito isso. Passou da hora de mudar.
Parabéns!
Estou saindo do armário com você. Não em relação à sexualidade, mas sim em relação a sair de cima do muro da Hipocrisia.
Obrigado, Gy!!! Arrasou!
ResponderExcluirConto com seu apoio!
Beijo grande,
Sergio Viula