DISCURSO HISTÓRICO!
O primeiro feito por um parlamentar
assumidamente gay ressaltando a
importância do respeito à diversidade sexual
no horizonte da produção legistativa.

Primeiro deputado assumidamente gay na Câmara dos Deputados,
Jean Wyllys faz um discurso incisivo e emocionante com todas as suas cores.
Transcrição do discurso do deputado Jean Wyllys:
Nota: Descato em negrito os momentos em que ele se referiu
diretamente à diversidade sexual e de gênero.
Senhor Presidente, senhoras deputadas, senhores deputados, brasileiros e brasileiras que assistem à TV Câmara,
Em especial, dirijo-me aos generosos eleitores do Rio de Janeiro que me trouxeram até aqui, que me deram seu voto de confiança. Ciente de que hoje seria minha estreia neste Parlamento, ontem, enquanto preparava este breve discurso, rememorei minha vida até aqui como se fosse um filme.
Muitos de vocês sabem que a injúria, os xingamentos, as piadas infames, o escárnio entre dentes, a fofoca e as violências físicas contra os homossexuais provocam, quase sempre, danos irreparáveis à subjetividade, à alma da pessoa. Agora, imaginem essa injúria combinada à pobreza extrema em que minha família e eu vivíamos na periferia de Alagoinhas, interior da Bahia, onde sequer havia água e sanitário nas casas de aluguel em que morávamos.
Não bastasse a miséria – e talvez mesmo por conta dela – meu pai enfrentava problemas com alcoolismo e, por isso, não conseguia se manter nos subempregos que, vez ou outra, lhe permitiam trazer comida para casa. Minha mãe trabalhava como lavadeira para não nos deixar morrer de fome. Para ajudá-la nessa tarefa nobre, aos 10 anos de idade, entrei no mercado de trabalho informal: trabalhava em um turno e estudava no outro.
Aos sábados e domingos, eu e meus irmãos nos dedicávamos às atividades do Centro Comunitário da Baixa da Candeia. Diante das dificuldades, minha mãe queria que abandonássemos a escola para nos dedicarmos mais ao trabalho. Para ela, era importante que fôssemos honestos e respeitássemos o que era dos outros, mas estudar não lhe parecia essencial – em sua cabeça, dedicação aos estudos era coisa de gente rica.
Acontece que eu sempre gostei de aprender e de ler. Sempre gostei da escola e, para lá, eu ia mesmo nos dias em que não havia absolutamente nada para comer em casa. Aos sábados e domingos, passava horas na biblioteca da casa paroquial lendo livros – livros que me deram valores humanistas e uma preocupação com o outro, típicos do cristianismo.
Sim, porque se, por um lado, o cristianismo fundamentalista que vigora no Congresso Nacional e sua ameaça ao Estado laico e democrático de direito nos apavoram, por outro, é inegável que foi o cristianismo livre de fundamentalismo que nos trouxe essa ideia de que o que torna um homem virtuoso são seus atos. Ou seja, para o verdadeiro cristianismo, um ser humano é virtuoso quando age em favor do bem comum.
Mas voltando aos livros: foram eles que me levaram ao movimento pastoral da Igreja Católica. Engajei-me na Pastoral da Juventude Estudantil, na Pastoral da Juventude do Meio Popular e no trabalho das Comunidades Eclesiais de Base. A família de meu pai sempre foi ligada ao candomblé, mas só me aproximei e me aprofundei nessa religião de matriz africana depois dos 20 anos, já homem feito.
A leitura me fez ver a televisão com outros olhos – televisão que só chegou à minha casa quando eu tinha 11 anos. Os livros me fizeram escapar dos destinos imperfeitos aos quais ainda estão condenados as meninas e meninos dos bolsões de pobreza deste país.
Formei-me em informática no ensino médio, em uma instituição de excelência voltada para alunos de escolas públicas do Nordeste que estivessem acima da média – a Fundação José Carvalho. Entrei no mercado formal de trabalho bem remunerado. No mesmo ano, prestei vestibular para jornalismo na Universidade Federal da Bahia, onde me formei. Trabalhei anos como jornalista e, depois do mestrado, passei a me dedicar mais ao ensino superior.
Deixei os anos de miséria para trás. Fiz a tal da mobilidade social sem contar com ajuda financeira dos meus pais, que, ao contrário, dependiam de mim – nem com apadrinhamentos de qualquer tipo. Eu, que poderia ter morrido de fome ou por falta de serviço público de saúde, que poderia ter sucumbido a uma bala de revólver da polícia ou dos bandidos, ou mesmo à homofobia que vigora nas comunidades, transformei a minha vida e a de minha família para melhor.
E poderia me contentar com isso e apenas olhar para a frente. Mas… e os que ficaram para trás?
Aqueles que, abandonados pelo Estado à própria sorte, não tiveram força de vontade para resistir e sobreviver à miséria? E aqueles que ficariam para trás, fadados a morrer vítimas das guerras entre quadrilhas ou nas mãos da polícia corrupta, como aconteceu a muitos dos meus colegas da Baixa da Candeia?
E aquelas crianças homossexuais que não sobreviveriam ao ambiente de hostilidade homofóbica?
Como é possível viver contente se seus semelhantes ainda são vítimas de injustiças? Pode haver gente egoísta no mundo, mas eu não faço parte dela. De verdade.
Ter uma vida confortável, relativamente segura, e trabalhar por meio da educação superior, do jornalismo e dos movimentos sociais pelos direitos humanos não me impediu de reconhecer que isto é pouco. Sei que posso fazer muito mais para melhorar a vida dos outros. E que esse "muito mais" passa, necessariamente, pela política institucional.
Por isso, depois de alguma relutância, decidi aceitar o convite da combativa Eloí Helena, então presidente do PSOL, para me candidatar a deputado federal pelo Rio de Janeiro – estado que me acolheu de braços e coração abertos há seis anos.
Durante a campanha eleitoral – feita com pouquíssimo dinheiro, por meio das redes sociais e de comícios domiciliares, de modo ecologicamente correto, sem o uso de placas, cartazes ou adesivos –, eu disse que o norte do meu mandato seria a promoção da justiça social e a defesa dos direitos humanos.
Isso inclui a defesa dos direitos das mulheres, das crianças e adolescentes, especialmente daqueles em situação de risco social, dos idosos, dos negros e dos adeptos das religiões de matriz africana. E, principalmente, a defesa dos direitos e liberdades civis de lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais, que veem em mim seu primeiro representante legítimo no Congresso Nacional.
Sou o primeiro homossexual assumido, sem homofobia internalizada e ligado ao movimento LGBT, a se eleger deputado federal.
E esse será o norte do meu mandato.
Mas quero deixar claro que não se trata de um discurso romântico ou abstrato sobre justiça social e direitos humanos. Vou me dedicar a enfrentar o que considero as principais fontes de injustiça social e de violações de direitos humanos no Brasil:
A ausência de recursos suficientes para as áreas sociais;
A elevada tributação indireta e demais distorções do modelo tributário, que retiram recursos das camadas mais pobres e garantem privilégios aos mais ricos;
O crescente problema do endividamento público, cuja auditoria, prevista na Constituição de 1988, nunca foi realizada.
Por isso, escolhi integrar, aqui na Câmara, a Comissão de Finanças e Tributação, além de ocupar uma vaga de suplente na Comissão de Direitos Humanos e Minorias. Estou certo de que a injustiça fiscal aprofunda a injustiça social e aniquila a garantia dos direitos humanos.
Quero fazer desta legislatura uma de justiça social, defesa das liberdades civis e dos direitos humanos.
Devo isso ao povo brasileiro.
Devo isso à minha mãe – mãe coragem.
Muito obrigado!
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