A exposição do Santander QueerMuseu
Exposição Queer Museu no Santander Cultural em Porto Alegre (RS)
(Reprodução/Facebook)
Pensei que estava na Idade Média de novo. Dizer isso já parecer jargão hoje em dia, mas é fato. O gritos de blasfêmia no meio de uma exposição de arte pareciam ecoar dos porões da Santa Inquisição. Com esses, vinham os gritos de pedofilia, visando claramente a mobilizar multidões através do pânico e do ódio. Tudo isso cheirava à lenha fumegante oriunda das fogueiras "santas", de quem não suporta ver um símbolo desconstruído, mas considera obra de deus queimar corpos vivos nas chamas do ódio fanático como era feito em praça pública.
Não, eu não estava assistindo a algum romance com temática medieval. Era só um vídeo clandestino feito por três patetas que aparentemente representavam o MBL (Movimento Brasil Livre) e que pegavam carona nas sandices ditas por fanáticos religiosos, extremistas de direita (não são melhores e nem piores que os extremistas de esquerda - todo extremismo é uma merda), e por sensacionalistas do ódio como o chatésimo Olavo de Carvalho, citado pelos três patetas do MBL como autoridade "profética" durante a gravação do vídeo. Um deles chega a dizer que o referido arremedo de pensador já havia previsto que depois do casamento entre pessoas do mesmo sexo, viria o casamento pluriamoroso e depois a zoofilia e a pedofilia. Ou seja, a culpa pelas cagadas que os heterossexuais fazem ou podem vir a fazer, conforme a visão dessa turma, é sempre dos gays.
Troca esse disco, idiota. Já está carcomido pelo tempo e pela experiência. As famílias homoparentais estão aí para desmentir essa besteira toda.
Fiquei pensando: E se esses loucos decidirem fazer uma cruzada moralista e fanática contra qualquer obra de arte em qualquer exposição do Brasil, será que os organizadores vão retirar aquela obra ou fechar a exposição também? Será que é cedendo ao obscurantismo que vamos avançar com o esclarecimento? Será que a rendição diante do grito estúpido, imbecilizado por discursos totalitaristas e fundamentalistas vai nos ajudar a derrotar a ignorância e o ódio que colocam em xeque qualquer noção de liberdade e até mesmo de proteção à vida? Sim, porque o discurso dessa gente monstrifica as pessoas que não se enquadram em sua ridiculamente mesquinha cartilha. E aos monstros, os homens "de bem" costumam oferecer a navalha afiada.
Gostei de ver que os seguranças da exposição colocaram para fora do recinto o pateta que pretendia abordar uma família que passeava tranquilamente pelos corredores. O pateta filmador não podia admitir que um casal e seu filho andassem pelos corredores da exposição MuseuQueer. Mas aquela tentativa de assédio foi a última gota para transbordar o copo da paciência dos funcionários do museu. Constranger visitantes é passar de qualquer limite. Estava nítido pelo comportamento dos três idiotas que eles não frequentam espaços de arte.
Sobre as peças expostas que eles mais difamaram e contra as quais envenenaram alguns ignorantes de plantão, vale dizer que todas elas são obras de arte, mas que nem por isso se prestam aos mesmos papéis.
Primeiro, porque retratar o fato de que existem seres humanos que praticam sexo "interespécie", ou seja, sexo com outros animais que não os humanos, não é o mesmo que mostrar gravuras de crianças que são gays ou transgêneros, entre os quais também travestis. Mas, parece que esses três patetas só entendem a travestilidade como a venda do corpo na pista. Como são estúpidos! Eles essencializam o circunstancial sem a menor compreensão do que seja gênero e do que seja prostituição, ainda que muito desta última se deva exatamente aos atravessamentos das desigualdades vivenciadas por transgêneros no que diz respeito às oportunidades na sociedade em que essas pessoas estão inseridas.
Obviamente, dizer que as orientações sexuais e as identidades de gênero são uma característica de nossa humanidade como um todo já é deixar subentendido que crianças, por serem humanas, podem apresentar qualquer uma delas, inclusive crianças trans, as quais podem ser homossexuais, heterossexuais, bissexuais, etc. Isso nada tem a ver com pedofilia, que é o desejo de um adulto por uma criança. Desejo esse que pode chegar à consumação do ato sexual com ou sem o consentimento do infante, e que é crime. Dizer que uma criança é gay, bissexual, transgênero ou não, está para a pedofilia do mesmo jeito que dizer que uma criança é heterossexual está para o estupro. Os patetas do MBL, além de mal informados, demonstram má-fé.
Aliás, não é no QueerMuseu que as crianças correm risco de serem atacadas por pedófilos. É nas sacristias, nos retiros, nos gabinetes de aconselhamento pastoral. E não somente aí, mas em muitos outros lugares considerados pelos referidos três patetas e seus seguidores como sendo seguros para crianças.
A decisão do Santander em cancelar a exposição foi infeliz e só acena para esses incendiários como a suposta confirmação de que suas ações renderam "frutos". Isso os estimula ainda mais a perseguir e difamar outras inciativas artísticas. Aliás, na Holanda, de onde vem o banco Santander, o Museu do Sexo deixa tudo isso no chinelo. E tem pais que levam os filhos sem o menor constrangimento.
E por quê? Porque, como retratava aquela peça que mostrava hóstias com nomes de partes do corpo, tudo isso é corpo, meu corpo, teu corpo, o corpo do outro. E cada um tem o direito de fazer do seu corpo o que bem entender, mas não do corpo do outro. E é quando dois querem a mesma coisa, em condições semelhantes, que tudo o que eles fizerem entre si terá legitimidade, não importa quem faz o quê. Os limites são justamente o da idade do consentimento e o do respeito à vontade alheia.
Detalhe: Disco de trigo sem a consagração de um padre não é hóstia. Qualquer pessoa minimamente entendida em teologia católica (ou até mesmo no catecismo) sabe disso. O biscoitinho de trigo só é "corpo de Cristo" depois da consagração sacerdotal - aquela que é feita durante a missa, que nada mais é do que a celebração do "corpo de Cristo" - chamado pelos católicos de "Eucaristia". Então, escrever nomes de partes do corpo num disco de trigo não é o mesmo que pegar a hóstia que restou da missa no sacrário e fazer outros usos dela. Os patetas disseram mais uma patetice quando apelaram aos católicos sem saber que muitos católicos desprezaram completamente a incitação deles por saberem muito bem a diferença entre um biscoito numa exposição e a hóstia recebida na missa.
Todavia, o que esses caras fizeram é semelhante ao que fazem muçulmanos fanáticos em diversas partes do mundo: Destroem obras de arte milenares por acharem que elas blasfemam contra seu diminuto deus. Chamam-no de grande, mas grande mesmo só a patetice dos fanáticos.
Daí a colocar as mulheres em sacos de pano dizendo que são sinais de virtude, proibir o canto ou a dança, espancar em praça pública homens que ousem beber um gole de vinho, enforcar homossexuais ou lançá-los de prédios, casar meninas de 9 anos com homens de 60, como acontece por aquelas bandas, é só um passo.
Mas o tiro deles pode ter saído pela culatra. Uma exposição que poderia ter ficado confinada a uma quadra de uma cidade gaúcha acabou ganhando o Brasil todo, desencadeando discussões, debates e novos movimentos em prol da liberdade artística. Como se vê nas obras de Foucault, quanto mais a Igreja criava mecanismos de controle sobre o sexo, mais ela o colocava no centro das atenções, enfraquecendo seus próprios interditos e reforçando discursivamente a existência e a pujança do erotismo que nos é comum, ainda que se manifeste de modos diversos em cada um de nós. O MBL não aprendeu nada com a História. Bem feito, a ignorância custa caro ao próprio ignorante.
Não nos curvemos, sigamos fazendo arte! Muita arte!
NÃO AO FUNDAMENTALISMO E AO CONSERVADORISMO OBSCURANTISTA!
P.S.: Há um tempo, o SESC também recebeu um espetáculo, dessa vez de teatro, chamado Macaquinhos. Foi um auê nas redes sociais, com burrices do nível dessas do MBL, mas ditas por aquele tipo de gente que pensa que 'gala' é o feminino de 'galo'... kkkkkkk Detalhe: O SESC não cancelou o espetáculo como fez o Santander com a exposição. PARABÉNS para o SESC e uma vaia para o Santander.
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