Gay e fundamentalista: Uma chatice fabricada pela pregação gospel



Por Sergio Viula


Hoje, quando voltava do trabalho, peguei um ônibus e fui me sentar perto da porta traseira. Um homem com seus quase trinta anos estava sentado logo atrás e falava ao telefone. Apesar de não falar gritando, como muitos fazem, o volume da conversa estava alto o suficiente para que eu não pudesse evitar ouvir a conversa. Provavelmente, outros também estavam submetidos à mesma tortura. Ele conversava com uma tal de Cris, que devia ser outra chata de galochas. Quem aturaria aquela conversa se não tivesse uma mentalidade igualmente curta?

A conversa era toda sobre a vida alheia. Só críticas. Entre umas cinco histórias diferentes que eu tive o desprazer de ouvir, três eram sobre gente gay - duas sobre homens e uma sobre mulheres. Todas as qualificações feitas eram negativas e carregavam jargão evangélico. Eu podia sentir uma ponta de ressentimento da parte dele diante da liberdade alheia - a mesma que ignora os idiotas e vai construir felicidade. 

A fofoca sobre uma conhecida dele, lésbica, agora assumida, foi notoriamente carregada de recalque:

"Ela trocou o marido por outra mulher. Agora, as duas vivem postando fotos - sempre juntas e se beijando. Elas se conheceram pelo Facebook. Depois, ela deixou tudo e foi morar com a outra. O sangue de Jesus tem poder."

O cara que dizia isso era nitidamente gay e enrustido mal disfarçado - aquele tipo que qualquer "gaydar" (radar gay), funcionando minimamente bem, capta numa só olhada. Ele chegou a comentar com a tal da Cris sobre uma cantada que recebera de outro homem e que fora dispensada porque, segundo ele, "o sangue de Jesus tem poder". Sabe lá quanto desse suposto "hemato-poder" foi necessário para vencer aquela "tentação". kkkkk

Fiquei mais chocado ainda quando ele falou sobre a mulher dele - ele tem esposa!!! - e uma empregada que eles teriam contratado. 

E por que fiquei chocado?

Primeiro, porque achei que ele fosse incapaz de chegar perto de uma vagina. Mas, depois lembrei que eu já fiz a mesma coisa: casei com uma mulher, achando - por algum tempo - que "com Cristo no barco, tudo vai muito bem" (ou pelo menos parecia ir muito bem... só que não). 

Depois, fiquei admirado que ele assumisse que era mais obcecado por limpeza do que a própria a mulher dele e a empregada juntas. Ele chegou a dar exemplos de sua obsessão por limpeza. Claro que neurose não escolhe gênero. Portanto, ele pode ser homem e perfeccionista quanto aos trabalhos domésticos, enquanto uma mulher pode deixar a louça onde a encontrou para não perder o jogo de seu time preferido. Mas, convenhamos, não é o mais comum, e mesmo quando acontece, homens heterossexuais não costumam se gabar disso, especialmente em público. Fiquei pensando: Será que dá conta de um grelo, Chéssuz? Ou será que se contorce só de pensar na textura úmida de uma "racha"?

Antes que me julguem como impiedoso, deixem-me continuar o relato.

Passamos por um grupo de religiosos do Candomblé ou da Umbanda que fazia um trabalho num canto escondido de um praia. Já imaginava o que ele diria. Afinal, crentes fundamentalistas são tão previsíveis...

- "O sangue de Jesus tem poder!"

A Cris quis saber o por quê da exclamação. Ele explicou e contou o caso de outro gay que "voltou para aquela vida". Isso queria dizer que o cara havia retomado sua religião afrobrasileira e se assumido como alguma "coisa entre travesti e transexual". Não ficou muito claro. Ele contava os detalhes sobre a transformação, sempre em tom pejorativo e judicativo. Afinal, o supostamente deus perfeito dele devia estar muito ofendido com o que um mortal qualquer fazia de seu próprio corpo sem afetar o de ninguém mais, exceto pelo prazer trocado com seu parceiro por consentimento mútuo. 

Mas, ele não parou por aí. A obsessão pelo culto que fazem os outros a deuses diferentes do seu ainda dominou a conversa por um bom tempo. E bastou que algumas estudantes da UFRJ entrassem no ônibus para que ele já começasse a qualificá-las como "mal educadas", "pombas giras", "baixaria", etc. 

Não pude evitar o pensamento de como seria chato viver eternamente ao lado de gente como essa, caso céu houvesse e ambos fôssemos para lá. Se já era difícil suportar uma viagem que levou 20 minutos, no máximo, sentado à frente desse traste repetidor de jargões gospels e vomitador de preconceitos, imagina viver para sempre perto dele naquilo que tanta gente chama de paraíso!!!

O mais irônico, para não me alongar mais, foi ver que ele desceu no mesmo ponto de ônibus das garotas da universidade. Elas, porém, nem imaginavam quem era o digníssimo que vinha logo atrás delas pelas escadas de descida do ônibus. Fiquei pensando sobre quantas vezes estamos cercados de idiotas e homofóbicos que nem imaginamos porque não estamos na cabeça deles para saber como são podres em seus pensamentos, mas quando o cara expressa seus preconceitos por meio de palavras ou gestos é que a gente vê até onde pode ir a estupidez humana, especialmente quando alimentada por crenças ridículas e nocivas.

Aproveitei que ele ia descer, portanto saiu do meu cangote (kkkk), e olhei de soslaio para ver como se apresentava o dono daquela voz e promotor das fofocas que tornaram uma viagem tão curta num desprazer tão longo e profundo. 

O fundamentalista-gay-enrustido estava vestindo uma calça super apertada e calçando sapatos pretos de bico fino e bastante lustrados. E o que isso tem a ver com sexualidade? Nada. Mas, se o visse nas redondezas de uma boate, meu primeiro pensamento seria o de que ele talvez estivesse se encaminhando para mais uma noite de bate-cabelo, apesar da calvice. 

Não é que ele parecia limpinho mesmo? A obsessão por limpeza estava refletida em sua aparência. Mas, os sepulcros caiados também são branquinhos por fora, apesar de estarem cheios de podridão por dentro. 

De qualquer modo, todo aquele preconceito revela sentimentos recalcados, empurrados para o mais profundo do seu ser, e por isso mesmo ainda mais reforçados, mais fortalecidos. A psique é implacável. 

Fiquei pensando nas mentiras que esse homem do celular construiu como muros para reprimir a si mesmo - muros que o impedem de viver plenamente sua sexualidade, mas que não impedem que muitos, como eu, enxerguem, através de suas paredes imaginárias, o gay enrustido e infeliz que, pela própria conversa, ele demonstrava ser.

Moral da história: Continuemos trabalhando por um mundo mais humanista, mais livre e mais feliz. É nisso que eu estou envolvido no meu dia-a-dia.

Infelizmente, esse homem e outros que agem como ele nunca viverão as alegrias de um amor como o que eu e Andre temos construído. Dica para começar: Não aceite as imposições de quem quer que seja sobre seu amor e seu desejo. Construa sua própria biografia sem as amarras de fundamentalismos religiosos e outras neuroses.

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